Livro ‘Galileu e os negadores da ciência’ por Mario Livio

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Em Galileu e os negadores da ciência, Mario Livio, astrofísico e autor best-seller, baseia-se em seu próprio conhecimento científico para conjecturar como Galileu chegou às suas conclusões revolucionárias sobre o cosmo e as leis da natureza. A história de Galileu Galilei é um terrível antecedente do que vivemos hoje, por exemplo no que se refere à crise climática ou ao combate à Covid-19. A ciência, mais uma vez, é equivocadamente questionada e ignorada. Quatrocentos anos atrás, Galileu enfrentou o mesmo problema. Suas descobertas, baseadas em observação cuidadosa e experimentos engenhosos, contradiziam o senso comum e os ensinamentos da Igreja Católica à época. Como retaliação, em um ataque direto à liberdade de pensamento, seus livros foram proibidos pelas autoridades eclesiásticas. Um pensador livre, que seguia as evidências, Galileu foi uma das figuras…

Editora: Record; 1ª edição (7 junho 2021); Páginas: 308 páginas; ISBN-10: 850111930X; ISBN-13: 978-8501119308; ASIN: B09518R6HF

Leia trecho do livro

Prefácio

Sendo eu mesmo astrofísico, sempre tive fascinação por Galileu. Ele foi, afinal, não apenas o fundador da astronomia e da astrofísica modernas — a pessoa que transformou uma antiga profissão em uma janela para os segredos mais profundos e as maravilhas espantosas do universo —, mas também um símbolo da luta pela liberdade intelectual.

Com a simples disposição de lentes fixas nas duas extremidades de um cilindro oco, Galileu conseguiu revolucionar a nossa compreensão do cosmos e do lugar que ocupamos nele. Avançando quatro séculos, encontramos um tataraneto do telescópio de Galileu: o telescópio espacial Hubble.

Ao longo das décadas em que trabalhei como cientista com o Hubble (até 2015), me perguntaram muitas vezes o que eu achava que dava ao telescópio seu status icônico como um dos projetos de maior reconhecimento na história da ciência. Identifiquei pelo menos seis razões principais para a popularidade do Hubble. Em nenhuma ordem específica, são elas:

  • As incríveis imagens produzidas pelo telescópio espacial, apelidadas por um jornalista de “a Capela Sistina da era científica”.
  • As descobertas científicas reais para as quais o Hubble contribuiu de forma significativa. Elas vão desde determinar a composição da atmosfera de exoplanetas à espantosa descoberta de que a expansão cósmica está se acelerando.
  • O drama associado ao telescópio. A transformação do que foi inicialmente considerado um fracasso desastroso (semanas após o lançamento foi descoberto um defeito em seu espelho) em um gigantesco sucesso.
  • A engenhosidade de cientistas e engenheiros, associada à coragem de astronautas, que ajudaram a superar os incríveis desafios tecnológicos envolvidos em fazer reparos e modernizações muitas centenas de quilômetros acima da Terra.
  • A longevidade do telescópio: ele foi colocado em órbita em 1990 e ainda está funcionando muito bem em 2019.
  • Um programa extraordinariamente eficaz de disseminação e divulgação, que faz com que os resultados circulem entre os cientistas, o público em geral e os educadores, de maneira eficaz, atraente e de fácil acesso.

Fui surpreendido, enquanto examinava a vida e a obra de Galileu, ao me dar conta de que as mesmas palavras-chave vinham à mente: imagens, descobertas, drama, engenhosidade, coragem, longevidade e disseminação.

Primeiro, Galileu criou imagens deslumbrantes a partir de suas observações da superfície lunar. Segundo, embora suas descobertas espetaculares sobre o Sistema Solar e a Via Láctea não tenham provado de forma conclusiva que o mundo era copernicano, com a Terra girando em torno do Sol, elas praticamente destruíram a estabilidade do universo ptolomaico, cujo centro era a Terra.

Por fim, o drama que caracteriza a vida de Galileu, a inteligência brilhante que ele exibiu em seus experimentos em mecânica, a coragem que demonstrou ao defender seus pontos de vista, o enorme sucesso que obteve na disseminação de seus resultados e na tentativa de torná-los acessíveis, e o fato de suas ideias constituírem a base sobre a qual a moderna ciência foi erguida são as principais características que tornam Galileu e sua história imortais.

Você pode se perguntar por que me senti absolutamente compelido a escrever mais um livro sobre Galileu, quando já existem diversas biografias e análises de seu trabalho. Houve três razões principais para a minha decisão. Primeiro, cheguei à conclusão de que poucas das biografias conhecidas tinham sido escritas por pesquisadores em astronomia ou astrofísica. Eu acredito, ou pelo menos espero, que alguém ativamente envolvido em pesquisas na área da astrofísica possa trazer uma nova perspectiva e novas ideias, mesmo nessa arena aparentemente esgotada. Em particular, neste livro tentei colocar as descobertas de Galileu no contexto do conhecimento, das ideias e da configuração intelectual dos dias atuais.

Em segundo lugar, e ainda mais importante, estou convencido de que os leitores de hoje vão se surpreender ao descobrir quão relevante a história de Galileu é para os nossos dias. Em um mundo de atitudes governamentais anticientíficas, com negadores da ciência ocupando cargos importantes, conflitos desnecessários entre ciência e religião e a perspectiva de um cisma ainda maior entre as humanidades e as ciências, a história de Galileu serve, em primeiro lugar, como um poderoso alerta sobre a importância da liberdade de pensamento. Ao mesmo tempo, a personalidade complexa de Galileu, alicerçada como era na Florença do fim da Renascença, é um exemplo perfeito do fato de que todas as realizações da mente humana são parte de apenas uma cultura.

Por fim, muitas das magníficas e eruditas biografias incluem partes que são muito herméticas ou detalhadas, mesmo para leitores cultos, porém não especialistas no assunto. Meu objetivo foi fazer um relato fiel, ainda que relativamente curto e acessível, da vida e da obra desse homem cativante. Em certo sentido, estou tentando humildemente seguir os passos de Galileu. Ele insistia em publicar muitas de suas descobertas científicas em italiano (em vez de latim), para que fossem acessíveis a qualquer pessoa instruída e não apenas a uma elite restrita. Espero fazer o mesmo pela história de Galileu e sua mensagem de importância vital.

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Rebelde com causa

Durante um café da manhã no Palácio Médici, em Pisa, Itália, em dezembro de 1613, pediram a um dos ex-alunos de Galileu, Benedetto Castelli, que explicasse a importância das descobertas que Galileu havia feito com o telescópio. Durante a discussão que se seguiu, a grã-duquesa Cristina de Lorena atormentou Castelli com o que acreditava serem contradições entre determinadas passagens bíblicas e a visão de Copérnico de uma Terra orbitando em torno de um Sol estacionário. Ela citou especificamente uma descrição do livro de Josué na qual, a pedido de Josué, o Senhor ordena que o Sol (e não a Terra) fique parado sobre a antiga cidade cananeia de Gibeão e que a Lua se detenha em sua trajetória sobre o vale de Aijalom. Castelli descreveu todo o episódio em uma carta que enviou a Galileu em 14 de dezembro de 1613, afirmando ter desempenhado o papel de teólogo “com tal segurança e dignidade” que Galileu teria ficado orgulhoso de ouvi-lo. No geral, resumiu Castelli, ele “conduziu as coisas como um paladino”.

Ao que parece, Galileu não ficou tão convencido do sucesso de seu aluno em elucidar a questão, pois, em uma longa carta enviada a Castelli em 21 de dezembro, ele explicou em detalhes sua própria opinião sobre a impropriedade de usar as Escrituras para contestar a ciência: “Eu acredito que a autoridade das Sagradas Escrituras tinha unicamente o objetivo de persuadir os homens sobre proposições e pontos da doutrina que, sendo necessários para a nossa salvação e se sobrepondo a toda razão humana, não poderiam ser tornados críveis por nenhuma outra ciência”, escreveu ele. No estilo que caracteriza grande parte de sua escrita, ele logo acrescentou sarcasticamente que não achava “que o mesmo Deus que nos deu nossos sentidos, nossa razão e nossa inteligência desejasse que abando­nássemos seu uso”. Resumindo, Galileu argumentou que, quando surge um aparente conflito entre as Escrituras e o que as experiências e as demonstrações estabelecem sobre a natureza, as Escrituras têm de ser reinterpretadas de uma nova maneira. “Especialmente”, observou ele, “no que diz respeito a assuntos dos quais apenas uma mínima parte, e em conclusão parcial, deve ser lida nas Escrituras, pois assim é a astronomia, da qual há [na Bíblia] uma parte tão pequena que nem mesmo os planetas são nomeados.”

Embora o argumento em si não fosse totalmente novo (o teólogo Santo Agostinho já havia escrito, no século V, que os escritores sagrados não pretendiam ensinar ciência, “uma vez que tal conhecimento em nada contribuía para a salvação”), as declarações ousadas de Galileu estavam prestes a colocá-lo em rota de colisão com a Igreja Católica. A Carta a Benedetto Castelli marcou apenas o início do perigoso caminho que acabaria por levá-lo a ser declarado “veemente suspeito de heresia” em 22 de junho de 1633. No geral, se examinarmos os registros da vida de Galileu em termos de sua satisfação pessoal, ela tem um traçado que se assemelha ao formato de um “U” invertido, com um pico pronunciado em algum momento logo depois de suas numerosas descobertas astronômicas, seguido por uma queda bastante pronunciada. Ironicamente, a trajetória parabólica dos projéteis, que Galileu foi o primeiro a determinar, descreve uma curva semelhante.

No fim das contas, o desfecho trágico de Galileu apenas ajudou a transformá-lo em um dos grandes heróis de nossa história intelectual. Afinal, há poucos cientistas cuja vida e cujas realizações inspiraram peças teatrais inteiras (como a inesquecível A vida de Galileu, de Bertolt Brecht, encenada pela primeira vez em 1943), dezenas de poemas e até uma ópera. Basta também notar que, ao pesquisar no Google o nome “Galileu Galilei”, encontram-se nada menos do que 36 milhões de resultados, mais uma demonstração de um impacto que muitos acadêmicos de hoje gostariam de ter.

Albert Einstein certa vez escreveu que Galileu “é o pai da física moderna — na verdade, de toda a ciência moderna”. Ao dizer isso, ele estava ecoando o filósofo e matemático Bertrand Russell, que também chamou Galileu de “o maior dos fundadores da ciência moderna”. Einstein acrescentou que a “descoberta e a utilização do raciocínio científico” por Galileu foram “uma das conquistas mais importantes na história do conhecimento humano”. Esses dois pensadores não tinham o hábito de distribuir elogios, mas havia uma base sólida para essa distinção. Por meio de sua insistência obstinada e pioneira de que o livro da natureza tinha sido “escrito na linguagem da matemática”, e sua bem-sucedida fusão de experimentação, idealização e quantificação, Galileu literalmente reformulou a história natural. Ele fez com que ela deixasse de ser uma mera coleção de relatos vagos, verbais e nebulosos embelezados por metáforas, para se tornar uma magnífica obra abrangendo (quando o conhecimento contemporâneo permitia) teorias matemáticas rigorosas. De acordo com essas teorias, as observações, as experiências e o raciocínio se tornaram os únicos métodos aceitáveis para descobrir fatos a respeito do mundo e para investigar novas conexões na natureza. Como Max Born, vencedor do Nobel de Física em 1954, afirmou: “A atitude e os métodos científicos das pesquisas experimentais e teóricas são os mesmos há séculos, desde Galileu, e assim permanecerão.”

Apesar de suas proezas científicas, não devemos ter a impressão de que Galileu fosse uma pessoa das mais fáceis ou amáveis, nem mesmo que ele fosse um livre-pensador idealista, um explorador que se envolveu aci­dentalmente em controvérsias teológicas. Embora de fato pudesse ser extremamente empático e solidário com os membros de sua família, era capaz de demonstrar intolerância e agressividade destruidoras, empunhando sua pena afiada para atacar cientistas que discordassem dele. Diversos estudiosos rotularam Galileu como um fanático, embora nem sempre um fanático pela mesma causa. Alguns diziam que eram pelo copernicanismo — o esquema no qual a Terra e os outros planetas giram em torno do Sol —, outros afirmavam que ele era fanático por sua própria arrogância. Havia ainda quem acreditasse que ele estava lutando pela Igreja Católica, ávido por impedir que ela cometesse um erro de proporções históricas ao condenar uma teoria científica que ele estava convencido que um dia ia se provar que representava a descrição correta do cosmos. Em defesa de seu fanatismo, porém, provavelmente ninguém esperaria menos de um homem que se propôs a mudar não apenas uma visão de mundo que existia havia séculos, mas também introduzir abordagens inteiramente novas para o que constitui o conhecimento científico.

Sem dúvida, Galileu deve grande parte da fama acadêmica às suas descobertas espetaculares com o telescópio e à divulgação extremamente eficaz de suas conclusões. Ao voltar o novo dispositivo para o céu em vez de observar embarcações a vela ou seus vizinhos, ele foi capaz de mostrar maravilhas como: que há montanhas na superfície da Lua; que Júpiter tem quatro satélites em sua órbita; que Vênus exibe uma série de fases variáveis, como a Lua; e que a Via Láctea é composta de um grande número de estrelas. Mas nem mesmo essas descobertas proverbialmente de outro mundo são suficientes para explicar a enorme popularidade de que Galileu goza até hoje, e o fato de ele, mais do que praticamente qualquer outro cientista (com as possíveis exceções de Sir Isaac Newton e Einstein), ter se tornado o símbolo perene de coragem e imaginação científica. Além disso, o fato de Galileu ter sido o primeiro a estabelecer solidamente a lei dos corpos em queda e de ter criado o conceito fundamental da dinâmica na física obviamente não foi suficiente para fazer dele o herói da revolução científica. No fim das contas, o que distinguiu Galileu da maioria de seus contemporâneos não foi tanto aquilo em que ele acreditava, mas sim por que acreditava e como chegou a essa convicção.

Galileu baseava suas conclusões em dados experimentais (às vezes reais, às vezes na forma de “experimentos mentais”: analisar as consequências de uma hipótese) e contemplação teórica, e não na autoridade. Ele estava preparado para reconhecer e internalizar o fato de que aquilo em que se havia confiado por séculos poderia estar errado. Também teve a perspicácia de afirmar com veemência que o caminho para a verdade científica é pavimentado com experimentação paciente que conduz a leis matemáticas que, por sua vez, tecem todos os fatos observados em uma harmoniosa tapeçaria. Nesse sentido, ele pode definitivamente ser considerado um dos inventores do que chamamos hoje de método científico: uma sequência de etapas que precisa idealmente (embora na realidade isso raramente aconteça) ser cumprida para que se desenvolva uma nova teoria ou para que se alcance um conhecimento mais avançado. O filósofo empirista escocês David Hume fez em 1759 a seguinte comparação pessoal entre Galileu e outro famoso empirista, o filósofo e estadista inglês Francis Bacon: “Bacon indicou à distância o caminho para a verdadeira filosofia: Galileu não apenas o indicou às outras pessoas como avançou consideravelmente nele. O inglês ignorava a geometria; o florentino reviveu essa ciência, destacando-se nela, e foi o primeiro a aplicá-la, juntamente com a experimentação, à filosofia natural.”

Todas as conclusões impressionantes a que Galileu chegou não poderiam ter se dado em um vácuo. Talvez pudéssemos até mesmo argumentar que a época molda os indivíduos mais do que os indivíduos moldam a época. O historiador da arte Heinrich Wölfflin escreveu certa vez: “Nem mesmo o mais original dos talentos é capaz de ultrapassar determinados limites fixados para ele na data de seu nascimento.” Qual foi, então, o contexto no qual Galileu atuou e produziu sua magia única?

Galileu nasceu em 1564, apenas alguns dias antes da morte do grande artista Michelangelo (e também o mesmo ano que trouxe ao mundo o dramaturgo William Shakespeare). Ele morreu em 1642, quase um ano antes do nascimento de Newton. Uma pessoa não precisa acreditar na transmigração da alma de um ser humano para um novo corpo no momento da morte (nem deveria) para perceber que a chama da cultura, do conhecimento e da criatividade é sempre passada adiante de uma geração para a seguinte.

Galileu foi, em muitos aspectos, um exemplo de produto da Renascença tardia. Nas palavras do estudioso Giorgio de Santillana: “Um tipo clássico de humanista que tentava sensibilizar sua cultura para as novas ideias científicas.” O último discípulo e primeiro biógrafo (ou talvez hagiógrafo) de Galileu, Vincenzo Viviani, escreveu sobre seu mestre: “Ele valorizava as boas coisas que tinham sido escritas no âmbito da filosofia e da geometria a fim de elucidar e despertar a mente para sua própria ordem de pensamento e talvez além, mas afirmava que o principal acesso ao rico tesouro da filosofia material era pelas observações e pelos experimentos, que, usando os sentidos como chave, podiam alcançar os intelectos mais nobres e inquisidores.” Os mesmos sentimentos tinham sido expressos pelo grande polímata Leonardo da Vinci cerca de um século antes, quando desafiou aqueles que tinham zombado dele por não ser um “erudito” exclamando: “Aqueles que estudam os antigos e não as obras da Natureza são enteados e não filhos da Natureza, a mãe de todos os bons autores.” Viviani nos conta ainda que o julgamento que Galileu fazia sobre várias obras de arte era altamente valorizado por artistas célebres, como o pintor e arquiteto Lodovico Cigoli, que era amigo dele e, às vezes, seu colaborador. De fato, aparentemente em resposta a um pedido de Cigoli, Galileu escreveu um ensaio no qual discutia a superioridade da pintura em relação à escultura. Até mesmo a famosa pintora barroca Artemisia Gentileschi procurou Galileu quando pensou que o nobre francês Carlos de Lorena, quarto duque de Guise, não havia apreciado suficientemente uma de suas obras. Além disso, em sua pintura Judite decapitando Holofernes, a representação do sangue esguichando estava em conformidade com a descoberta de Galileu da trajetória parabólica dos projéteis.

Os elogios de Viviani não param por aí. Seus aplausos nunca cessam. Em um estilo que lembra muito o do primeiro historiador da arte, Giorgio Vasari, em suas biografias dos grandes pintores, Viviani escreve que Galileu era um excelente alaudista, cujo talento “superava em beleza e graça até mesmo o de seu pai”. Esse elogio em particular parece um pouco descabido: embora seja verdade que o pai de Galileu, Vincenzo Galilei, era compositor, alaudista e teórico musical, e que o próprio Galileu tocava alaúde muito bem, o irmão mais novo dele, Michelangelo, é que era o virtuoso do instrumento.

Por fim, para completar, Viviani relata que Galileu sabia recitar de memória longos trechos de obras dos famosos poetas italianos Dante Alighieri, Ludovico Ariosto e Torquato Tasso. Isso não era adulação exagerada. O poema favorito de Galileu de fato era Orlando furioso, de Ariosto, uma elaborada fantasia de cavalaria, e ele dedicou um trabalho literário sério a uma comparação entre Ariosto e Tasso, no qual exaltava Ariosto ao mesmo tempo que criticava brutalmente Tasso. Certa vez, disse a seu vizinho (e mais tarde biógrafo) Niccolò Gherardini que ler Tasso depois de Ariosto era como chupar limões azedos depois de comer deliciosos melões. Fiel a seu espírito renascentista, Galileu continuou profundamente interessado por arte e poesia contemporânea durante toda a vida, e seus escritos, mesmo os que tratavam de assuntos científicos, refletiam e eram influenciados por sua erudição literária.

Além desse esplêndido contexto artístico e humanístico, houve, é claro, importantes avanços científicos (alguns genuinamente revolucionários) que ajudaram a abrir caminho para o tipo de avanço conceitual que Galileu iria fazer. O ano de 1543, em particular, testemunhou a publicação de não apenas um, mas dois livros que estavam destinados a mudar a visão da humanidade a respeito do microcosmo e do macrocosmo. Nicolau Copérnico publicou Das revoluções das esferas celestes, no qual propunha rebaixar a Terra de sua posição central no sistema solar, e o anatomista flamenco Andreas Vesalius publicou A estrutura do corpo humano, no qual apresentou uma nova compreensão da anatomia humana. Ambos os livros iam contra crenças predominantes que haviam dominado o pensamento desde a Antiguidade. O livro de Copérnico inspirou outros, como o filósofo Giordano Bruno e mais tarde os astrônomos Johannes Kepler e na verdade o próprio Galileu a expandir ainda mais as ideias copernicanas heliocêntricas. Da mesma forma, ao destituir antigas autoridades, como o médico grego Galeno, o livro de Vesalius incentivou William Harvey, o primeiro anatomista a reconhecer a circulação completa do sangue no corpo humano, a defender a primazia das evidências visuais. Grandes avanços aconteceram também em outros ramos da ciência. O físico inglês William Gilbert publicou seu influente livro sobre o ímã em 1600, e o médico suíço Paracelso apresentou no século XVI uma nova perspectiva sobre doenças e toxicologia.

Todas essas descobertas criaram uma certa abertura para a ciência que não existia na Idade das Trevas. Ainda assim, no fim do século XVI, a perspectiva intelectual mesmo das pessoas mais instruídas era predominantemente medieval. Isso iria mudar drasticamente no século XVII. Deve ter havido outros fatores, portanto, responsáveis pelo que podemos chamar de “fenômeno Galileu”. Outras coisas tinham que ter sido radicalmente revistas a fim de criar o terreno fértil que por fim estaria pronto para receber Galileu e promovê-lo à condição de protomártir e símbolo da liberdade científica.

Um importante elemento sociopsicológico no fim do século XVI e início do século XVII foi o surgimento do individualismo, a ideia de que uma pessoa pode alcançar a realização pessoal independentemente de sua condição social. Essa nova perspectiva se manifestou em áreas que vão da aquisição de conhecimentos à acumulação de riqueza, da determinação de verdades morais à avaliação do sucesso nos empreendimentos. A atitude individualista era muito diferente dos valores herdados da antiga filosofia grega, de acordo com a qual as pessoas eram consideradas em primeiro lugar membros de uma comunidade, em vez de indivíduosa A República, de Platão, por exemplo, tinha como objetivo definir e ajudar a construir uma sociedade superior, não uma pessoa melhor.

Durante a Idade Média, o individualismo foi impedido de se enraizar pela ação da Igreja Católica, por meio do princípio de que as verdades e a ética eram determinadas por conselhos religiosos que consistiam em um grupo de “homens sábios”, em vez de pelas experiências, reflexões ou opiniões dos livres-pensadores. Esse tipo de rigidez dogmática começou a rachar com a ascensão dos movimentos protestantes, que se rebelaram contra a afirmação de que esses conselhos eram infalíveis. As ideias defendidas pela subsequente Reforma infiltraram outras áreas da cultura. A guerra foi travada não apenas no campo de batalha e com panfletos de propaganda, cartazes e ensaios, mas também com pinturas de artistas, tais como Lucas Cranach, o Velho, que contrastava o cristianismo protestante e o católico. Foi em parte a difusão dessas convicções individualistas para a filosofia que possibilitou o fenômeno Galileu. As mesmas ideias foram mais tarde colocadas no centro das atenções pelo filósofo francês René Descartes, que argumentou que os pensamentos de um indivíduo são a melhor, se não a única, prova da existência. (“Penso, logo existo.”)

Havia também uma nova tecnologia — a impressão — que possibilitou tanto o acesso do indivíduo ao conhecimento quanto a padronização das informações. A invenção do tipo móvel e da prensa na Europa de meados do século XV teve um impacto imenso. De repente, a educação não era mais um território dominado apenas por uma elite rica, e a disseminação de informações e da erudição por meio de livros impressos aumentou continuamente o número de pessoas instruídas. Mas isso não foi tudo. Mais pessoas, de diferentes classes sociais, agora tinham acesso a precisamente os mesmos livros, o que levou ao estabelecimento de uma nova base de informação e uma forma mais democrática de educação. No século XVII, estudantes de botânica, astronomia, anatomia e até mesmo da Bíblia em, digamos, Roma poderiam usar os mesmos textos que seus colegas em Veneza ou Praga.

A semelhança dessa proliferação de fontes de informação com os efeitos e as ramificações da internet, das mídias sociais e dos dispositivos de comunicação hoje vem à mente de imediato. Como uma precursora inicial do e-mail, do Twitter, do Instagram e do Facebook, a impressão também permitiu que indivíduos transmitissem suas ideias para as massas de forma mais rápida e eficiente. Ao defender a reforma da Igreja, o teólogo alemão Martinho Lutero foi largamente auxiliado pela existência da impressão. Sua tradução da Bíblia do latim para o alemão, representando seu ideal de um mundo onde as pessoas comuns pudessem consultar a palavra de Deus por conta própria, teve um profundo impacto tanto na moderna língua alemã quanto na Igreja de modo geral. Cerca de 200 mil cópias em centenas de reimpressões foram publicadas antes da morte de Lutero. Da mesma forma, nenhum cientista naquela época tinha um talento maior do que o de Galileu para comunicar aos outros suas descobertas. Convencido de que sua mensagem estava inaugurando uma nova ciência, ele via a si mesmo como um grande persuasor, e imprimir livros em italiano, em vez de em latim tradicional (o que beneficiava apenas uns poucos indivíduos instruídos), provou ser uma potente ferramenta para esse fim.

Talvez menos óbvio tenha sido o fato de que a impressão também teve um efeito na matemática. A capacidade de reproduzir diagramas com relativa facilidade, juntamente com a impressão de manuscritos gregos clássicos, renovou o interesse pela geometria euclidiana, da qual Galileu faria uso criativo. Arquimedes, o maior matemático da Antiguidade, iria se tornar seu modelo. Entre muitas outras realizações, Arquimedes formulou a lei da alavanca e a usou habilmente contra os romanos em suas lendárias máquinas de guerra. “Deem-me um ponto de apoio, e eu moverei a Terra!”, conta-se que ele exclamou. Galileu teve prazer em demonstrar que a maioria das máquinas podia, em seus princípios básicos, ser reduzida a algo semelhante a uma alavanca. Por fim, ele também passou a acreditar no modelo de Copérnico, no qual a Terra se movia mesmo sem intervenção humana.

De forma mais ampla, o resgate, as novas edições e a tradução de textos do passado clássico forneceram a base para atitudes mais céticas, investigativas e observacionais. A primazia da matemática como chave tanto para as descobertas práticas quanto para as teóricas estava ficando clara, e ela se tornou rapidamente a inspiração para Galileu. A matemática se provou essencial em áreas que vão da pintura (na qual era usada para definir pontos de fuga e fazer escorços) a transações comerciais (área em que o matemático Luca Pacioli introduziu a contabilidade de dupla entrada com seu influente livro Conhecimentos de aritmética, geometria, proporção e proporcionalidade). O aumento do pensamento numérico na época talvez seja mais bem ilustrado por uma divertida anedota envolvendo lorde Burghley (William Cecil), o principal conselheiro da rainha Elizabeth I da Inglaterra. De acordo com a história, em 1555 ele tomou a surpreendente decisão de pesar a si mesmo, sua esposa, seu filho e os criados da casa, listando todos os resultados.

Finalmente, outro fator que ajudou a aumentar a reverberação das descobertas de Galileu foi a intensa curiosidade a respeito dos mundos recém-descobertos pelos grandes exploradores. Assim como os horizontes geográficos, o conhecimento também se expandiu a partir da última década do século XV. Exploradores como Cristóvão Colombo, John Cabot e Vasco da Gama chegaram às ilhas caribenhas, desembarcaram na América do Norte e descobriram a rota marítima para a Índia, respectivamente, apenas entre 1492 e 1498. Antes de 1520, os seres humanos já haviam circundado o mundo. Não é à toa que, quando tentou resumir a sede de novos conhecimentos e de humanismo que caracterizaram a Renascença, o historiador oitocentista francês Jules Michelet tenha concluído que ela englobava “a descoberta do mundo e do homem”.


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