Livro ‘Uma Mulher no Escuro’ por Rafhael Montes

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Um crime brutal cometido há vinte anos, uma única sobrevivente, o retorno calculado do assassino. Em quem Victoria deve confiar? Neste thriller psicológico, Raphael Montes une romance e suspense em uma narrativa intrincada e sedutora. Victoria Bravo tinha quatro anos quando um homem invadiu sua casa e matou sua família a facadas, pichando seus rostos com tinta preta. Única sobrevivente, ela agora é uma jovem solitária e tímida, com pesadelos frequentes e sérias dificuldades para se relacionar. Seu refúgio é ficar em casa e observar a vida alheia pelas janelas do apartamento onde mora, na Lapa, Rio de Janeiro. Mas o passado bate à sua porta, e ela não sabe mais em quem pode confiar. Obrigada a enfrentar sua própria tragédia, Victoria embarca em uma jornada de amadurecimento e descoberta que a levará a zonas obscuras, mas também revelará as possibilidades do amor….

Editora: Companhia das Letras; 1ª edição (31 maio 2019); Páginas: 256 páginas; ISBN-10: 8535931767; ISBN-13: 978-8535931761; ASIN: B07QN8JZM5

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Biografia do autor: Raphael Montes nasceu em 1990, no Rio de Janeiro. Escritor e roteirista, publicou os romances Suicidas, Dias perfeitos, O vilarejo, Jantar secreto e Uma mulher no escuro, vencedor do Prêmio Jabuti 2020. Seus livros estão traduzidos em mais de 25 países e têm os direitos de adaptação vendidos para o teatro e o cinema. Escreveu os filmes Praça Paris, A menina que matou os pais e O menino que matou meus pais. É criador, roteirista-chefe e produtor-executivo de Bom dia, Verônica, série de sucesso na Netflix, vencedora do Prêmio APCA 2020 nas categorias melhor ator, melhor atriz e melhor dramaturgia.

Leia trecho do livro

Ao meu avô Menezes, que me conta muitas histórias

A noite era o momento das afinidades bestiais, de aproximar-se mais de si mesmo.
Patricia Highsmith, Strangers on a Train

Prólogo

31 de maio de 1998 — domingo

Victoria acordou com o latido dos cachorros no quintal da vizinha. Assustada, sentou na cama e olhou pela janela do quarto, no segundo andar da casa. Ainda era noite. Lá fora, sua árvore favorita balançava com o vento forte. As folhas secas se soltavam e batiam no vidro antes de cair no jardim dos fundos. Diante do armário, a pilha de caixas de presente criava uma sombra de aparência monstruosa. Ela acendeu o abajur, pegou Abu e ficou abraçada ao ursinho branco sob o lençol. Permaneceu alguns segundos parada, com os olhos bem abertos, encarando as estrelas que papai colara no teto brilharem no escuro.

Estava com sede, mas a preguiça de descer as escadas até a cozinha era maior do que tudo. O sábado tinha sido incrível, mas cansativo. Para comemorar o aniversário dela, papai e mamãe tinham feito uma festa de princesa. O quintal fora enfeitado com coroas douradas e bexigas coloridas. Havia um bolo enorme, doces, cachorro-quente e pipoca. As amiguinhas da escola e o pessoal da rua tinham sido convidados. Victoria usara um vestido de princesa, e papai e mamãe haviam lhe dado de presente o lacinho mais bonito que já tinha visto, prateado e com brilhantes. Ela havia corrido o dia inteiro de um lado para o outro, dançado Chiquititas com as amigas — mexe, mexe, mexe com as mãos —, ganhado muitos presentes e cantado parabéns.

Agora, seus pés ardiam. Os cachorros continuavam a latir, cada vez com mais raiva. Era estranho, porque eles costumavam ser mansos, diferente dos gatos da d. Teresinha. Victoria adorava rolar com os cachorros na grama, ficava toda suja de lama, e a mãe não se importava. Então, veio outro som: um gemido alto, agudo, interrompido de repente. De dentro da casa.

Ela colocou os pés para fora da cama, pegou os óculos no criado-mudo e, ainda agarrada a Abu, deslizou pelo chão com as meias coloridas que ganhara da tia Emília. Girou a maçaneta e arriscou dar alguns passos para fora, sem acender a luz. Gritos vinham do quarto dos adultos, no início do corredor. Uma luz amarela escapava por debaixo da porta, iluminando os primeiros degraus da escada. Mamãe chorava aos soluços, papai falava alto, de um jeito que não era dele, e parecia nervoso. Estavam brigando?

“Não precisa ter medo, Abu”, Victoria murmurou para o ursinho.

Como era possível que Eric não estivesse escutando? Era verdade que o irmão dormia pesado e roncava alto, mas… O choro da mãe ficou mais alto. Victoria ouviu uma voz que não reconheceu. Eric também estava envolvido na briga? Os pais deviam estar dando uma bronca nele por sair escondido. Victoria sabia muito bem que era feio mentir, mas o irmão, que já tinha dez anos, parecia ainda não ter aprendido.

Uma mão agarrou seu braço enquanto outra tapou sua boca, impedindo-a de gritar. Victoria chutou o ar.

“Calma, sou eu.”

Ela reconheceu a voz do irmão e parou de se debater. Pensou em reclamar por conta do susto, mas algo no rosto dele a fez ficar quieta na mesma hora. Victoria nunca o tinha visto tão pálido.

“Tem alguém aqui”, Eric disse, baixinho, puxando a irmã para o quarto dele.

Eric fechou a porta devagar e girou a chave. O lugar fedia a chiclete, chulé e biscoito. Ela ajeitou os óculos no rosto para ver melhor o que o irmão estava procurando no fundo do armário. Quando ele se virou, segurava o sabre de luz que ganhara no aniversário de nove anos.

“Vai pra debaixo da cama, Vic.”

A menina obedeceu depressa, ficando de barriga para baixo. Do lado de fora do quarto, a confusão continuava. Os latidos aumentaram e eles escutaram o estrondo de algo pesado rolando pela escada, como um móvel ou uma mala de viagem. Não dava mais para escutar a voz do papai. De repente, os gritos da mãe se tornaram distantes, como se tivesse descido para a cozinha. Em vez de chorar, ela implorava por ajuda. Victoria esticou a cabeça para fora da proteção da cama.

“Fica aqui”, Eric mandou. Ainda que tentasse disfarçar o medo, as pernas dele tremiam. “Vou chamar a polícia.”

O único telefone da casa ficava no térreo, ao lado da televisão da sala.

“Não”, ela disse, começando a chorar baixinho. “Não vai.” Eric se aproximou da porta e a destrancou devagar, pronto para enfrentar o que quer que fosse. Ele ergueu o sabre de luz em posição de ataque. Victoria se esforçou para ver o que podia de onde estava: a porta entreaberta, o tapete sujo, os pés descalços do irmão desaparecendo no corredor escuro. Esperou alguns segundos. Não conseguia ouvir mais nada. Nem gritos nem ofensas. Nenhum sinal do papai ou da mamãe. Só os latidos lá longe.

Era como se tudo não passasse de um pesadelo. Mas seu coração batia forte, lembrando que aquilo era bem real.

Victoria percebeu então que estava fazendo xixi nas calças. Ia levar uma bronca da mãe. Talvez até ficasse de castigo, o que ela odiava. Ia explicar que tinha ficado com medo e… Outro estrondo. Daquela vez, mais perto. Alguém rolou pelo chão, vidros se quebraram. Eric urrou de dor. Então veio uma sequência de baques surdos, como objetos quebrados. Ela nunca tinha ouvido uma briga do tipo. Queria fazer algo, mas estava paralisada.

Eric surgiu em seu campo de visão, rastejando no chão. Ele a encarou por um instante. Havia horror em seus olhos. Levou o indicador trêmulo à boca, para que Victoria permanecesse em silêncio. Ela notou o sangue nas pernas dele e sufocou um grito. Um vulto apareceu na porta, ergueu Eric pela gola e o jogou na cama com força. Victoria deitou de lado e envolveu os joelhos com os braços, mantendo Abu dentro da conchinha. A cada golpe, os gritos do irmão perdiam força, transformados em sussurros gorgolejantes. Filetes de sangue escorriam pela beirada da cama e gotejavam perto dela.

Tsssss. De onde Victoria conhecia aquele barulho? Tsssss. Um cheiro forte invadiu o quarto e ela sentiu a cabeça girar. Tapou o nariz e fechou a boca, como fazia ao mergulhar na piscina, mas não conseguiu segurar por muito tempo. Tossiu baixinho. O invasor estagnou, percebendo sua presença. Antes que ele se agachasse, Victoria deixou Abu para trás e rolou para fora da cama. Saiu correndo sem olhar para trás. Sabia que o homem estava atrás dela.

“Mamãe! Papai!”, gritou no topo da escada. A voz ecoou até se perder na imensidão da sala.

Desceu correndo. Um breu completo engolia a cozinha. A sala estava iluminada apenas pela televisão ligada no mudo, que exibia um filme. As bandeirinhas coloridas e as letras de “Feliz aniversário” continuavam coladas no espelho com fita adesiva. Ainda havia embalagens vazias de docinhos, pratos de plástico usados e guardanapos amassados sobre a mesa. No chão, bexigas pisoteadas e migalhas de bolo e pão de cachorro-quente que tinham caído durante a festa.

Ela deu a volta no sofá para chegar à saída dos fundos. Ao se aproximar, viu a porta de correr entreaberta. Duas pernas brancas se estendiam sobre o batente, como sacos de açúcar caídos. Victoria logo reconheceu a camisola. Correu na direção da mãe e se agachou, desesperada. Sangue saía do peito dela, no ritmo da respiração precária. Ainda estava viva, mas Victoria não tinha coragem de encostar nela. Havia sangue demais.

Corre, a mãe fez com os lábios, sem produzir som. A garganta dela parecia uma boca escancarada em um sorriso esquisito.

A luz da televisão ficou mais clara de repente, e Victoria pôde ver melhor o rosto da mãe. Estava completamente preto, como se coberto por uma tinta viscosa. A menina amava a mãe, amava o pai, amava o irmão. Precisava fazer alguma coisa. Chamar a polícia ou… Ela correu até o móvel da tv e escalou as prateleiras para chegar ao telefone. Discou depressa o único número que sabia de cor e esperou. Atenderam rápido.

“Tia Emília, me ajuda”, Victoria conseguiu dizer antes de ser puxada para trás com violência.

O fone se espatifou. O invasor espremeu o corpinho dela contra o sofá e montou em cima dele, imobilizando suas pernas e tapando sua boca com a mão. Victoria ainda estava aprendendo a rezar o pai-nosso e tentou se lembrar das frases iniciais. Não conseguiu. Agitou os braços, mas o invasor era mais forte. Os óculos dela voaram longe. Notou o rosto embaçado do homem, os cabelos cacheados na altura dos olhos pretos. Ele ergueu o braço direito, segurando a faca enorme que tremeluziu no contraste com a luz, pingando sangue. Victoria fechou os olhos no primeiro golpe. Uma dor lancinante se espalhou depressa por todos os músculos conforme a lâmina rasgava a perna. Veio outro. Sua energia ia embora, não adiantava lutar…

Então, de repente, as investidas cessaram. O invasor jogou a faca longe e pegou algo no cinto de ferramentas. Sacudiu o objeto e mirou na direção dela. A menina reuniu forças e gritou o mais alto que podia, mas era tarde demais. Sentiu de novo o cheiro ruim, os olhos arderam e um gosto amargo desceu pela garganta.

Tsssss.

Na madrugada de seu aniversário de quatro anos, Victoria mergulhou na escuridão.

VINTE ANOS DEPOIS

Não é fácil ser Victoria Bravo. Eu a observo todos os dias. Conheço seus horários, suas manias, seus lugares preferidos. Sei quais remédios toma, de que desenhos animados mais gosta, o que compra no mercado. Conheço seus medos e seus segredos mais bem guardados. Sei que visita a tia-avó quando está de folga, que adora passar o sábado em casa e que frequenta sozinha sessões de cinema à meia-noite. Eu a acompanho à distância. Perco noites de sono observando a única janela de seu apartamento e pensando nela.

As poucas horas que passamos juntos a cada semana são deliciosas, repletas de sutilezas, de palavras não ditas, de olhares carregados de sentido. Mas Victoria é escorregadia. Já estamos nessa há muito tempo, sem que haja qualquer evolução. Um passo, depois outro, então de volta ao início. Sinto que é o momento de avançar, de conquistar mais espaço. Minhas mãos suam, meu coração palpita. Mal vejo a hora.

Desta vez, não tenho dúvidas de que será maravilhoso.

1.

Na esquina do prédio, Victoria parou um instante, pegou a aliança de latão no bolso da calça e a vestiu na mão direita, enquanto Arroz fazia o mesmo com a aliança dele. Ela olhou para cima até encontrar a placa amarela de ALUGA-SE pendurada na janela do quarto andar. Havia dois vasos de flores no parapeito e um adesivo grande colado no vidro, ilegível àquela distância. O prédio era antigo, com fachada pintada de bege e um bonito arco de mármore na entrada.

“Não foi difícil agendar”, Arroz disse, com um sorriso cúmplice.

Seguiram lado a lado pela calçada de pedras portuguesas, sem dar as mãos. O porteiro interfonou para o apartamento 407 e a subida deles foi autorizada. Saindo do elevador, Victoria e Arroz tomaram um corredor largo com tapete vermelho até a porta. Ela tocou a campainha, já escutando os sons lá dentro: um programa de TV infantil, alguém correndo pelo piso de madeira, a porta de um armário batendo e então o giro da chave.

A mulher que abriu não devia ter mais do que quarenta anos, mas parecia saída de uma guerra: os cabelos presos num coque mal-ajambrado, a blusa branca com manchas do que parecia ser molho de tomate, o rosto cansado. Arroz a cumprimentou enquanto Victoria colocava estrategicamente as mãos nos bolsos, fazendo um gesto com a cabeça que tornava desnecessário outro cumprimento. Não era pessoal: ela evitava ao máximo qualquer proximidade física. A anfitriã abriu passagem e disse para ficarem à vontade. Aquele era o momento de que Victoria mais gostava: o primeiro contato com o lugar, com os cheiros, com as cores, com os móveis, com os moradores. Um bombardeio de pequenas informações bastante reveladoras.

A sala era ampla e bonita, com uma mesa redonda próxima à porta, pedaços de moldura recostados nos cantos, latas de tinta abertas, alguns quadros abstratos presos às paredes, diversos brinquedos espalhados pelo chão e um sofá preto onde um menino de cabelos loiros de uns seis anos estava deitado, com os joelhos dobrados, assistindo a um desenho animado no tablet (O show da Luna, se Victoria não estava enganada). O garoto não tirou os olhos da tela quando eles entraram.

Victoria se aproximou da janela com a placa amarela para ver de perto o adesivo no vidro: AQUI MORA GENTE FELIZ, com quatro bonequinhos tipo palito de mãos dadas — papai, mamãe, um menino e uma menina. Era provável que a mulher fosse artista plástica, mas estava claro que, no momento, sua principal função era ser mãe — bastava reparar nos bolsões sob os olhos, típicos de noites em claro. Devia ser casada com um homem que era tanto provedor quanto machista: ele ganhava o dinheiro, ela carregava as crianças nas costas.

Ao virar para a dona da casa, Victoria reparou que também era observada. Havia um incômodo no ar, advindo da sutil perturbação causada pela visita de estranhos.

“Noivos?”, a mulher perguntou, forçando simpatia.

“Isso”, Arroz disse, mostrando a aliança. “Vamos casar daqui a três meses.”

“A gente mora aqui desde que casou. Mas meu marido foi transferido pra Houston e vamos todos pra lá.”

Bingo!, Victoria pensou. A esposa obediente que acompanha o marido bem-sucedido ao redor do mundo.

“Fomos muito felizes aqui”, a dona da casa continuou. “A gente gosta tanto do apartamento que não vai se desfazer dele. A ideia é alugar para um casal legal e confiável.”

“Somos nós”, Arroz disse, e deu uma risada exagerada.

Victoria tinha muita vontade de saber o que a mulher pensava deles. Naquele dia, vestia calça larga de pijama e um blusão azul-marinho confortável, mas não deixara de colocar o lacinho que sempre usava nos cabelos curtos. Arroz tampouco tinha uma aparência das mais normais. Era magro e alto, com quase dois metros, e tinha uma cabeleira preta e volumosa que, quando solta, passava dos ombros. Caminhava meio encurvado, com os braços longos e as mãos enormes jogados ao lado do corpo, como um gigante ossudo e deprimido. Victoria não sabia a idade exata dele. Devia ter uns trinta e tantos, mas se vestia como um adolescente rebelde: bermudas coloridas, camisetas com referências pop (a do dia estampava o pôster de Pulp Fiction, mas ela já vira outras de Laranja mecânica, Breaking Bad, Queen, Iron Maiden…), tênis de corrida e bonés com a aba para trás, escondendo o cabelo. Era bem provável que a mulher os enxergasse como um casal alternativo ou só esquisito.

“Aliás, meu nome é Márcia. Muito prazer.”

“Felipe”, Arroz disse.

“Bianca”, Victoria disse.

Márcia os guiou pelo corredor até o restante da casa, enquanto fazia comentários sobre a vizinhança, o síndico e as comodidades daquela região de Botafogo, que se tornara um polo gastronômico nos últimos anos. No banheiro, o chuveiro gotejava, molhando o tapete. Márcia girou a torneira com raiva para fechá-la direito.

“Crianças…”, disse, com um suspiro. “Enlouquecem a gente às vezes.”

Sobre uma bancada de mármore, havia uma bagunça de vidros de perfume, loção pós-barba, pentes, sabonetes, uma caixa com esmaltes e um copo alto com quatro escovas de dente e uma pasta infantil. Victoria deixou que Márcia seguisse na frente e aproveitou para mexer no copo. Havia duas escovas menores, uma do Buzz Lightyear e outra da Cinderela. Ambas estavam molhadas pelo uso recente. Ela pegou a pasta de dente, espremeu um pouco na palma da mão e lambeu. O gosto reconfortante de morango logo melhorou seu humor.

O primeiro quarto no corredor era do casal. As portas dos armários estavam entreabertas, revelando roupas empilhadas. Havia uma guitarra recostada num canto, próxima à cabeceira oposta da cama bagunçada. Victoria sentiu cheiro de amêndoa no ar, mas não identificou de onde vinha. Enquanto seguiam para o segundo quarto, uma menina de cabelos loiros passou correndo por eles, esbarrando em Arroz enquanto gritava alguma coisa para o irmão.

“Vocês querem ter filhos?”, Márcia perguntou.

Victoria e Arroz se entreolharam.

“Sim”, ele respondeu. “É o plano para o ano que vem.”

“São dois quartos. Enquanto isso, vocês podem usar como escritório ou sala de TV…”

A mulher continuou falando sobre as vantagens do apartamento e as possibilidades de organização dos cômodos. Arroz interagia com ela, fazia perguntas como um cliente interessado. Era impressionante a facilidade que ele tinha de mentir. Para Victoria, era sempre mais difícil. Ela ficava vermelha e com os lábios trêmulos. Arroz entrara na vida dela de modo inusitado: tinham se conhecido havia dois anos pela internet, em um fórum de The Sims. Na época, Victoria já se tratava com o dr. Max e as coisas estavam se ajeitando. Depois de meses de conversa on-line, ela aceitou encontrar Arroz numa lanchonete, incentivada pelo psiquiatra, que insistia na importância da formação de laços.

Em pouco tempo, Arroz havia se tornado o melhor amigo de Victoria. Ela gostava do modo como ele ria, com os ombros abertos e jogando o queixo protuberante para cima e para baixo, gostava de seu entusiasmo por bandas e filmes que ninguém conhecia. Também gostava do fato de saber pouco sobre ele: só que morava sozinho em Copacabana, tinha se formado em enfermagem mas trabalhava com tecnologia e suas grandes paixões eram jogos de tabuleiro e eletrônicos em geral. Victoria não conhecia outros amigos dele, não sabia de onde tirava dinheiro (ela se desdobrava para pagar as contas do apartamento e da casa de repouso com seu salário de garçonete e a aposentadoria da tia-avó), não tinha ideia do seu nome verdadeiro — Arroz já quisera contar, mas ela havia tapado os ouvidos. Toda vez que ele vinha com qualquer informação mais pessoal, Victoria fazia questão de mudar de assunto. Assim, ele também não podia perguntar sobre a vida dela.


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