Novo livro do autor vencedor do Prêmio Templeton. O caldeirão é onde se misturam ingredientes visando sua transmutação. É o laboratório onde buscamos alguma forma de transcendência, o portal que nos transporta a uma nova realidade. Em O caldeirão azul, Marcelo Gleiser reúne ensaios provenientes de sua reflexão sobre as questões que considera mais relevantes para o momento atual: nossa relação com o planeta e suas criaturas, com os membros da sociedade em que vivemos, e com a tecnologia, que está transformando quem somos e como nos relacionamos. O tema que conecta todos os textos é a visão da ciência como produto da nossa capacidade de nos maravilhar com o mundo toda vez que nos engajamos com o mistério da criação. Na sua essência, encontramos o mesmo ímpeto que move o espírito religioso: como lidar com nossas questões existenciais mais profundas, nossa origem, nossa vida, nossa morte…
Págians: 224 páginas; Editora: Record; Edição: 3 (17 de junho de 2019); ISBN-10: 8501117099; ISBN-13: 978-8501117090; ASIN: B07SN5C8FB
Leia trecho do livro
Para todos aqueles que se questionam.
— Em cada explorador da Natureza encontramos uma reverência religiosa.
ALBERT EINSTEIN
Prólogo
O caldeirão é onde o cozinheiro mistura os ingredientes, transformando-os na comida que alimenta nosso corpo e mente. É, também, onde o alquimista mistura os metais, buscando uma transmutação em que tanto ele quanto sua mistura se transformam em algo diferenciado: os metais, em ouro; o alquimista, em um ser iluminado. O caldeirão é o laboratório onde buscamos alguma forma de transcendência, o portal que nos transporta a uma nova realidade. É azul porque o nosso planeta, visto do espaço, é azul. O Caldeirão Azul é o palco das nossas vidas, da nossa busca incessante por transformar cada um de nossos dias em algo mais mágico, mais significativo.
O tema que conecta todos os meus escritos é simples: vejo a ciência como produto da nossa capacidade de nos maravilhar com o mundo a cada vez que nos engajamos com o mistério da criação. Na sua essência, encontramos o mesmo ímpeto que um devoto: a devoção aos meus irmãos e irmãs humanos, ao nosso planeta raro e precioso, e ao mistério que nos cerca, e que tanto nos inspira a querer sempre saber mais.
Os ensaios que reúno neste volume, revisados e ampliados de publicações originais ao longo dos anos na Folha de S.Paulo e, nos Estados Unidos, na National Public Radio e na Orbiter Magazine, representam a cristalização de algumas das minhas ideias que considero as mais relevantes para o momento atual: nossa relação com o planeta e suas criaturas, com os membros da sociedade como um todo, e com a tecnologia, que está transformando, a passos estonteantes, quem somos e como nos relacionamos. Se nosso futuro é incerto, não devemos tomá-lo como já definido. Devemos, sim, pensar criticamente sobre as escolhas que fazemos e em como podemos nos tornar agentes das transformações que queremos ver no mundo. As incertezas do presente deveriam ter o efeito de mobilizar, e não de paralisar. Devemos isso às gerações futuras, que irão herdar o mundo que deixamos para elas.
Hanôver, 14 de março de 2019
PARTE I
CIÊNCIA E ESPIRITUALIDADE
A irresistível necessidade de acreditar
Ao discutirmos a complexa relação entre ciência e religião, com frequência nos deparamos com posições polarizadas: ou se afirma “acredito” ou se afirma “não acredito”, com total convicção em ambos os casos. Com frequência ainda maior, se perguntarmos no quê, exatamente, a pessoa acredita, ou de onde vem a necessidade de sua fé, nos deparamos com respostas vagas, que incluem “tradição”, “comunidade”, “mortalidade”. Um grupo menor, que se dá a reflexões mais profundas, examina, questiona e reavalia sua fé regularmente, sabendo que o crer é fluido. Nossas convicções mudam com a idade e, com essas mudanças, muda, também, nossa relação com a fé.
Nessa polarização milenar, muita animosidade desnecessária vem da convicção infundada de que os que têm opinião diferente da nossa em relação à fé, ou os que acreditam de forma diferente, estão profundamente equivocados, ou são simplesmente tolos ou, pior, são infiéis que não merecem viver. Deixando de lado a radicalização trágica dos muçulmanos de organizações terroristas como ISIS ou Al-Qaeda, vimos exemplos mais amenos, mas não menos sintomáticos, do radicalismo entre ateus e cristãos nos debates presidenciais durante a eleição de Donald Trump nos EUA, e em várias eleições no Brasil, onde ateus são considerados os candidatos menos elegíveis. É impensável, hoje, ter um presidente que se proclama não crente nos Estados Unidos ou no Brasil.
Essa dicotomia é uma distorção cultural que precisa ser repensada.
Na realidade, existe todo um espectro de modalidades da fé humana, que ocupam o espaço entre o radicalismo extremo dos dois polos. Por exemplo, Francis Collins, diretor do Instituto Nacional de Saúde dos EUA — o órgão governamental que administra o maior número de bolsas de pesquisa nas áreas da medicina e da biologia —, não vê qualquer conflito entre ser cristão e ser cientista. Como ele, muitos cientistas veem a prática científica como mais um modo de admirar a obra divina, ou seja, como uma forma de devoção religiosa. Essa é uma tradição antiga, que inclui alguns dos patriarcas da ciência moderna, como Copérnico, Newton, Kepler e Descartes. A ruptura veio mais tarde, com o Iluminismo do século XVIII.
Para ateus radicais conhecidos do público, como o biólogo inglês Richard Dawkins, o escritor americano Sam Harris e o falecido jornalista inglês Christopher Hitchens, esse tipo de posição intermediária é inconsistente com os fundamentos da ciência: a Natureza é material, e a matéria é organizada segundo leis quantitativas. O objetivo da ciência é descobrir essas leis; não existe espaço para mais nada.
Segundo eles, qualquer posição conciliatória entre ciência e religião cria uma série de problemas filosóficos. Como exemplo, citam a coexistência incompatível do natural com o sobrenatural. Como a Natureza pode ser tanto natural quanto sobrenatural? Por definição, chamar um evento que ocorre e é percebido por alguém como sendo um “fenômeno sobrenatural” observa. É claro que um fenômeno chamado de sobrenatural, uma vez observado, é perfeitamente natural, mesmo se misterioso ou aparentemente inexplicável. Um fantasma que é visto não é mais uma entidade sobrenatural. E agora? Os ateus usam essa incompatibilidade como argumento definitivo contra a crença no sobrenatural e, por extensão, contra a religião. Sem se dar conta, acabam usando sua fé na não fé como prova, e acabam caindo em uma contradição, como veremos adiante.
Outros adotam a posição que o biólogo americano Stephen Jay Gould chamou de NOMA (do inglês, Non-Overlapping Magisteria, magistérios que não se superpõem), e compartimentalizam a ciência e a religião dentro de esferas limitadas de influência, afirmando algo como “a religião começa onde a ciência termina”. Apesar de cômoda, essa posição não vai muito longe. À medida que a ciência avança, a fronteira entre os dois magistérios vai migrando, refletindo uma posição teológica antiquada conhecida como “Deus dos Vãos”, a religião tapando os buracos da nossa ignorância científica. Isso é um tanto indignante para Deus, dado que o espaço para a crença vai diminuindo ao entendermos mais sobre o funcionamento do mundo natural. Me parece bem mais prudente basear a fé em algo mais abstrato do que nossa ignorância sobre o mundo. Além disso, afirmar categoricamente que o sobrenatural tem uma existência intangível e imensurável posiciona sua natureza além do discurso científico, anulando qualquer possibilidade de uma troca construtiva de ideias.
O fato é que a ciência e a religião claramente se superpõem na cabeça das pessoas, nas escolhas que fazemos na vida, nos desafios morais que a sociedade moderna enfrenta. É tragicamente inocente negar o poder da religião no mundo, com bilhões de pessoas declarando-se seguidores de algum tipo de fé, mesmo que muitas delas definam sua fé de forma vaga. Para muitos, a necessidade da fé vai além da crença, tendo um papel social essencial: ela cria alianças que restituem um senso de dignidade e de comunidade que governos muitas vezes deixam de oferecer. Numa realidade miserável, a visão divina enaltece o espírito.
Ademais, a posição dos ateus radicais é inconsistente com os parâmetros do método científico, algo que talvez surpreenda muita gente. Para entender isso, basta ver que o ateísmo é a crença na não crença, já que nega categoricamente a possibilidade da existência de qualquer tipo de divindade. O problema é que a ciência só pode negar categoricamente a existência de algo após observações absolutamente conclusivas. E observações absolutamente conclusivas não existem. Existem apenas convicções, baseadas num conhecimento parcial da realidade. Toda medida científica tem uma margem de erro e um limite de precisão. Como podemos ter certeza do que ainda não medimos? A posição mais consistente com o método científico é a do agnóstico, como haviam já percebido Thomas Huxley e Bertrand Russell, entre muitos outros: não vejo qualquer razão para crer, mas baseado no que sei não posso negar absolutamente a possibilidade de que alguma entidade divina exista. Como escreveu Huxley, criador do termo “agnóstico”: “É errôneo afirmar que se tem certeza da verdade objetiva de uma proposição, a menos que seja fornecida evidência que justifique logicamente esta certeza.”
Em vista da diversidade de posições, a questão essencial é a origem dessa necessidade de acreditar, que identificamos na maioria absoluta das culturas do passado e do presente. O que a crença oferece que tantos precisam?
Pertencer a um grupo religioso confere um senso de comunidade imediato. Ao encontrar outros membros de sua comunidade na igreja ou no templo, a pessoa vê sua crença justificada, dado que é compartilhada por tantos outros. Mais do que a crença em si, a pessoa se vê integrada num grupo com valores afins. Isso é tanto verdade para as pessoas de fé quanto para aquelas seculares, sejam elas ateias ou agnósticas. Seres humanos são criaturas tribais, e tribos definem-se a partir de certos símbolos, mitos ou código moral. Não há dúvida de que nossos ancestrais entenderam que existe uma enorme vantagem em pertencer a um grupo. Fazer parte de uma tribo oferecia uma proteção que aumentava as chances de sobrevivência num ambiente extremamente hostil: unidos venceremos. Tanto no passado quanto no presente, fazer parte de uma tribo confere legitimidade social imediata. Para muita gente, a fé pode ser a justificativa oferecida para participar de um grupo religioso, mas é o senso de comunidade, de valores divididos pelo grupo, que está por trás da devoção.
Existe, no entanto, outro aspecto da fé, bem mais subjetivo do que este tribal. Como descreveu o psicólogo americano William James em sua obra-prima As variedades da experiência religiosa, a experiência religiosa atinge seu clímax na subjetividade da experiência individual, na comunhão da pessoa com o desconhecido, na percepção de transcendência dos limites da existência humana, delineada pelas barreiras do espaço e do tempo. As visões e revelações dos profetas e dos santos, a experiência emocional do divino, ocorrem no indivíduo, mesmo quando induzidas pelo grupo (por exemplo, através de rituais). Existe muito mais no mundo do que aquilo que percebemos ou podemos medir, e essas características “ocultas” são igualmente importantes na nossa construção do que definimos como realidade.
Como escreveu James, “toda a sua vida subconsciente, seus impulsos, suas crenças, suas necessidades, são a premissa da sua existência consciente; existe algo dentro de você que sabe de forma absoluta que o resultado disso tudo deve ser mais verdadeiro do que qualquer tipo de argumento lógico, por mais articulado que seja, que tente contradizer essas convicções subconscientes”.
Mesmo que o filósofo George Santayana e outros tenham criticado James por “encorajar a superstição”, ninguém pode negar o fato de que a razão tem alcance limitado. A ciência, se vista como expressão da razão humana, espalha-se por todos os cantos do conhecimento de forma magnífica. Mas seu alcance não é ilimitado. Existe outra dimensão da fé, separada dos rituais tribais e da religião organizada, que dá expressão a uma necessidade primária que temos de comunhão com o desconhecido. Este é o aspecto mais universal da necessidade humana de crer, que transcende divisões arbitrárias da fé criadas no decorrer da história; as religiões, as tradições, os cultos, as tribos e suas regras. Não falo aqui de uma supersticiosidade irracional ou mística. O que identificamos é a necessidade individual da crença, expressa por cada um de forma variada.
Quando Einstein mencionou sua “emoção religiosa cósmica” para descrever sua conexão espiritual com a Natureza, tentava expressar precisamente essa atração humana pelo mistério, pelo desconhecido. “Espiritual” não implica necessariamente na crença em uma dimensão não material ou sobrenatural. O que pode surpreender a muitos — especialmente aos que veem cientistas por meio do estereótipo do racionalista frio — é que essa atração pelo mistério, em essência, uma atração espiritual pela Natureza, inspira muitos cientistas em seu trabalho. Não é Deus que se busca no questionamento científico, mas a transcendência do humano, a busca por uma dimensão além do cotidiano que dá sentido à nossa busca por sentido.
Ao estender sua curiosidade ao oceano do desconhecido, mesmo o cientista secular está praticando essa crença, expressando a necessidade universal que temos de conhecer nossa história e de explorar o novo, ampliando, assim, nossa visão da realidade.