Livro ‘Os Onze’ por Felipe Recondo

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O STF, seus bastidores e suas crises

O mais completo relato sobre a atuação do principal tribunal do país, do Mensalão ao governo Bolsonaro. Desde o julgamento da ação penal 470, mais conhecida como Mensalão, o Supremo Tribunal Federal viu-se no centro do debate nacional. Seus integrantes se tornaram amplamente conhecidos e, também por isso, passaram a usar a opinião pública como fundamento para seus votos. Nos turbulentos anos de uma das maiores crises políticas e econômicas que o país já viveu, o protagonismo a que foi alçado o tribunal criou um conjunto novo de desafios. O jornalista Felipe Recondo, especialista na cobertura do STF, acompanha e analisa o cotidiano do Supremo há mais de uma década. Luiz Weber estuda o funcionamento do tribunal e analisa os movimentos e forças políticas que interagem com o STF. Ao longo de anos, os dois realizaram centenas de entrevistas para escrever Os onze: O STF, seus bastidores e suas crises

Editora: Companhia das Letras; 1ª edição (31 julho 2019); Páginas: 376 páginas; ISBN-10: 8535932380; ISBN-13: 978-8535932386; ASIN: B07RRCL44S

Leia trecho do livro

Para Adriana e Caetano
Para Fernanda, Maria Luiza e Fernando

Livro Os onze: O STF, seus bastidores e suas crises por Felipe Recondo

Apresentação

As páginas que seguem narram fatos recentes que envolvem decisões do Supremo Tribunal Federal, muitos deles reconstituídos a partir de entrevistas realizadas ao longo de mais de uma década de cobertura da Corte, de 2007 a 2019. Nesse período, tivemos extensas conversas com ministros — Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes — e ex-ministros — Eros Grau, Néri da Silveira, Sydney Sanches, Octavio Gallotti, Maurício Corrêa, Rafael Mayer, Carlos Venoso, limar Galvão, Célio Borja, Nelson Jobim, Carlos Ayres Brido, Joaquim Barbosa, Xavier de Albuquerque, Aldir Passarinho, Francisco Rezek, Paulo Brossard, Sepúlveda Pertence e Moreira Alves —, com advogados, ex-procuradores-gerais da República, ex-secretários de comunicação do tribunal, parlamentares, juízes que auxiliam os ministros, e por fim com aqueles que conhecem os meandros do tribunal em diferentes níveis: assessores e ex-assessores dos gabinetes, “capinhas” dos ministros — os assistentes de plenário, encarregados de levar os processos, providenciar água etc., que usam uma capa curta, daí o apelido — e seguranças do STF.

Inúmeros fatos foram apurados e observados a quente, no dia a dia da lida jornalística. Detalhes e bastidores de muitos deles vieram à tona com o desenrolar dos acontecimentos, a partir de depoimento das fontes diretas, checadas e confirmadas por fontes primárias, ajudando-nos a melhor perceber seus contornos, causas e consequências.

A ideia do livro surgiu em 2007, depois de julgada a denúncia do mensalão. No início, se não contávamos com um norte preciso, pelo menos tínhamos um mote. O Supremo não era mais “esse outro desconhecido”, como disse o ministro Aliomar Baleeiro, num livro clássico. O mensalão inseriu o tribunal no centro do debate público, ainda que houvesse pouca clareza acerca de seu funcionamento, sua dinâmica e seu papel institucional.

O projeto de livro foi se amoldando aos fatos, às crises que abalroaram governos (mensalão, manifestações de 2013, Lava Jato, impeachment da presidente Dilma Rousseff, denúncias contra o presidente Michel Temer, prisão do ex-presidente Lula — que naquele abril de 2018 era primeiro colocado nas pesquisas das eleições de outubro —, ascensão de Jair Bolsonaro, participação dos militares nos quadros governamentais) e indispuseram o tribunal contra outros poderes (prisão de parlamentares; afastamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha; do presidente do Senado, Renan Calheiros; do senador Aécio Neves; proibição de doações empresariais; avanço sobre descriminalização do aborto). Decisões controversas mudaram o rumo do país (união homoafetiva; prisão após condenação em segunda instância; pesquisas com células-tronco embrionárias; Lei de Imprensa; biografias não autorizadas; Marcha da Maconha etc.), tragédias ocorreram. Foi justo depois da morte do ministro Teori Zavascki que o escopo deste livro se fechou: a história de um novo STF cobria um arco que ia do mensalão à Lava Jato, tendo por epílogo o começo do governo Bolsonaro. Um tribunal diferente de todos os Supremos do passado, conforme depoimento de antigos integrantes da Corte. Um tribunal que passou a exercer de fato sua competência criminal; que se viu devassado pela voltagem política do julgamento do mensalão; que assistiu atento às manifestações de 2013 — que mudaram o modo como a sociedade se relacionava com o sistema político. Um tribunal cujos integrantes se tornaram conhecidos do grande público — motivo pelo qual muitos ministros passaram a considerar a opinião pública como fundamento para seus votos. Ministros que assistiram com ânimos diferentes à eleição de Jair Bolsonaro e que, divididos institucionalmente, terão pela frente o desafio de tratar com uma nova realidade, com militares encabeçando altos postos do poder civil e fazendo críticas abertas ao STF.

O foco, aqui, não são as investigações dos escândalos de corrupção. Procuramos detalhar como o Supremo julgou, como se relacionou com a imprensa e com a opinião pública, como atuou com os outros poderes, como se adaptou aos tempos de pressão das redes sociais, como se reformatou com as mudanças de composição, como atravessou suas próprias disputas internas e lidou com suas crises no período que vai de 2005 a princípios de 2019.

Na fase de apuração, entrevistamos todos os ministros do Supremo da atual composição (2019) — alguns foram ouvidos várias vezes, em momentos distintos —, ex-ministros do STF; observadores externos deste novo tribunal; ministros de outros tribunais, em especial do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal de Contas da União (TCU); integrantes do Poder Executivo, advogados-gerais e advogados da União; procuradores federais e ministros da Justiça.

Também analisamos milhares de e-mails e mensagens de WhatsApp compartilhados conosco e com outras fontes (inclusive ministros do STF), além de processos, votos, palestras e manifestações de agentes públicos — de fora e do próprio Supremo. Contamos ainda com a contribuição de professores e amigos, como Diego Werneck Arguelhes, Thomaz Pereira, Joaquim Falcão, Oscar Vilhena, Fernando Leal, Leandro Molhano, Conrado Hübner Mendes, Rafael Mafei, Alexandre Araújo Costa, Ivar Hartmann, Vera Karam, Rodrigo Kaufmann, Carlos Bastide Horbach, Davi Tangerina Pierpaolo Cruz Bottini, Beto Vasconcelos, Pedro Abramovay, Eduardo Mendonça, Gustavo Binenbojm, Sérgio Renault, Rubens Glezer, Eloisa Machado, Rogério Arantes, Luciano Da Ros, Fernando Fontainha, Andrés del Río, Juliana Cesario Alvim Gomes, Virgílio Afonso da Silva, Otavio Luiz Rodrigues Junior, Jane Reis, Rodrigo Brandão, Marcelo Proença, André Rufino, Alexandre Veronese, Cristiano Paixão, Janaína Penalva, Humberto Jacques, Henrique Araújo Costa, Silvana Batini, Caio Farah Rodriguez, Magda Brossard, Felipe de Paula, Luiz Guilherme Mendes de Paiva, José Reinaldo de Lima Lopes, Patrícia Perrone Campos Mello, Carlos Victor Nascimento dos Santos, Carlos Alexandre de Azevedo Campos.

Também tivemos a ajuda dos historiadores do cotidiano, jornalistas que cobrem ou cobriram o STF, como Luiz Orlando Carneiro, Carolina Brígido, Márcio Falcão, Mariana Oliveira, Silvana de Freitas, Mariângela Gallucci, Maria Fernanda Elderly, Felipe Seligman, Maria Filomena da Paixão, Juliano Basile, Mirella D’Elia, Renan Ramalho, Maira Magro, Rafael Moraes Moura, Beatriz Bulia, Talita Fernandes, André Richter, Letícia Casado, Breno Pires, Debora Santos, Rodrigo Haidar, Márcio Chaer, Miguel Mattos, Matheus Teixeira, Rafael Baliardo, Pedro Canário, Luiz Felipe Barbiéri, Luísa Martins, Rosanne D’Agostino, Isadora Peron, Reynaldo Turollo, Luiz Maklouf Carvalho, Sérgio Amaral, Irineu Tamanini, Renato Parente, Marcone Gonçalves, Andréa Mesquita, Mauro Burlamaqui, Luiz Felipe de Casrilevítz Rebuelta, João Batista Magalhães, Delorgel Kaíser, Joyce Russi, Layrce de Lima.

Brasília, maio de 2019

Prólogo

“Achei que seria preso”, exagera o ministro Luís Roberto Barroso, num desabafo após tensa reunião no gabinete da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Por suas declarações e pelo tom das críticas aos militares presentes, cogitou a punição de sua impertinência.

Impertinência registrada pelo general Sérgio Etchegoyen, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, que se surpreendeu com o ímpeto do ministro contra suas evasivas.

Barroso e Etchegoyen mantinham uma relação institucional fria e distante, permeada pela suspeição. O general não era facilmente decifrável, sempre com suas longas inspirações antes de responder às investidas contra ele. Barroso, por seu turno, desconfiado da máquina de inteligência que Etchegoyen comandava de dentro do Palácio do Planalto, costumava dizer: “Não sei o que ele pensa, mas ele sabe tudo o que eu falo”.

Os dois sentaram frente a frente na comprida mesa retangular da sala da Presidência do TSE na noite de 23 de outubro de 2018, uma terça-feira, a cinco dias do segundo turno das eleições para presidente da República. Na cabeceira, Rosa Weber comandava a reunião, mantendo a fleuma. De um lado da mesa, Barroso e Edson Fachin, do Supremo, e os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que integram o TSE. Do outro, Etchegoyen, acompanhado de João Tadeu Fiorentini, major-brigadeiro e então Secretário Nacional de Segurança Pública, e dos advogados que integram o TSE como ministros — Admar Gonzaga, Sérgio Banhos (hoje juiz titular do TSE) e Carlos Horbach. No fundo da sala, o então diretor-geral da Polícia Federal, Rogério Galloro, e dois policiais federais.

No dia anterior fora divulgado o vídeo em que um militar da reserva — Antônio Carlos Alves Correia — xinga e faz ameaças a Rosa Weber: “Essa salafrária, essa corrupta, essa ministra corrupta e incompetente”. Segundo o militar, Weber não deveria ter recebido em seu gabinete representantes do PT e do PDT que contestaram a candidatura de Jair Bolsonaro com base na notícia de que uma rede de empresários havia financiado o disparo de informações falsas em favor da campanha do capitão.

A ministra, avessa às redes sociais e, portanto, alheia às ameaças, recebeu ligações solidárias sem saber a que vinham. Quando alguns de seus assessores lhe encaminharam o vídeo, ela não se alterou. Naquele mesmo dia, na reunião do gabinete de crise montado para acompanhar as eleições, anunciou que encaminharia uma representação à Policia Federal contra o autor dos ataques. Parecia que o assunto estava resolvido.

Ao final da reunião, da qual participavam os ministros do TSE, como Fachin e Barroso, chegou a mensagem de que o presidente do Supremo, Dias Toffoli, estava a caminho. Queria falar com os presentes. Barroso não esperou por ele e foi para seu gabinete. Fachin e Weber permaneceram. Toffoli descreveu um cenário sombrio. Lembrou que o então comandante do Exército, general Vilas Boas, tinha 300 mil homens armados que majoritariamente apoiavam a candidatura de Jair Bolsonaro. Por sua vez, o candidato e seus seguidores, incluindo militares, colocavam sob suspeita a lisura do processo eleitoral, em especial as urnas eletrônicas. O TSE, portanto, deveria ser claro e firme em seus posicionamentos. Era preciso demonstrar o perfeito funcionamento das instituições.

Quem ouviu as palavras de Toffoli ficou com a sensação de que as suspeitas de instabilidade não eram chifre em cabeça de cavalo: de fato, era de incerteza o clima sobre os rumos do país.

No mesmo dia, terça-feira, outro episódio fez a temperatura subir. Decano do Supremo, o ministro Celso de Mello, impressionado com os ataques a Weber e ao tribunal, sobretudo aqueles que partiam de integrantes das Forças Armadas, reagiu na sessão da Segunda Turma do STF: “O discurso imundo, sórdido e repugnante do agente que ofendeu a honra da ministra Rosa Weber […] exteriorizou-se mediante linguagem profundamente insultuosa, desqualificada por palavras superlativamente grosseiras e boçais, próprias de quem possui reduzidíssimo e tosco universo vocabular, indignas de quem diz ser oficial das Forças Armadas, instituições permanentes do Estado brasileiro que se posicionam acima das paixões irracionais e não se deixam por elas contaminar”, protestou o decano.

Todos os ministros se solidarizaram com Weber e decidiram remeter o caso à Procuradoria-Geral da República. A decisão tinha pouco efeito prático, pois a Policia Federal fora acionada e já preparava a representação à Justiça Federal do Rio de Janeiro. Na reunião marcada no TSE para aquela noite, os ministros Barroso e Fachin pretendiam externar aos militares sua apreensão.

Fachin foi incisivo. Lembrou aos membros das Forças Armadas ali presentes que o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle do Judiciário, havia afastado o juiz federal Eduardo Luiz Rocha Cubas, de Goiás, quando eles, os militares, descobriram que o magistrado pretendia mandar recolher urnas eletrônicas para periciá-las. “O senhor não pode imaginar como isso é forte. Agora é a hora de vocês cortarem na carne”, disse Fachin a Etchegoyen.

Barroso seguiu a retórica de primeiro elogiar as Forças Armadas — como fizera em outras oportunidades —, para então cobrar uma posição à altura das agressões contra Rosa Weber e o TSE. O responsável pelos vídeos deveria ser preso de imediato.

Etchegoyen respirava alto, ganhando tempo para estruturar o pensamento antes de responder. Então revelou que o comandante do Exército havia representado ao Ministério Público Militar contra Alves Correia, que também o atacara. Não era o bastante, disseram os ministros. Ora, se o próprio comandante do Exército, quando ofendido, não havia tomado medida extrema, por que os ministros tanto insistiam?, questionava Etchegoyen.

Os ministros do Supremo pareciam dar a Alves Correia uma importância que ele não tinha, continuou Etchegoyen, pois coronel da reserva e nada era a mesma coisa. Mas se o Exército não pode prender um coronel da reserva, o que pode fazer para garantir a tão propalada disciplina militar?, teimavam os juízes.

O general prosseguiu. Lembrou aos ministros do Supremo, guardiões da Constituição, que “depois da Constituição de 1988” — e disse isso percebendo a ironia da situação — ninguém poderia ser preso sem o devido processo legal. Portanto, disse ele, “a gente não manda prender e está preso”.

Embora estivesse evidente que Etchegoyen estava se desviando dos tiros — nem sequer olhava para Barroso enquanto falava —, outro ministro do TSE ali presente, Admar Gonzaga, considerava que, naquele momento de tensão pré-eleitoral, as circunstâncias nas Forças Armadas talvez recomendassem não fazer mais do que se estava fazendo. Escreveu um bilhete e o passou para Barroso, que depois de lê-lo o entregou a Fachin. Nenhum dos dois se convenceu. Mantiveram a tônica. As evasivas do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência pareciam insuflar o ministro do Supremo — ao ponto da inconveniência, disse um colega. Barroso exasperava-se, persistia em seus argumentos, cortava Etchegoyen.

Os dois ministros do Supremo diziam que o Exército — ênfase em “o Exército” — estava sendo conivente. Etchegoyen respirou e disse que “o Exército”, do qual fazia parte havia décadas, não podia ser associado àquele tipo de manifestação.

O assunto havia desbordado da racionalidade. Naquele momento, ninguém podia ser detido: o Código Eleitoral proíbe a prisão de eleitores “desde 5 (cinco) dias antes e até 48 horas depois” — regra que vale para o primeiro e segundo turnos. Defender a prisão do coronel algoz de Rosa Weber seria ignorar a lei.

A reunião, “a mais surreal da qual participei”, como disse reservadamente um dos ministros, terminou sem que nenhuma decisão tivesse sido tomada. Talvez a briga tenha emperrado tudo. Barroso e Fachin marcaram posição, intransigentes. Outros ministros estranharam: “Quem diria que numa discussão entre militares e o Supremo os militares seriam os democratas”, ironizou um ministro do TSE que permaneceu calado durante a reunião.

Para tentar apaziguar os ânimos no TSE, o ministro Alexandre de Moraes foi ao QG do Exército conversar com Vilas Boas. O general lhe garantiu que, quando da primeira ocorrência envolvendo Antônio Carlos Alves Correia (aquela cujo alvo era o próprio comandante), fora protocolada uma representação no Ministério Público Militar, que não tomou nenhuma providência. E comentou que, em tese, o militar da reserva poderia ser preso disciplinarmente. Mas o plano só iria adiante se o TSE entendesse que não havia impedimento para a prisão no período eleitoral. Como Moraes descartou a ideia, Villas Boas determinou que Alves Correia passasse a ser monitorado pelo aparelho de inteligência. O ministro telefonou para o procurador-geral militar pedindo que a investigação seguisse e deixou o QG munido de cópias dos procedimentos para apresentá-los a Weber e aos demais colegas de TSE. Informou-os dos detalhes da conversa e disse que estava tudo resolvido.

O episódio se encerrou e, fora o clima de azedume plenamente instaurado, como disse Weber, não acarretou nenhum resultado concreto.

No domingo seguinte, Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República. As eleições turbinaram as críticas que eram feitas ao Supremo. Quando liderava as pesquisas de intenção de votos, o então candidato chegou a defender que se aumentasse o número de ministros para “botar pelo menos dez isentos lá dentro”. Seu filho Eduardo já havia falado na possibilidade de um “cabo e um soldado” fecharem o STF. Estava montado o cenário para que as críticas se transmudassem em ataques.

O Supremo era corroído por seus problemas internos: demora nos julgamentos, precipitação em pautas que por competência seriam do Congresso, superexposição, bate-bocas e agendas ocultas dos ministros. Mas o tom mudou.

Bolsonaro assumiu a Presidência com uma pauta conservadora, moralizadora, de combate à corrupção, de apoio à Operação Lava Jato. O Supremo, que alguns setores consideravam um entrave ao avanço dessa agenda, passou a ser hostilizado por deputados e senadores, ameaçado por pedidos de CPI e de impeachment pela grita informe das redes sociais.

Já em fevereiro de 2019, vazou a informação de que o ministro Gilmar Mendes e sua mulher, Guiomar Feitosa, haviam sido incluídos numa lista de mais cem pessoas politicamente expostas que seriam alvo de uma “análise de interesse fiscal”. A apuração começou em 2018, num consórcio entre Receita e Lava Jato, pela faculdade de Mendes — o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Ao notar que a investigação tinha objetivos pouco claros, o ministro pediu que contadores refizessem todas as checagens e reavaliassem a sua declaração pessoal de imposto de renda e as contas do IDP. Depois dessa reavaliação, Mendes apresentou à Receita uma retificação de sua declaração. E o mi> fez o mesmo — conforme seus sócios, um erro na contabilidade induziu a faculdade a declarar créditos de que não dispunha e por isso o instituto fez a correção de sua prestação de contas, o que resultou num pagamento de cerca de 1 milhão de reais.

Mais tarde se saberia que a apuração não estava atrás de possíveis erros nas declarações de imposto de renda, e sim de levantar eventuais indícios da prática de outros crimes, como corrupção ou tráfico de influência. Além disso, se mostrou viciada — inclusive pelo vazamento de informações sigilosas. Na lista de pessoas a serem investigadas, além de Mendes e Feitosa, constavam outras personalidades, como Roberta Rangel, mulher de Dias Toffoli. O Supremo reagiu. Toffoli pediu à Procuradoria-Geral da República, à Receita e ao ministro da Economia que investigassem as irregularidades nas apurações.

O Supremo parecia de fato disposto a batalhar. Noutra frente, marcou posição quanto às manifestações de integrantes do governo e de sua base de sustentação parlamentar que indicavam retrocessos na proteção de direitos de minorias. Celso de Mello era relator de um dos processos que questionavam a demora do Congresso em aprovar uma lei criminalizando a homofobia. E insistiu com Toffoli para que o tema fosse colocado em pauta. No julgamento iniciado em 20 de fevereiro de 2019, Mello liderou o STF e garantiu apoio para a criminalização, por via judicial, da homofobia. O processo foi interrompido por decisão do presidente do tribunal, sem data para retomada, mas outra cizânia estava criada. O Congresso estava decidido a confrontar o STF – alguns deputados, sobretudo os novatos, pediam o impeachment dos quatro ministros que já haviam votado favoravelmente.

Em março, outro julgamento acendeu os ânimos. Estava em discussão o destino de processos criminais contra políticos investigados por corrupção e lavagem de dinheiro e, ao mesmo tempo, por crimes eleitorais. Os autos deveriam tramitar na Justiça Federal ou na Justiça Eleitoral?

Procuradores que integravam a força-tarefa da Operação Lava Jato foram à imprensa e às redes sociais em defesa da competência da Justiça Federal para processar tais casos, pois a Eleitoral não teria estrutura nem experiência para investigar crimes de grande complexidade. Aqui e ali ventilou-se o fim da Lava Jato na hipótese de o Supremo determinar a remessa dos autos para a Justiça Eleitoral. No dia do julgamento, um dos procuradores, Diogo Castor, denunciou que o STF estaria ensaiando um golpe contra a operação. Nas redes sociais, os ataques ao Supremo se avolumavam. Na imprensa, lia-se que a máquina de mídias sociais bolsonaristas havia escolhido o STF como seu alvo preferencial naquele momento.

Às quartas-feiras, antes de iniciada a sessão plenária, Toffoli promove em seu gabinete um almoço com os ministros. É um estratagema simpático para agregar os colegas, amainar os atritos, ampliar a colegialidade, conversar mais abertamente sobre os problemas da Corte e, mais importante, ouvir a fala livre (e, se possível, espontânea…) dos ministros. O ex-ministro Nelson Jobim lhe havia passado uma dica preciosa: “Escute-os, deixe-os falar”. Naquele dia, Celso de Mello, Marco Aurélio, Cármen Lúcia e Barroso não compareceram. Aos comensais presentes, Fux externou sua indignação com os petardos contra o STF: “Um absurdo”.

A autoridade do STF precisava ser resguardada das investidas que vinha sofrendo. O presidente do tribunal revelou ter encaminhado ofícios à Polícia Federal pedindo que os ataques fossem investigados, mas nenhuma providência fora tomada. Os ministros ainda reclamaram dos procuradores da Lava Jato que insinuavam um golpe do Supremo contra as investigações. Fux afirmou — e Fachin confirmou durante o almoço — que Celso de Mello, então ausente, se revoltara com os termos usados. Para o decano, as críticas haviam exorbitado a liberdade de expressão.

Toffoli pensaria em alguma saída. No dia seguinte telefonou para Mello e expôs sua ideia, que foi bem recebida pelo interlocutor. Depois ligou para Alexandre de Moraes e disse que o queria no comando da investigação. “Eu quero designar você, que entende disso”, ele disse. Moraes, que havia sido secretário de Segurança do Estado de São Paulo, usara sua máquina e seu plantel de contatos para solucionar outro caso importante: as ameaças feitas à então primeira-dama Marcela Temer. O argumento final de Toffoli não podia ser refutado: Era improvável que alguém mais quisesse relatar. Moraes aceitou a tarefa.

No dia 14 de março, minutos antes da sessão plenária do STF, Toffoli conversou com todos os ministros, individualmente, e explicou sua decisão. Não os consultou; apenas lhes comunicou sua resolução. Ninguém objetou.

Enquanto o presidente anunciava sua estratégia em reservado, sua assessoria disparava uma mensagem para os jornalistas: “Um alerta: o presidente fará um anúncio logo no início da sessão de hoje que promete repercutir MUITO”.

Iniciada a sessão, Toffoli empostou a voz e noticiou a abertura de um inquérito “contra tudo e quase todos”, como definiu um de seus assessores de confiança. “O presidente do Supremo Tribunal Federal, no uso de atribuições que lhe confere o regimento interno, considerando que velar pela intangibilidade das prerrogativas do Supremo Tribunal Federal e dos seus membros é atribuição regimental do presidente da Corte, considerando a existência de notícias fraudulentas, conhecidas como fake news, denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, dffamandi e injuriandI, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, resolve, como resolvido já está, nos termos do artigo 43 [do Regimento Interno do STF], instaurar inquérito criminal para apuração de fatos e infrações correspondentes em toda sua dimensão”, anunciou. Alexandre de Moraes foi designado relator.

As críticas ao Supremo não tardaram. A entidade abriu um inquérito a ser julgado por ela mesma? Tal procedimento seria compatível com a Constituição? Não bastasse, a investigação seria tocada por um ministro do Supremo, sem a participação do Ministério Público. Era tudo heterodoxo.

O tribunal ignorava as objeções da imprensa. Toffoli dava mais atenção às críticas daqueles que o circundavam e, sempre que tinha oportunidade, defendia sua decisão. “Tem que dar porrada. Nós só estamos apanhando”, justificou a um amigo na festa de aniversário do ministro Barroso. E acrescentou, irônico: “E o delegado que eu arranjei?”, numa referência ao “delegado Alexandre de Moraes”.

No inquérito aberto por Toffoli, o sistema de distribuição seguiu um procedimento incomum. Normalmente os relatores são definidos por sorteio. Quando um ministro está impedido de participar do julgamento daquela causa — por ser parente de uma das partes, por exemplo —, seu nome é excluído com um dique. E essa informação fica disponível no andamento do processo. Quando um juiz está prevento, ou seja, quando já está relatando um processo semelhante, os nomes dos demais ministros são ticados no sistema e a ação é encaminhada para o prevento. Mesmo que o tema tramite em segredo de Justiça, esta informação fica disponível na página do Supremo. No caso do inquérito aberto por Toffoli, o relator foi designado a priori, uma solução prevista no regimento — mas nunca antes utilizada. A assessoria técnica do tribunal excluiu os outros ministros, deixando habilitado para receber a ação apenas o nome de Alexandre de Moraes.

Com o auxilio de um delegado da Policia Federal e outro da Polícia Civil de São Paulo, a investigação avançou sobre pessoas físicas, perfis de redes sociais e imprensa, o que provocou fortes reações dentro e fora do tribunal. “Qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República”, ponderou Celso de Mello em nota à imprensa, contestando a decisão de Alexandre de Moraes de determinar a retirada do ar de matéria da revista eletrônica Crusoé, que trazia trechos de delação premiada que se referiam a Toffoli.

O inquérito era também uma tentativa de recompor a redoma que tradicionalmente protegia o STF E que foi fragilizada pelas novas gerações de ministros — fosse com brigas internas e estratégias artificiais para favorecer suas agendas próprias, fosse contorcendo argumentos, virando casaca e desprezando a jurisprudência do tribunal, fosse usando a imprensa para atacar os adversários. Mas acabou por fragilizar ainda mais a imagem da instituição.

O resultado desse processo pôde ser lido nas redes sociais, nas críticas abertas e sem cerimônia de juízes, nas ameaças da classe política, na contestação à independência e imparcialidade dos ministros. O STF ampliou seus poderes a partir de 1988; até determinado período — pré-2002 utilizou-os de maneira estratégica e contida; depois de 2006, sobretudo, o tribunal mudou. Catalisando muitas das mudanças, o julgamento do mensalão foi um dos principais responsáveis pelo Supremo de hoje.

Ao longo dos doze capítulos deste livro, descrevemos como este tribunal lida com seus vícios, como se comunica internamente, conversa com o mundo exterior, atua na política e toca os processos.

Um Supremo inventado — pela Constituição de 1988; pela política, que viu no tribunal o terceiro turno para suas disputas; pela sociedade, que passou a apostar na entidade a consumação de garantias fundamentais; pelos novos ministros, que abandonaram a autocontenção que marcou as décadas anteriores. Um Supremo, como todo poder, em teste. E que enfrenta uma de suas maiores crises de legitimidade e de autoridade.

O Supremo Tribunal Federal foi alçado a guardião da Constituição pela política para preservar de ataques circunstanciais o pacto social firmado pós-ditadura. Combater o STF e atacar a Constituição de 1988. Ameaçar o Supremo é um comportamento autocrático, um primeiro sinal do desejo de quem quer governar sem democracia. Esvaziar o tribunal é comprometer o sistema de garantias e direitos individuais.

É tempo de avaliar este experimento de Supremo Tribunal Federal Criticá-lo com propriedade, para poder melhor defendê-lo. É isto que pretende Os onze.

fim da amostra…


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