Livro ‘O mundo assombrado pelos demônios’ por Carl Sagan

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Assombrado com as explicações pseudocientíficas e místicas que ocupam cada vez mais os espaços dos meios de comunicação, Carl Sagan reafirma o poder positivo e benéfico da ciência e da tecnologia para iluminar os dias de hoje e recuperar os valores da racionalidade. Como todos os livros do autor, O mundo assombrado pelos demônios está cheio de informações surpreendentes, transmitidas com humor e graça. Seus ataques muitas vezes divertidos à falsa ciência, às concepções excêntricas e aos irracionalismos do momento são acompanhados por lembranças da infância, quando seus pais o colocaram em contato pela primeira vez com os dois modelos de pensamento fundamentais para o método científico: o ceticismo e a admiração.

Páginas: 512 páginas; ISBN-13: 978-8535908343; ISBN-10: 853590834X; Editora: Companhia de Bolso; Edição de bolso (15 maio 2006); ASIN: B00QVU93JM

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Biografia do autor: CARL SAGAN foi professor de astronomia e ciências espaciais na Universidade Cornell. Autor de dezenas de estudos da área, foi agraciado com várias medalhas e prêmios por suas contribuições ao desenvolvimento e à divulgação da ciência. Dele, a Companhia das Letras publicou Cosmos, O mundo assombrado pelos demônios, Bilhões e bilhões, Contato e Variedades da experiência científica.

Leia trecho do livro

Para Tonio,
meu neto.
Eu lhe desejo um mundo
livre de demônios
e cheio de luz.

Esperamos pela luz, mas contemplamos a escuridão. ISAÍAS 59:9

É melhor acender uma vela do que praguejar contra a escuridão. ADÁGIO

Prefácio
MEUS PROFESSORES

ERA UM TEMPESTUOSO DIA de outono de 1939. Nas ruas ao lado do prédio, as folhas caídas rodopiavam em pequenos redemoinhos, cada um com vida própria. Era bom estar dentro de casa, aquecido e seguro, minha mãe preparando o jantar na cozinha. No nosso apartamento, não havia garotos mais velhos que implicassem com os menores sem motivo. Ainda na semana anterior, eu me envolvera numa briga — não consigo lembrar, depois de todos esses anos, com quem eu tinha brigado; talvez fosse com Snoony Agata, do terceiro andar — e, depois de um murro violento, vi que tinha enfiado o punho pelo vidro laminado da vitrine da farmácia de Schechter.

O sr. Schechter foi solícito:

— Não se preocupe, eu tenho seguro — me disse, enquanto punha um anti-séptico incrivelmente doloroso no meu pulso. Minha mãe me levou ao médico que tinha consultório no andar térreo de nosso prédio. Com uma pinça, ele extraiu um fragmento de vidro. Usando agulha e linha, deu dois pontos.

— Dois pontos! — meu pai repetira mais tarde, naquela noite. Ele sabia o que eram pontos, porque trabalhava como cortador na indústria de vestuário; a sua tarefa consistia em usar uma serra mecânica muito assustadora para cortar os moldes de uma enorme pilha de tecidos — as costas, por exemplo, ou as mangas de casacos e trajes femininos. Depois os moldes eram levados para filas intermináveis de mulheres sentadas à frente de máquinas de costura. Ele ficou satisfeito por eu ter me zangado a ponto de superar minha timidez natural.

Às vezes era bom revidar. Eu não tinha planejado fazer nada violento. Apenas acontecera. Num momento, Snoony estava me empurrando, e no momento seguinte o meu punho atravessara a vitrine do sr. Schechter. Eu tinha machucado o pulso, causado uma despesa médica inesperada, quebrado uma vitrine de vidro laminado, e ninguém estava bravo comigo. Quanto a Snoony, estava mais amigo do que antes.

Eu procurava decifrar qual era a lição. Mas era muito mais agradável pensar sobre o assunto no calor do apartamento, olhando pela janela da sala para a baía de Nova York, do que me arriscar em alguma nova desgraça nas ruas lá embaixo.

Como freqüentemente fazia, minha mãe tinha mudado de roupa e maquiado o rosto, preparando-se para a chegada de meu pai. Falamos sobre a minha briga com Snoony. O sol estava quase desaparecendo, e juntos ficamos olhando as águas agitadas.

— Há gente lutando lá longe, matando-se uns aos outros — disse ela, acenando vagamente para o outro lado do Atlântico. Eu concentrei meu olhar.

— Sei — respondi. — Posso vê-los.

— Não, você não pode vê-los — replicou ela, ceticamente, quase severamente, antes de voltar para a cozinha. — Estão longe demais.

Como é que ela sabia se eu podia vê-los ou não? Fiquei pensando. Forçando o olhar, eu tinha imaginado distinguir uma faixa estreita de terra no horizonte, onde figuras minúsculas estavam se empurrando, se agredindo e duelando com espadas, como faziam em Classic Comics. Mas talvez ela tivesse razão. Talvez tivesse sido apenas a minha imaginação, um pouco como os monstros da meia-noite que, de vez em quando, ainda me despertavam de um sono profundo, meu pijama encharcado de suor, meu coração batendo.

Como se pode saber quando alguém está apenas imaginando? Fiquei olhando as águas cinzentas lá fora até que a noite caísse e me chamassem para lavar as mãos antes do jantar. Quando chegou em casa, meu pai me abraçou. Pude sentir o frio lá de fora quando encostei na sua barba de um dia.

Num domingo daquele mesmo ano, meu pai pacientemente me dera explicações sobre o zero ser uma espécie de variável na aritmética, sobre os nomes dos números grandes que tinham sons desagradáveis, e sobre o fato de não existir o maior número. (“Sempre se pode somar mais um”, ele me ensinara.) De repente, fui tomado por uma compulsão infantil de escrever em seqüência todos os inteiros de um a mil. Não tínhamos folhas de papel, mas meu pai me ofereceu a pilha de papelões cinza que andara guardando das idas de suas camisas à lavanderia. Comecei o projeto ansiosamente, mas fiquei surpreso ao ver como andava devagar. Ainda não tinha ido além das primeiras centenas, quando minha mãe avisou que estava na hora de tomar banho. Fiquei desconsolado. Eu tinha que chegar a mil. Mediador durante toda a sua vida, meu pai interveio: se eu me submetesse de bom grado ao banho, ele continuaria a seqüência. Fiquei superfeliz. Quando saí do banho, ele estava se aproximando de novecentos, e eu consegui chegar a mil só um pouquinho depois da minha hora habitual de dormir. A magnitude dos números grandes nunca deixou de me impressionar.

Foi também em 1939 que meus pais me levaram à Feira Mundial de Nova York. Ali me foi oferecida a visão de um futuro perfeito que a ciência e a alta tecnologia tomavam possível. Uma cápsula do tempo foi enterrada, cheia de artefatos de nossa época, para o proveito dos seres no futuro distante — que, espantosamente, poderiam não saber muita coisa sobre as pessoas de 1939. O “Mundo de Amanhã” seria luzidio, limpo, aerodinâmico e, pelo que eu podia perceber, não teria nem sinal de pessoas pobres.

“Veja o som” era o comando fantástico de uma das exposições. E efetivamente, quando o diapasão era atingido pelo martelinho, uma bela onda sinusoidal passava pela tela do osciloscópio. “Escute a luz”, exortava outro cartaz. E, efetivamente, quando a lanterna brilhava sobre a célula fotoelétrica, eu conseguia escutar algo parecido com a estática de nosso aparelho de rádio Motorola, sempre que o mostrador ficava entre as estações. Estava claro que o mundo continha maravilhas que eu jamais imaginara. Como é que um tom podia se tomar imagem e a luz se tornar ruído?

Meus pais não eram cientistas. Não sabiam quase nada sobre ciência. Mas, ao me apresentar simultaneamente ao ceticismo e à admiração, me ensinaram as duas formas de pensar, de tão difícil convivência, centrais para o método cientifico. Estavam a apenas um passo da pobreza. Mas quando anunciei que queria ser astrônomo, recebi apoio incondicional — mesmo que eles (como eu) só tivessem uma ideia muito rudimentar da profissão de astrônomo. Nunca sugeriram que, consideradas as circunstâncias, talvez fosse melhor eu ser médico ou advogado.

Gostaria de poder lhes contar sobre professores de ciência inspiradores nos meus tempos de escola primária e secundária. Mas, quando penso no passado, não encontro nenhum. Lembro-me da memorização automática da tabela periódica dos elementos, das alavancas e dos planos inclinados, da fotossíntese das plantas verdes, e da diferença entre antracito e carvão betuminoso. Mas não me lembro de nenhum sentimento sublime de deslumbramento, de nenhum indício de uma perspectiva evolutiva, nem de coisa alguma sobre idéias errôneas em que outrora todos acreditavam. Nos cursos de laboratório na escola secundária, havia uma resposta que devíamos obter. Ficávamos marcados se não a conseguíamos. Não havia nenhum encorajamento para seguir nossos interesses, intuições ou erros conceituais. Nas páginas finais dos livros didáticos, havia material visivelmente interessante. O ano escolar acabava sempre antes de chegarmos até aquele ponto. Podiam-se encontrar livros maravilhosos sobre astronomia nas bibliotecas, por exemplo, mas não na sala de aula. A divisão pormenorizada era ensinada como uma receita culinária, sem nenhuma explicação sobre como essa seqüência específica de pequenas divisões, multiplicações e subtrações conseguia conduzir à resposta certa. Na escola secundária, a extração da raiz quadrada era dada com reverência, como se fosse um método entregue outrora no monte Sinai. A nossa tarefa era simplesmente lembrar os mandamentos. Obtenha a resposta correta, e esqueça se você não compreende o que está fazendo. Tive um professor de álgebra muito competente, no segundo ano, com quem aprendi muita matemática; mas ele era também um valentão que gostava de fazer as meninas chorarem. Meu interesse pela ciência foi mantido durante todos esses anos escolares pela leitura de livros e revistas sobre a realidade e a ficção científicas.

A escola superior foi a realização de meus sonhos: encontrei professores que não só compreendiam a ciência, mas eram realmente capazes de explicá-la. Tive a sorte de frequentar uma das grandes instituições de ensino da época, a Universidade de Chicago. Estudava física num departamento que girava em tomo de Enrico Fermi; descobri a verdadeira elegância matemática com Subrahmanyan Chandrasekhar; tive a oportunidade de falar sobre química com Harold Urey; nos verões, fui estagiário de biologia de H. J. Muller, na Universidade de Indiana; e aprendi astronomia planetária com o único profissional que se dedicava em tempo integral a esse estudo na época, G. P. Kuiper.

Foi com Kuíper que adquiri pela primeira vez uma noção do método conhecido como cálculo do verso do envelope: se lhe ocorre uma explicação possível para determinado problema, você pega um envelope velho, apela para o seu conhecimento de física básica, rabisca algumas equações aproximadas sobre o envelope, substitui as variáveis por valores numéricos prováveis, e vê se a sua resposta roça a solução do problema. Se não, tem que procurar uma solução diferente. Esse método corta as tolices assim como uma faca passa pela manteiga.

Na Universidade de Chicago, também tive a sorte de participar de um programa de educação geral planejado por Robert M. Hutchíns, em que a ciência era apresentada como parte integrante da magnífica tapeçaria do conhecimento humano. Considerava-se impensável que alguém desejasse ser físico sem conhecer Platão, Aristóteles, Bach, Shakespeare, Gibbon, Malinowski e Freud — entre muitos outros. Numa aula de introdução à ciência, a visão de Ptolomeu de que o Sol gira ao redor da Terra era apresentada de forma tão convincente que alguns estudantes se flagravam reavaliando seu compromisso com a teoria de Copérníco. No currículo de Hutchíns, o status dos professores não tinha quase nada a ver com a sua pesquisa; inflexivelmente — ao contrário do padrão moderno da universidade norte-americana —, os professores eram avaliados pelo seu ensino, pela sua capacidade de informar e inspirar a próxima geração.

Nessa atmosfera inebriante, consegui preencher algumas das muitas lacunas na minha educação. Grande parte daquilo que era profundamente misterioso, e não apenas na ciência, tomou-se mais claro. E também testemunhei em primeira mão a alegria que sentem aqueles que têm o privilégio de revelar um pouco do funcionamento do Universo.

Sempre fui grato aos meus mentores dos anos 50, e tentei me certificar de que cada um deles soubesse do meu apreço. Mas quando recordo o passado, parece-me claro que não aprendi as coisas mais essenciais com os meus professores da escola, nem mesmo com os meus mestres universitários, mas com meus pais, que nada sabiam sobre ciência, naquele remoto ano de 1939.

1. A COISA MAIS PRECIOSA

Toda a nossa ciência, comparada com a realidade,
é primitiva e infantil — e, no entanto, é a coisa mais
preciosa que temos.

Albert Einstein (1879-1955)

QUANDO DESEMBARQUEI DO AVIÃO, ele esperava por mim, erguendo um pedaço de papelão em que se achava rabiscado o meu nome. Eu estava a caminho de uma conferência de cientistas e profissionais de televisão cujo objetivo, aparentemente inútil, era melhorar a apresentação da ciência na televisão Os organizadores tinham gentilmente enviado um motorista.

— Você se importa se eu lhe perguntar uma coisa? — disse ele enquanto esperávamos pela minha mala. Não, eu não me importava.

— Não é confuso ter o mesmo nome daquele cientista? Levei um momento para compreender. Ele estava caçoando de mim? Finalmente, comecei a entender.

— Eu sou aquele cientista — respondi.

Ele fez uma pausa e depois sorriu.

— Desculpe. Eu tenho esse tipo de problema. Pensei que também fosse o seu. — Estendeu a mão. — Meu nome é William F. Buckley. (Bem, ele não era exatamente William F. Buckley, mas tinha o mesmo nome do famoso e polêmico entrevistador de TV, o que devia lhe render uma boa dose de zombarias bem-humoradas.)

Quando nos acomodamos no carro para a longa viagem, os limpadores de pára-brisa batendo ritmicamente, ele me disse que estava contente por eu ser “aquele cientista” — tinha tantas perguntas a fazer sobre ciência. Eu me importaria?

Não, eu não me importaria.

E assim começamos a falar. Mas, como logo ficou claro, não foi sobre ciência que conversamos. Ele queria falar sobre extraterrestres congelados que definhavam na base da Força Aérea perto de San Antonio, sobre “canalização” (um modo de escutar o que se passa nas mentes dos mortos — pouca coisa, pelo visto), sobre cristais, as profecias de Nostradamus, astrologia, o sudário de Turim… Ele introduzia cada um desses assuntos portentosos com um entusiasmo eufórico. E tive de desapontá-lo todas as vezes.

— As evidências são precárias — eu repetia. — Existe uma explicação muito mais simples.

De certa maneira, ele era bem informado. Conhecia as várias nuanças especulativas sobre, digamos, os “continentes afundados” de Atlântida e Lemuria. Sabia na ponta da língua as expedições submarinas que deviam estar partindo para descobrir as colunas derrubadas e os minaretes quebrados de uma outrora grande civilização, cujas ruínas só eram visitadas atualmente pelos peixes luminescentes do fundo do mar e por gigantescos monstros marinhos. Só que… embora o oceano contenha muitos segredos, eu sabia que não existe nem sinal de confirmação oceanográfica ou geofísica para Atlântida e Lemuria. Pelo que a ciência pode afirmar, esses continentes jamais existiram. Já um pouco relutante a essa altura, eu lhe passei a informação.

Enquanto rodávamos pela chuva, podia vê-lo se tornar cada vez mais soturno. Eu não estava apenas negando alguma doutrina falsa, mas uma faceta preciosa de sua vida interior.

Porém, tanta coisa na ciência verdadeira é igualmente emocionante, mais misteriosa, um estímulo intelectual muito maior — além de estar bem mais perto da verdade. Ele sabia dos tijolos moleculares da vida que existem lá fora, no gás frio e rarefeito entre as estrelas? Tinha ouvido falar sobre as pegadas de nossos antepassados que foram encontradas em cinza vulcânica de 4 milhões de anos? E que dizer do Himalaia se erguendo quando a índia se espatifou contra a Ásia? Ou da maneira pela qual os vírus, construídos como seringas hipodérmicas, introduzem furtivamente o seu DNA pelas defesas do organismo hospedeiro e subvertem o mecanismo reprodutivo das células?; ou da procura de inteligência extraterrestre pelo rádio?; ou da recém-descoberta antiga civilização de Ebla que alardeava as virtudes da cerveja Ebla? Não, ele não tinha ouvido falar. Como também não conhecia, nem mesmo vagamente, a indeterminação quântica, e reconhecia DNA apenas como três letras maiúsculas que freqüentemente aparecem juntas.

O sr. “Bucldey” — bom papo, inteligente, curioso — não tinha ouvido virtualmente nada sobre a ciência moderna. Ele tinha um apetite natural pelas maravilhas do Universo. Queria conhecer a ciência. O problema é que toda a ciência se perdera pelos filtros antes de chegar até ele. Os nossos temas culturais, o nosso sistema educacional, os nossos meios de comunicação haviam traído esse homem. O que a sociedade permitia que escoasse pelos seus canais era principalmente simulacro e confusão. Nunca lhe ensinara como distinguir a ciência verdadeira da imitação barata. Ele não tinha ideia de como a ciência funciona. Há centenas de livros sobre Atlântida — o continente mítico que dizem ter existido há uns 10 mil anos no oceano Atlântico. (Ou em algum outro lugar. Um livro recente o localiza na Antártida.) A lenda remonta a Platão, que a relatou como uma história de eras remotas que lhe chegou aos ouvidos. Livros recentes descrevem com segurança o alto nível da tecnologia, dos costumes e da espiritualidade em Atlântida, bem como a grande tragédia que significa um continente povoado afundar nas ondas. Há uma Atlântida da «Nova Era”, “a lendária civilização de ciências avançadas”, voltada principalmente para a “ciência” dos cristais. Numa trilogia chamada Crystal enlightenment, escrita por Katrina Raphaell — os livros que são os principais responsáveis pela mania de cristais nos Estados Unidos —, os cristais de Atlântida lêem a mente, transmitem pensamentos, são repositórios de história antiga, bem como o modelo e a fonte das pirâmides do Egito. Nada que chegue perto de alguma evidência é oferecido para confirmar essas afirmativas. (Talvez haja um ressurgimento da mania de cristais depois da recente descoberta, feita pela ciência verdadeira da sismologia, de que o núcleo interior da Terra pode ser composto de um único cristal imenso e quase perfeito — de ferro.)

Alguns livros — Legends of the Earth, de Dorothy Vitaliano, por exemplo — interpretam com simpatia as lendas originais de Atlântida como uma pequena ilha no Mediterrâneo que foi destruída por uma erupção vulcânica, ou como uma antiga cidade que deslizou para dentro do golfo de Corinto depois de um terremoto. Pelo que sabemos, essa pode ser a origem da lenda, mas está muito longe da destruição de um continente onde surgira uma civilização mística e técnica sobrenaturalmente avançada.

O que quase nunca encontramos — nas bibliotecas públicas, nas revistas das bancas de jornal e nos programas de horário nobre na televisão — é a evidência, fornecida pelo deslocamento do fundo do mar e pelo movimento das placas tectônicas, e também pelo mapeamento do fundo do oceano, mostrando de forma inequívoca a impossibilidade de ter existido um continente entre a Europa e as Américas num período que se aproxime da escala de tempo proposta.

Os relatos espúrios que enganam os ingênuos são acessíveis. As abordagens céticas são muito mais difíceis de encontrar. O ceticismo não vende bem. Uma pessoa inteligente e curiosa, que se baseie inteiramente na cultura popular para se informar sobre uma questão como Atlântida, tem uma probabilidade centenas ou milhares de vezes maior de encontrar uma fábula tratada de maneira acrílica em lugar de uma avaliação sóbria e equilibrada.

Talvez o sr. Buckley tivesse que saber ser mais cético a respeito das informações que lhe são fornecidas pela cultura popular. Mas, fora isso, é difícil achar que a falha é sua. Ele simplesmente aceitou o que as fontes de informação mais difundidas e acessíveis diziam ser verdade. Por ingenuidade, foi sistematicamente enganado e ludibriado.

A ciência desperta um sentimento sublime de admiração. Mas a pseudociência também produz esse efeito. As divulgações escassas e malfeitas da ciência abandonam nichos ecológicos que a pseudociência preenche com rapidez. Se houvesse ampla compreensão de que os dados do conhecimento requerem evidência adequada antes de poder ser aceitos, não haveria espaço para a pseudociência. Mas na cultura popular prevalece uma espécie de Lei de Gresham, segundo a qual a ciência ruim expulsa a boa.

Em todo o mundo, existe um enorme número de pessoas inteligentes e até talentosas que nutrem uma paixão pela ciência. Mas essa paixão não é correspondida. Os levantamentos sugerem que 95% dos norte-americanos são “cientificamente analfabetos”. A porcentagem é exatamente igual à de afro-americanos, quase todos escravos, que eram analfabetos pouco antes da Guerra Civil —quando havia penalidades severas para quem ensinasse um escravo a ler. É claro que existe um grau de arbitrariedade em qualquer determinação de analfabetismo, quer ele se aplique à língua, quer à ciência. Mas qualquer índice de analfabetismo próximo de 95% é grave.

Toda geração se preocupa com o declínio dos padrões educacionais. Um dos ensaios curtos mais antigos, escrito na Suméria há 4 mil anos, lamenta que os jovens sejam desastrosamente mais ignorantes do que a geração imediatamente anterior. Há 2400 anos, o idoso e rabugento Platão, no livro VII das Leis, deu a sua definição de analfabetismo cientifico:

Aquele que não sabe contar um, dois, três, nem distinguir os números ímpares dos pares, ou que não sabe contar coisa alguma, nem a noite nem o dia, e que não tem noção da revolução do Sol e da Lua, nem das outras estrelas […]. Acho que todos os homens livres devem estudar esses ramos do conhecimento tanto quanto ensinam a uma criança no Egito, quando ela aprende o alfabeto. Naquele país, os jogos aritméticos foram inventados para ser empregados por simples crianças, e elas os aprendem como se fosse prazer e diversão […]. Com espanto, eu […] no final da vida, tenho tomado conhecimento de nossa ignorância sobre essas questões; acho que parecemos mais porcos do que homens, e tenho muita vergonha, não só de mim mesmo, mas de todos os gregos.

Não sei até que ponto a ignorância em ciência e matemática contribuiu para o declínio da Atenas antiga, mas sei que as conseqüências do analfabetismo científico são muito mais perigosas em nossa época do que em qualquer outro período anterior. É perigoso e temerário que o cidadão médio continue a ignorar o aquecimento global, por exemplo, ou a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo, o desflorestamento tropical, o crescimento exponencial da população. Os empregos e os salários dependem da ciência e da tecnologia. Se a nossa nação não puder fabricar, com alta qualidade e a preços baixos, os produtos que as pessoas querem comprar, as indústrias continuarão a se deslocar e a transferir um pouco mais de prosperidade para as outras partes do mundo. Considerem-se as ramificações sociais da energia de fissão e fusão, dos supercomputadores, das “rodovias” de informações, do aborto, do radônio, das reduções maciças de armas estratégicas, do vício das drogas, da intromissão do governo nas vidas de seus cidadãos, da TV de alta resolução, da segurança das linhas aéreas e dos aeroportos, dos transplantes de tecidos fetais, dos custos da saúde, dos aditivos alimentares, dos remédios para melhorar a mania, a depressão ou a esquizofrenia, dos direitos dos animais, da supercondutividade, das pílulas anticoncepcionais tomadas após a relação sexual, das alegadas predisposições anti-sociais hereditárias, das estações espaciais, da ida a Marte, da procura de curas para a AIDS e o câncer.

Como podemos executar a política nacional — ou até mesmo tomar decisões inteligentes sobre nossas próprias vidas — se não compreendemos as questões subjacentes? Enquanto escrevo, o Congresso está dissolvendo seu próprio Departamento de Avaliação de Tecnologia — a única organização que tem a tarefa específica de orientar a Câmara e o Senado sobre ciência e tecnologia. Sua competência e integridade têm sido exemplares durante todos esses anos. Dos 535 membros do Congresso dos Estados Unidos, raramente 1% chegou a ter alguma formação científica significativa no século XX. O último presidente cientificamente alfabetizado foi talvez Thomas Jefferson.*

Assim, como é que os norte-americanos decidem essas questões? Como é que instruem os seus representantes? Quem de fato toma essas decisões, e baseando-se em que fundamentos?

Mesmo em seus melhores momentos, a prática médica pré-moderna não salvou muita gente. A rainha Anne foi a última monarca Stuart da Grã-Bretanha. Nos últimos dezessete anos do século XVII, ela ficou grávida dezoito vezes. Apenas cinco filhos nasceram com vida. Somente um deles sobreviveu aos primeiros anos da infância. Morreu antes de atingir a idade adulta e da coroação da mãe em 1702. Não parece haver evidência de distúrbio genético. Ela tinha os melhores cuidados médicos que o dinheiro podia comprar.

As doenças que outrora vitimavam bebês e crianças têm sido progressivamente mitigadas e curadas pela ciência — por meio da descoberta do mundo microbiano, pela compreensão de que os médicos e as parteiras devem lavar as mãos e esterilizar os seus instrumentos, pela nutrição, por medidas sanitárias e de saúde pública, pelos antibióticos, remédios, vacinas, pela descoberta da estrutura molecular do DNA, pela biologia molecular, e agora pela terapia genética. Pelo menos no mundo desenvolvido, os pais têm hoje em dia muito mais chance de ver os filhos atingirem a idade adulta do que tinha a herdeira do trono de uma das nações mais poderosas da Terra no final do século XVII. A varíola foi eliminada em todo o mundo. A área de nosso planeta infestada com os mosquitos transmissores da malária encolheu drasticamente. O número de anos de expectativa de vida de uma criança com diagnóstico de leucemia tem aumentado progressivamente. A ciência permite que a Terra alimente um número de seres humanos cem vezes maior, e sob condições muito menos penosas, do que era possível há alguns milhares de anos.

Podemos rezar pela vítima do cólera, ou podemos lhe dar quinhentos miligramas de tetraciclina a cada doze horas. (Ainda existe uma religião, a ciência cristã, que nega a teoria que atribui as doenças a micróbios; se a oração não produz efeito, o fiel prefere que os filhos morram a lhes dar antibióticos.) Podemos tentar a quase inútil terapia psicanalítica pela fala com o paciente esquizofrênico, ou podemos lhe dar trezentos a quinhentos miligramas de clazepina. Os tratamentos científicos são centenas ou milhares de vezes mais eficazes do que os alternativos. (E, mesmo quando os alternativos parecem funcionar, não sabemos realmente se desempenharam algum papel: melhoras espontâneas, até de cólera e esquizofrenia, podem ocorrer sem rezas e sem psicanálise.) Renunciar à ciência significa abandonar muito mais do que o ar-condicionado, o toca-disco CD, os secadores de cabelo e os carros velozes.

Nos tempos pré-agrícolas dos caçadores-coletores, a expectativa de vida humana era cerca de vinte—trinta anos. Essa era também a expectativa de vida na Europa ocidental no final do Império Romano e na Idade Média. Ela só aumentou para quarenta por volta de 1870. Chegou a cinqüenta em 1915, a sessenta em 1930, a setenta em 1955, e está se aproximando de oitenta hoje em dia (um pouco mais para as mulheres, um pouco menos para os homens). O resto do mundo está repetindo o incremento europeu da longevidade. Qual é a causa dessa transição humanitária espantosa e sem precedentes? A teoria microbiana das doenças, as medidas de saúde pública, os remédios e a tecnologia médica. A longevidade talvez seja a melhor medida da qualidade física da vida. (Se você está morto, pouco pode fazer para ser feliz.) Essa é uma dádiva preciosa da ciência à humanidade — nada menos do que o dom da vida.

Mas os microrganismos sofrem mutações. Novas doenças se disseminam rapidamente. Há uma batalha constante entre as medidas microbianas e as contramedidas humanas. Acompanhamos o ritmo dessa competição, não apenas inventando novos remédios e tratamentos, mas indo cada vez mais fundo na procura de uma compreensão da natureza da vida — a pesquisa básica.

Se o mundo quiser evitar as conseqüências terríveis do crescimento da população global, com 10 ou 12 bilhões de pessoas no planeta no final do século XXI, temos de inventar meios seguros, porém mais eficientes, de cultivar alimentos — com o auxílio de estoques de sementes, irrigação, fertilizadores, pesticidas, sistemas de transporte e refrigeração. Serão também necessários métodos amplamente acessíveis e aceitáveis de contracepção, passos significativos para a igualdade política das mulheres e melhoramentos nos padrões de vida das pessoas mais pobres. Como será possível fazer tudo isso sem a ciência e a tecnologia?

Sei que a ciência e a tecnologia não são apenas cornucópias despejando dádivas sobre o mundo. Os cientistas não só conceberam as armas nucleares; eles também pegaram os líderes políticos pela lapela, argumentando que a sua nação — qualquer que ela fosse — tinha que ser a primeira a fabricar uma dessas armas. E assim eles produziram mais de 60 mil armas nucleares. Durante a Guerra Fria, os cientistas nos Estados Unidos, na União Soviética, na China e em outras nações estavam dispostos a expor os seus conterrâneos à radiação — na maioria dos casos, sem o conhecimento deles — a fim de se preparar para a guerra nuclear. Médicos em Tuskegee, Alabama, enganaram um grupo de veteranos fazendo-os crer que estavam recebendo tratamento médico para a sífilis, quando na verdade eram elementos de controle que não recebiam medicação. As crueldades atrozes dos médicos nazistas são bem conhecidas. A nossa tecnologia produziu a talidomida, os CFCS, o agente laranja, os gases que atacam o sistema nervoso, a poluição do ar e da água, as extinções de espécies, e indústrias tão poderosas que podem arruinar o clima do planeta. Aproximadamente metade dos cientistas na Terra dedica parte de seu tempo de trabalho para fins militares. Embora alguns cientistas ainda sejam vistos como estranhos ao sistema, criticando corajosamente os males da sociedade e dando os primeiros avisos sobre catástrofes tecnológicas potenciais, muitos são considerados oportunistas submissos ou uma fonte complacente de lucros empresariais e de armas de destruição em massa — não importa quais sejam as conseqüências a longo prazo. Os perigos tecnológicos que a ciência apresenta, seu desafio implícito ao conhecimento recebido e sua visível dificuldade são razões para que as pessoas, desconfiadas, a evitem. Existe uma razão para as pessoas ficarem nervosas a respeito da ciência e da tecnologia. E assim a imagem do cientista maluco assombra o nosso mundo — até nos médicos loucos dos programas infantis de TV nas manhãs de sábado e na pletora de barganhas faustianas na cultura popular, do próprio epônimo dr. Faustus ao Dr. Frankenstein, Doutor Fantástico e Parque dos Dinossauros.

Mas não podemos simplesmente concluir que a ciência coloca poder demais nas mãos de tecnólogos moralmente fracos ou de políticos corruptos e ávidos de poder, e tomar a decisão de que precisamos livrar-nos dela. As vidas salvas pelos progressos na medicina e na agricultura são muito mais numerosas do que as perdidas em todas as guerras da história.** Os progressos nos transportes, nas comunicações e na indústria do entretenimento transformaram e unificaram o mundo. Em todas as pesquisas de opinião, a ciência é classificada entre as ocupações mais admiradas e dignas de crédito, apesar dos receios. A espada da ciência tem dois gumes. Sua força terrível impõe a todos nós, inclusive aos políticos, mas especialmente aos cientistas, uma nova responsabilidade — mais atenção às conseqüências de longo prazo da tecnologia, uma perspectiva que ultrapasse as fronteiras dos países e das gerações, um incentivo para evitar os apelos fáceis do nacionalismo e do chauvinismo. Os erros estão se tornando caros demais.


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