Livro ‘Um Caminho para a Liberdade’ por Jojo Moyes

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Cinco mulheres vão enfrentar uma cidade inteira por amor aos livros. E juntas vão descobrir o poder do conhecimento, da liberdade e da amizade. Em uma época em que não seguir os costumes e a religião era transgressão gravíssima, o caminho de um grupo de mulheres se cruza de maneira inesperada. A década de 1930 está chegando ao fim, e, em uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos, a ideia de que as moças administrem uma biblioteca itinerante desafia o status quo. Com o compromisso de levar livros para os moradores mais pobres da região, Margery, Alice, Beth, Sophia e Izzy aceitam trabalhar na biblioteca. E à medida que enfrentam inúmeras dificuldades, como aprender a cavalgar...
Páginas: 368 páginas  Editora: Intrínseca; Edição: 1 (13 de novembro de 2019)  ISBN-10: 8551005456  ISBN-13: 978-8551005453  ASIN: B07Z45BFCL

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Biografia do autor: Jojo Moyes nasceu e cresceu em Londres. Trabalhou como jornalista por dez anos, nove deles no jornal The Independent, de onde saiu em 2002 para se dedicar integralmente à carreira de escritora, quando seu primeiro livro, Em busca de abrigo, foi publicado. Desde então já escreveu quatorze romances e uma coletânea de contos. Como eu era antes de você, seu livro de maior sucesso, ocupou o topo da lista de mais vendidos em nove países e foi adaptado para o cinema. Com mais de 35 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, Jojo Moyes é uma das poucas escritoras a ter emplacado três livros ao mesmo tempo na lista de best-sellers do The New York Times. A autora mora em Essex, na Inglaterra, com o marido e os três filhos.

Leia trecho do livro

Barbara Barbara Napier
Que me deu estrelas quando eu precisei.

E para as bibliotecárias do mundo todo.

Prólogo

20 de dezembro de 1937

Escute : quando se entra cinco quilômetros na floresta, logo abaixo de Arnott’s Ridge, o silêncio é tão denso que parece até difícil atravessá-lo. Os pássaros não piam ao amanhecer, nem mesmo no auge do verão, e muito menos agora, quando o ar gelado é tão úmido que chega a endurecer as poucas folhas corajosamente agarradas aos galhos. Nada se move em meio aos carvalhos e às nogueiras; animais selvagens afundam na terra, as peles macias aglomeradas em cavernas estreitas ou troncos ocos. A neve é tão profunda que as pernas do burro somem até a altura dos jarretes, e volta e meia ele vacila e dá uma resfolegada desconfiada, procurando pedras soltas e buracos sob a brancura infinita. Apenas o córrego estreito mais à frente segue resoluto, a água límpida murmurando e borbulhando sobre o leito de pedra, rumo a um ponto final que ninguém aqui jamais avistou.

Margery O’Hare tenta mexer os dedos dentro das botas, mas estão dormentes há muito tempo, e ela estremece ao pensar na dor que vai sentir quando aquecê-los. Três pares de meias de lã, e, àquela temperatura, daria no mesmo se estivesse descalça. Ela acaricia o pescoço do burro, tirando com as luvas grossas e masculinas os cristais que se formam no pelo espesso do companheiro. — Charley, meu garoto, o rango vai ser reforçado esta noite — diz ela, e observa as orelhas enormes do animal se voltarem para trás.

Ela se remexe, ajustando o alforje, conferindo o equilíbrio do burro enquanto descem em direção ao córrego.

— Melaço quente no jantar para você. Talvez eu até coma um pouco também.

Mais seis quilômetros, ela pensa, desejando ter comido mais no café da manhã. Atravessar a escarpa dos índios, subir a trilha de pinheiros amarelos, depois mais dois pequenos vales, e a velha Nancy apareceria, entoando cânticos como sempre fazia, a voz nítida e alta ecoando pela floresta conforme ela caminha — balançando os braços feito uma criança — para encontrá-la.

— Não precisa andar oito quilômetros para me encontrar — diz ela a Nancy a cada quinzena. — É o nosso trabalho. Por isso estamos a cavalo.

— Ah, vocês, garotas, já fazem coisas demais. Ela sabe o real motivo. Assim como sua irmã Jean, acamada na minúscula casinha de madeira em Red Lick, Nancy não pode sequer conceber a possibilidade de perder a leva seguinte de histórias. Tem sessenta e quatro anos, três dentes bons e uma quedinha por caubóis bonitos.

— Aquele Mack McGuire faz meu coração estremecer que nem lençol no varal. — Ela une as mãos e ergue os olhos para o céu. — Do jeito que Archer descreve ele, nossa, parece que está saindo das páginas do livro e me jogando naquele cavalo. — Ela se inclina para a frente, como se contasse um segredo. — E não é só naquele cavalo que eu ficaria feliz de montar. Quando eu era mais moça, meu marido dizia que eu tinha um traseiro e tanto!

— Não duvido, Nancy — responde ela toda vez, e a outra explode em uma gargalhada, batendo nas coxas, como se nunca tivesse dito aquilo.

Um galho se quebra ali perto, e as orelhas de Charley se agitam. Com orelhas daquele tamanho, deve conseguir ouvir até o que acontece em Louisville.

— Por aqui, garoto — diz ela, afastando-o de um afloramento rochoso. — Vai ouvir a voz dela em um minuto.

— Indo para algum lugar?

Margery vira o rosto abruptamente.

Ele cambaleia um pouco, mas seu olhar não vacila. Ela percebe a espingarda engatilhada, que ele carrega feito um tolo, com o dedo no gatilho.

— Vai olhar para mim agora, é, Margery?

Ela mantém a voz firme, a cabeça a mil. — Estou vendo você, Clem McCullough. — Estou vendo você, Clem McCullough. Ele cospe ao repetir a frase, como uma criança malcriada no pátio da escola. Seu cabelo está eriçado de um lado, como se tivesse amassado ao dormir.

— Você me olha de cima, empinando esse seu nariz. Olha como se eu fosse uma sujeira no seu sapato. Como se você fosse especial.

Ela nunca teve medo de muita coisa, mas conhece os homens das montanhas bem o bastante para saber que não deve arrumar confusão com um bêbado. Sobretudo um bêbado com uma arma na mão.

Faz uma rápida lista mental de pessoas que pode ter ofendido — Deus sabe que não são poucas —, mas McCullough? Além do óbvio, não consegue pensar em nada.

— Qualquer desavença que sua família tinha com meu pai foi enterrada junto com ele. Sou a única que restou e não estou interessada em rixas de família.

McCullough está bem no caminho dela agora, as pernas enterradas na neve, o dedo ainda no gatilho. Sua pele tem o tom arroxeado de alguém embriagado demais para perceber o frio que está sentindo. Provavelmente também está embriagado demais para acertar a mira, mas ela não quer se arriscar.

Margery ajusta o peso, desacelerando o animal, e olha para o lado. As margens do córrego são bem íngremes, com árvores demais para que ela consiga passar. Teria que convencê-lo a se afastar ou passar por cima dele, e a tentação de escolher a segunda opção é grande.

As orelhas do burro se voltam para trás. No silêncio, ela ouve o próprio coração batendo, pancadas insistentes nos ouvidos. Distraída, se dá conta de que talvez nunca tenha ouvido o coração bater tão alto.

— Estou só fazendo meu trabalho, Sr. McCullough. Ficaria agradecida se me deixasse passar.

Ele franze a testa, percebendo o insulto disfarçado sob a menção exageradamente polida de seu nome, e, quando o velho move a arma, ela percebe o erro.

— Seu trabalho … Se acha tão importante e superior. Sabe do que você precisa? — Ele cospe ruidosamente, aguardando a resposta. — Eu disse: sabe do que precisa, garota? — Imagino que a minha ideia do que preciso seja muito diferente da sua.

— Ah, você tem resposta para tudo. Acha que a gente não sabe o que vocês andam fazendo? Acha que a gente não sabe o que vocês andam espalhando entre as mulheres decentes e devotas? A gente sabe o que estão aprontando. Você tem o diabo no corpo, Margery O’Hare, e só tem um jeito de tirar o diabo de uma garota feito você.

— Bem, eu com certeza adoraria ficar para descobrir, mas estou ocupada com a minha rota, então quem sabe a gente não continua isso…

— Cale a boca! — McCullough ergue a arma. — Cale a porra dessa sua boca.

Ela fica quieta.

Ele avança dois passos, as pernas abertas e firmes.

— Desça desse burro.

Charley se mexe, inquieto. O coração de Margery parece uma pedra de gelo na boca. Se ela se virar e fugir, ele vai atirar. A única rota é seguindo o córrego; o chão da floresta é pedregoso e difícil de atravessar, a mata é fechada demais para que consiga abrir caminho. Não há ninguém em um raio de quilômetros, ela se dá conta, ninguém a não ser a velha Nancy avançando lentamente pela montanha.

Ela está sozinha, e ele sabe disso.

A voz dele fica mais grave.

— Eu disse: desça agora.

Ele dá mais dois passos na direção dela, esmagando a neve ruidosamente.

E eis então a pura verdade, para ela e todas as outras mulheres por ali: não importa quão inteligente você seja, quão esperta, quão independente — pode sempre ser superada por um homem idiota com uma arma. O cano da espingarda está tão perto que ela observa os dois buracos negros sem fim. Com um grunhido, ele larga a arma de repente, deixando-a pender na alça às suas costas para segurar as rédeas dela. O burro empina, de forma que a moça se debruça desajeitadamente em seu pescoço. Ela sente McCullough agarrar sua coxa com uma das mãos, enquanto estende a outra em direção à arma. Seu hálito está azedo de álcool, e a mão, muito suja. Cada célula do corpo de Margery se retesa com o toque.

E então ela ouve a voz de Nancy ao longe.

Ah, a paz que tantas vezes abandonamos!
Ah, que dor inútil carregamos…

Ele levanta a cabeça. Ela ouve um Não! , e alguma parte distante de si percebe com surpresa que o som saiu da própria boca. Os dedos do homem a agarram e puxam, e ele leva o braço estendido à sua cintura, desequilibrando-a. No ímpeto determinado dele, no hálito repulsivo, ela sente seu futuro transformar-se em algo sombrio e terrível. Mas o frio o deixou sem jeito, e ele se atrapalha ao tentar pegar a arma outra vez, virando de costas para ela, e é nesse instante que ela vê sua chance. Enfia a mão esquerda no alforje e, quando ele vira o rosto, ela larga as rédeas, segura o outro canto com a mão direita e bate o livro pesado com toda a força — — bem na cara dele. A arma dispara, um som potente ecoando nas árvores, e ela ouve a cantoria ser brevemente silenciada, os pássaros alçando voo, formando no céu uma nuvem escura e trêmula de asas agitadas. Quando McCullough cai, o burro dá um pinote e se joga para a frente, assustado, cambaleando por cima dele, e Margery arqueja, segurando-se no pito da sela.

Então ela segue pelo leito do rio, a respiração presa na garganta, o coração disparado, confiando nos passos seguros do burro para se manter firme na água congelante e agitada, sem ousar olhar para trás e ver se McCullough conseguiu se levantar para ir atrás dela.

1

Três meses antes

Todos que se abanavam diante da loja ou ao passar pela sombra das árvores de eucalipto concordavam que estava insanamente quente para o outono. O salão comunitário de Baileyville estava impregnado com um cheiro forte de sabão de soda cáustica e perfume velho, corpos amontoados em seus vestidos de popelina e ternos de verão. O calor chegara a atravessar até mesmo as paredes, fazendo as tábuas de madeira rangerem e suspirarem em protesto. Colada às costas de Bennett enquanto ele passava pela fileira lotada, desculpando-se conforme as pessoas se levantavam com um suspiro mal disfarçado, Alice podia jurar que sentia o calor de cada corpo transferir-se para o seu toda vez que alguém se movia para deixá-los passar.

Desculpe. Desculpe.

Bennett finalmente alcançou dois lugares vazios, e Alice se sentou, as bochechas coradas de vergonha, ignorando os olhares de soslaio dos que os rodeavam. Bennett olhou para a própria lapela, retirando um fiapo inexistente, depois para a saia dela.

— Você não trocou de roupa? — murmurou ele.

— Você disse que estávamos atrasados.

— Não disse isso para você vir com roupas de ficar em casa.

Ela tentara fazer um escondidinho, uma forma de incentivar Annie a servir algum prato que não fosse do Sul. Mas as batatas ficaram verdes, ela não havia conseguido aumentar a temperatura do fogão, e tinha respingado gordura nela quando deixou a carne cair na chapa. Bennett chegou procurando por ela (Alice havia, é claro, perdido a noção do tempo) e não conseguiu entender de jeito nenhum por que ela não podia simplesmente deixar os afazeres culinários para a governanta quando algo importante ia acontecer.

Alice colocou a mão sobre a maior mancha de gordura na saia e resolveu deixá-la ali durante a hora seguinte. Porque aquilo com certeza levaria uma hora. Ou duas. Ou — piedade, Senhor — três. Igrejas e reuniões. Reuniões e igrejas. Às vezes, Alice van Cleve sentia que só trocara um cotidiano tedioso por outro. Naquela mesma manhã, na igreja, o pastor McIntosh passara quase duas horas discursando sobre os pecadores, que aparentemente planejavam a dominação ímpia da cidadezinha, e agora, se abanando, parecia tão pronto para retomar a fala que chegava a ser perturbador.

— Recoloque os sapatos — murmurou Bennett. — Alguém pode ver.

— É esse calor — disse Alice. — Meus pés são ingleses. Não estão acostumados a essa temperatura.

Embora não estivesse olhando para o marido, sentiu a repreensão dele. Mas estava com muito calor e cansada demais para ligar, e a voz do pastor era tão entediante que ela só captava meia dúzia de palavras — germinar… rebanho… praga… sacolas de papel… — e não conseguia se importar muito com o resto.

A vida de casada, disseram, seria uma aventura. Viajar para uma terra nova! Afinal, havia se casado com um americano. Comidas novas! Uma cultura nova! Novas experiências! Ela se imaginara em Nova York, de terninho elegante, em restaurantes movimentados e calçadas lotadas. Enviaria cartas para casa se gabando das novas experiências. Ah, Alice Wright? Não foi ela que se casou com aquele americano lindo? Sim, recebi um cartão-postal dela — esteve no Metropolitan Opera ou no Carnegie Hall… Ninguém tinha lhe avisado que haveria tantas visitas a tias idosas com conversa fiada e louça chique, tantos remendos e costuras inúteis ou, pior ainda, tantos sermões mortalmente entediantes. Sermões e reuniões sem fim, com décadas de duração. Ah, como aqueles homens gostavam de ouvir a própria voz! Ela tinha a impressão de que levava uma bronca de horas quatro vezes por semana.

Os Van Cleve haviam parado em nada menos do que treze igrejas a caminho dali, e o único sermão de que Alice gostara fora o que ouvira em Charleston, onde o pregador falou durante tanto tempo que a congregação finalmente perdeu a paciência e decidiu se unir para “calá-lo com música” — começaram a cantar até engolir a voz do pastor, para que ele entendesse o recado, e, um tanto mal-humorado, encerrasse a pregação. Suas tentativas de falar mais alto em meio à cantoria determinada que só aumentava foram em vão, e fizeram Alice rir. Conforme havia constatado, os ouvintes em Baileyville, Kentucky, pareciam decepcionantemente absortos.

— Coloque-os de volta, Alice. Por favor.

Seu olhar cruzou com o da Sra. Schmidt, em cuja sala tomara chá duas semanas antes, e Alice logo virou o rosto para a frente, tentando não parecer simpática demais para que ela não pensasse em convidá-la de novo.

— Bom, obrigado, Hank, pelas dicas de como armazenar sementes. Tenho certeza de que vamos botar as lições em prática. — Enquanto Alice deslizava novamente os pés para dentro dos sapatos, escutou o pastor acrescentar: — Ah, não se levantem ainda, senhoras e senhores. A Sra. Brady pediu um minutinho de sua atenção.

Alice sabia muito bem o que aquela frase significava, e tirou os sapatos outra vez. Uma senhorinha de meia-idade foi até o púlpito — o tipo que seu pai descreveria como “bem acolchoada”, com enchimento firme e curvas sólidas, dignos de um sofá de qualidade.

— É a respeito da biblioteca móvel — disse a senhora, abanando o pescoço delicadamente com um leque branco e ajeitando o chapéu. — Gostaria de chamar a atenção de vocês para alguns acontecimentos recentes. Estamos todos cientes dos efeitos… hum… devastadores que a Depressão teve neste grande país. Tanta atenção tem sido dedicada à sobrevivência que muitos outros aspectos de nossa vida tiveram de ser deixados de lado. Alguns de vocês talvez estejam a par dos esforços formidáveis do presidente e da Sra. Roosevelt para restaurar a atenção à alfabetização e ao aprendizado. Bem, no início da semana, tive o privilégio de tomar um chá com a Sra. Lena Nofcier, presidente do Serviço de Bibliotecas da Associação de Pais e Alunos do Kentucky, e ela nos disse que, como parte de seus projetos, a WPA, agência que cuida da administração do progresso de obras públicas, instituiu um sistema de bibliotecas móveis em diversos estados, inclusive aqui no Kentucky. Alguns de vocês talvez já tenham ouvido falar na biblioteca que montaram no Condado de Harlan, certo? Bem, ela se mostrou imensamente bem-sucedida. Sob o amparo da própria Sra. Roosevelt e da WPA…

— Ela é da igreja episcopal.

— O quê?

— Roosevelt. É da igreja episcopal.

Uma das bochechas da Sra. Brady sofreu um pequeno espasmo.

— Bem, não vamos julgá-la por isso. É nossa primeira-dama e está tentando fazer coisas ótimas pelo nosso país.

— Era melhor que estivesse tentando se colocar em seu lugar, não agitando as coisas por aí.

Um homem com uma papada enorme vestindo um terno de linho claro concordou com a cabeça e olhou ao redor, buscando apoio.

Do outro lado da congregação, Peggy Foreman inclinou-se para ajeitar a saia bem no momento em que Alice notou sua presença, o que deu a impressão de que Alice a encarava fazia tempo. Peggy fez uma careta e empinou o pequeno nariz, então murmurou algo para a moça ao lado. Esta, por sua vez, se virou e lançou o mesmo olhar desagradável para Alice, que se recostou no banco tentando conter o rubor que subia pelas bochechas.

Alice, você não vai se adaptar se não fizer amizades, Bennett repetia, como se ela pudesse convencer Peggy Foreman e seu time de caras azedas.

— Sua namoradinha está me amaldiçoando a distância de novo — murmurou Alice.

— Ela não é minha namoradinha.

— Bem, ela certamente achava que era.

— Eu já disse: éramos jovens. Eu conheci você e… Bem, o resto é passado.

— Gostaria que dissesse isso a ela.

Bennett se aproximou um pouco.

— Querida, reclusa desse jeito, eles vão achar que você é meio… esnobe.

— Sou inglesa, Bennett. Não fomos feitos para ser… acolhedores.

— Só acho que quanto mais você interagir, melhor será para nós dois. Papai também acha.

— Ah. Ele acha, é?

— Não faça isso.

A Sra. Brady dirigiu-lhes um olhar severo.

— Como eu ia dizendo, devido ao sucesso de tais empreitadas nos estados vizinhos, a WPA liberou fundos para criarmos a nossa própria biblioteca itinerante aqui no Condado de Lee.

Alice reprimiu um bocejo.

* * *

No aparador de casa havia uma foto de Bennett com o uniforme de beisebol. Tinha acabado de fazer um home run e exibia uma expressão peculiar de intensidade e alegria, como se naquele instante vivenciasse uma experiência transcendental. Ela desejou que ele a olhasse daquele jeito de novo.

Mas, quando se permitia pensar no assunto, Alice van Cleve percebia que seu casamento tinha sido consequência de uma série de acontecimentos aleatórios, que começou com um cachorro de porcelana em pedaços, resultado de uma partida de badminton indoor entre ela e Jenny Fitzwalter (estava chovendo — o que mais poderiam fazer?), e se intensificou com a perda de sua vaga na escola de secretariado devido a constantes atrasos, até o dia do escândalo indecoroso que fez com o chefe de seu pai durante uma reunião de Natal. (Mas ele colocou a mão no meu traseiro enquanto eu estava servindo os canapés! , protestou Alice. Não seja vulgar, Alice, disse a mãe, estremecendo). Essas três ocasiões — além de um incidente envolvendo os amigos de seu irmão Gideon, muito ponche com rum e um tapete destruído (ela não percebeu que o ponche era alcoólico! Ninguém disse!) — levaram seus pais a sugerirem o que eles chamavam de período de reflexão , que equivalia a manter Alice dentro de casa . Ela os ouvira conversar na cozinha. Ela sempre foi assim. É igual à sua tia Harriet, dissera o pai com desdém, o que fez a mãe passar dois dias inteiros sem falar com ele, como se a ideia de Alice ser um produto exclusivo de sua linhagem genética fosse ofensiva demais para suportar.

Assim, durante o longo inverno, enquanto Gideon ia a bailes e festas intermináveis, passava fins de semana inteiros na casa de amigos ou farreando em Londres, Alice foi aos poucos excluída das listas de convidados e passou a ficar o tempo todo em casa, trabalhando de má vontade em algum bordado torto. Suas únicas saídas consistiam em acompanhar a mãe em visitas a parentes idosos ou a reuniões do Instituto da Mulher, onde os assuntos costumavam ser bolo, arranjos de flores e A Vida dos Santos — como se estivessem tentando literalmente matá-la de tédio. Ela parou de pedir detalhes a Gideon, pois só piorava seu ânimo. Em vez disso, jogava cartas emburrada, roubava no Monopoly de mau humor e se sentava com o cotovelo na mesa da cozinha e o rosto apoiado nas mãos, escutando o rádio que prometia um mundo muito além das preocupações sufocantes do seu.

Portanto, dois meses depois, quando Bennett van Cleve surgiu sem aviso, em uma tarde de domingo, no festival de primavera do ministério — com seu sotaque americano, seu maxilar quadrado e o cabelo louro, carregando ares de um mundo a milhares de quilômetros de Surrey —, francamente, poderia ter sido o Corcunda de Notre Dame e ela acharia que se mudar para uma torre de igreja com sinos tocando era mesmo uma excelente ideia, muito obrigada.

Os homens olhavam muito para Alice, e Bennett logo ficara encantado com aquela jovem inglesa elegante, de grandes olhos castanhos e cabelo louro volumoso e ondulado, cuja voz nítida e articulada era diferente de tudo que já ouvira em Lexington e que, como notara seu pai, poderia muito bem ser uma princesa britânica, a julgar pelos modos requintados e a maneira refinada com que segurava uma xícara de chá. Quando a mãe de Alice comentou que de fato tinham uma duquesa na família, por um casamento duas gerações antes, Van Cleve pai quase enfartou de alegria.

— Uma duquesa? Uma duquesa real? Ora veja! Ah, Bennett, sua querida mãe teria adorado isso, não é?

Pai e filho visitavam a Europa com um grupo de missionários do Ministério Integrado do Kentucky do Leste a fim de observar como os fiéis exerciam a fé fora dos Estados Unidos. O próprio Sr. Van Cleve havia financiado a viagem de diversos participantes, em homenagem à falecida esposa, Dolores, fato que costumava alardear nas pausas entre as conversas. Podia ser um homem de negócios, mas aquilo não significava nada, nada, se não trabalhasse sob os auspícios de Deus. Alice achou que ele demonstrara certa decepção com as pequenas e um tanto tépidas expressões de fervor religioso na St Mary’s — e a congregação sem dúvida fora pega de surpresa pelos rugidos fervorosos do pastor McIntosh sobre fogo e enxofre (a pobre Sra. Arbuthnot teve que ser levada por uma porta lateral para respirar um pouco de ar fresco). Mas a falta de devoção dos britânicos, observou o Sr. Van Cleve, era mais do que compensada por suas igrejas e catedrais, além de toda a sua história. E a história em si não era uma experiência espiritual?

Alice e Bennett, enquanto isso, estavam ocupados com a própria experiência, um pouco menos sagrada. Despediram-se de mãos dadas e com calorosas expressões de afeto, do tipo que são acentuadas pela perspectiva de separação iminente. Trocaram cartas durante a passagem de Bennett por Rheims, Barcelona e Madri. As cartas alcançaram um ponto particularmente intenso quando ele chegou a Roma, e, na volta, só os familiares mais distantes ficaram surpresos com o pedido de casamento. Alice, com o entusiasmo de um passarinho que vê a porta de sua gaiola se abrir, hesitou por meio segundo antes de dizer sim, sim, aceitava o pedido de seu apaixonado — e então deliciosamente bronzeado — americano. Quem não aceitaria o pedido de um homem lindo, de maxilar quadrado, que a olhava como se ela fosse feita de fios de seda? Todos os demais haviam passado os últimos meses olhando-a como se ela estivesse contaminada.

— Nossa, você é perfeita — dizia Bennett, segurando o pulso fino da amada entre o indicador e o polegar, os dois jovens sentados no balanço do jardim dos pais dela, as golas erguidas para se protegerem da brisa, enquanto os pais de ambos observavam da janela da biblioteca, cada um secretamente aliviado por suas próprias razões. — É tão delicada e refinada. Como um puro-sangue.

O “refinada” se destacava em seu sotaque americano.

— E você é absurdamente lindo. Feito uma estrela de cinema.

— Mamãe teria adorado você. — Ele passou o dedo por sua bochecha. — É como uma boneca de porcelana.

Seis meses depois, Alice podia apostar que ele já não a via como uma boneca de porcelana.

Casaram-se logo, justificando a pressa com a necessidade do Sr. Van Cleve de retornar aos negócios. Alice teve a impressão de que seu mundo sofrera uma reviravolta; sua felicidade e empolgação foram tão intensas quanto havia sido seu abatimento durante o longo inverno. A mãe de Alice fez as malas da filha com a mesma alegria quase indecorosa com que contara a todos em seu círculo sobre o adorável genro americano, cujo pai era um rico industrialista. Talvez tivesse sido melhor se ela demonstrasse um pouco de tristeza com a mudança de sua única filha para um lugar nos Estados Unidos que ninguém jamais havia visitado. Mas Alice também ficara igualmente animada, raciocinou ela. O irmão era o único que parecia triste de verdade, e ela tinha quase certeza de que superaria aquilo no próximo fim de semana fora.

fim da amostra…


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