Livro ‘O Mar Sem Estrelas’ por Erin Morgenstern

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Da autora best-seller de O Circo da Noite, uma história de amor atemporal se desdobra em um mundo secreto debaixo da terra ― um lugar de piratas, pintores e navios que navegam sobre um Mar Sem Estrelas. Quando Zachary Ezra Rawlins descobre um misterioso livro escondido na biblioteca de sua universidade, isso o leva a uma busca como nenhuma outra. Em meio a suas inebriantes narrativas sobre prisioneiros apaixonados e cidades perdidas, ele se depara com algo impossível: uma história de sua própria infância. Determinado a obter respostas que este livro sem título ou autor se recusa a prover, Zachary deve seguir as únicas pistas que encontra na capa – uma abelha, uma chave e uma espada. Em seu caminho, surgem duas pessoas que mudarão o curso de sua vida: Mirabel, uma impetuosa pintora de cabelos cor-de-rosa, e Dorian, um belo e enigmático homem descalço…

Editora: Morro Branco; 1ª edição (21 junho 2021) Páginas: 544 páginas ISBN-10: 6586015227 ISBN-13: 978-6586015225 ASIN: 1B0961NBNKP

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ERIN MORGENSTERN é escritora e artista multimídia que descreve todos os seus trabalhos como “contos de fadas, de uma forma ou de outra”. Seu primeiro livro, O Circo da Noite, se tornou um sucesso literário mundial, sendo traduzido para mais de 37 línguas e acumulando mais de três milhões de cópias vendidas. O Mar sem Estrelas marca o seu retorno após mais de oito anos, tornando-se um sucesso de público e crítica, sendo eleito como um dos melhores livros do ano por publicações como The Guardian e um best-seller do New York Times. A autora é formada em Teatro pela Smith College e atualmente vive em Massachusetts.

Leia trecho do livro

DOCES DORES

Uma vez, muito tempo atrás…

Há um pirata no porão.

(O pirata é uma metáfora, mas também uma pessoa.)

(O porão poderia ser, com razão, considerado uma masmorra.)

O pirata foi mandado para lá devido a numerosos atos de natureza pirática considerados criminosos o bastante para merecer punição pelos não piratas que decidem tais coisas.

Alguém mandou que jogassem fora a chave, mas ela está pendurada em um aro enferrujado que pende de um gancho em uma parede próxima.

(Perto o bastante para ver de trás das barras. A liberdade mantida à vista, mas fora de alcance, como um lembrete para o prisioneiro. Agora ninguém se lembra disso do lado das barras em que ficam as chaves. A cuidadosa motivação psicológica foi esquecida, destilada em hábito e conveniência.)

(O pirata percebe isso, mas evita comentar.)

O guarda está sentado em uma cadeira ao lado da porta e lê folhetins de crime em papel desbotado, desejando ser uma versão idealizada e fictícia de si. Ele se pergunta se a diferença entre piratas e ladrões é uma questão de navios e chapéus.

Depois de um tempo, é substituído por outro guarda. O pirata não consegue determinar os horários exatos, uma vez que o porão-masmorra não tem relógios e as ondas no litoral além das paredes de pedra abafam o badalar dos sinos matinais e os divertimentos noturnos.

Esse guarda é mais baixo e não lê. Não deseja ser ninguém além de si e não tem imaginação para conjurar alter egos nem para empatizar com o homem atrás das barras, a única outra alma no cômodo fora os ratos. Ele presta uma atenção exagerada em seus sapatos quando não está dormindo. (Geralmente está dormindo.)

Cerca de três horas depois que o guarda baixo substituiu o guarda leitor, entra uma garota.

Ela traz um prato de pão e uma tigela de água e os deixa fora da cela do pirata, com mãos tão trêmulas que metade da água transborda. Então se vira e sobe a escada correndo.

Na segunda noite (o pirata supõe que é noite), ele fica parado o mais perto possível das barras e encara a garota, que derruba o pão quase fora do alcance dele e faz a maior parte da água transbordar.

Na terceira noite, o pirata fica nas sombras em um canto da cela e consegue manter a maior parte da água.

Na quarta noite, vem uma garota diferente.

Essa garota não acorda o guarda. Pisa mais suavemente nas pedras e qualquer som que faz com os pés é roubado pelas ondas ou pelos ratos.

Essa garota escrutina as sombras para encontrar o pirata obscurecido, solta um suspiro um pouco decepcionado e coloca o pão e a tigela na frente das barras. Então espera.

O pirata permanece nas sombras.

Depois de vários minutos de silêncio interrompido pelos roncos do guarda, a garota se vira e vai embora.

Quando o pirata pega sua refeição, descobre que a água foi misturada a vinho.

Na noite seguinte, a quinta se de fato for noite, o pirata espera a garota descer com os pés silenciosos e parar em frente ás barras.

Os passos vacilam só por um momento quando ela o vê.

O pirata a encara e a garota o encara de volta.

Ele estende a mão para o pão e a tigela, mas a garota os deixa no chão, sem nunca afastar os olhos dele, sem permitir que sequer a barra de seu vestido flutue ao alcance do pirata. Ousada, mas tímida. Faz uma sugestão de mesura enquanto se endireita, com um aceno gentil da cabeça, um movimento que o lembra do começo de uma dança.

(Até um pirata consegue reconhecer o começo de uma dança.)

Na noite seguinte, ele fica afastado das barras, a uma distância educada que pode ser abarcada com um único passo, e a garota aproxima-se minimamente.

Outra noite e a dança continua. Um passo mais perto. Um passo para trás. Um movimento para o lado. Na noite seguinte, ele estende a mão de novo para aceitar o que a garota oferta, e dessa vez ela responde e os dedos do pirata roçam as costas da mão dela.

A garota começa a se demorar, permanecendo mais tempo a cada noite —mas, se o guarda se remexe e começa a acordar, ela parte sem olhar para trás.

Ela traz duas tigelas de vinho e eles bebem juntos em um silêncio confortável. O guarda parou de roncar e dorme de maneira profunda e tranquila. O pirata suspeita que a garota tem algo a ver com isso. Ousada e tímida e esperta.

Algumas noites, ela traz mais que pão: laranjas e ameixas escondidas nos bolsos do vestido. Pedaços de gengibre cristalizado envoltos em papel embebido de histórias.

Algumas noites, permanece ali até momentos antes da troca de guarda.

(O guarda diurno começou a deixar seus folhetins de crime ao alcance das paredes da cela, ostensivamente por acaso.)

O guarda mais baixo anda de um lado para o outro esta noite. Ele pigarreia como se fosse dizer algo, mas não diz. Acomoda-se na cadeira e cai em um sono ansioso.

O pirata aguarda a garota.

Ela chega de mãos vazias.

Esta é a última noite. A noite antes da forca. (A forca também é uma metáfora, embora óbvia.) O pirata sabe que não haverá outra noite, que não haverá troca de guarda depois do próximo. A garota sabe o número exato de horas.

Eles não conversam a respeito disso.

Nunca conversaram.

O pirata enrola uma mecha do cabelo da garota em um dedo. Ela se inclina em direção às barras, descansando a bochecha no ferro frio, o mais próximo que pode chegar ao mesmo tempo que permanece a um mundo de distância.

Perto o bastante para um beijo.

— Conte uma história para mim — ela pede.

O pirata atende ao desejo.

DOCES DORES

Há três caminhos. Este é um deles.

Muito abaixo da superfície da terra, escondida do sol e da lua, no litoral do Mar Sem Estrelas, há uma coleção labiríntica de túneis e câmaras repletas de histórias. Histórias escritas em livros e seladas em jarros e pintadas em paredes. Odes inscritas em pele e gravadas em pétalas de rosas. Contos dispostos em azulejos sobre pisos, pedacinhos de trama desgastados por pés. Lendas entalhadas em cristal e penduradas em lustres. Histórias catalogadas e protegidas e reverenciadas. Antigas histórias preservadas enquanto novas histórias surgem ao seu redor.

O lugar é vasto, porém íntimo. É difícil medir sua extensão. Corredores se transformam em salas ou galerias, e escadas se retorcem para baixo ou para cima, formando alcovas ou arcadas. Por todo lado há portas que levam a novos espaços e novas histórias e novos segredos a serem descobertos, e por todo lado há livros.

É um santuário para contadores de histórias e guardiões de histórias e amantes de histórias. Eles comem e dormem e sonham cercados por crônicas e memórias e mitos. Alguns ficam ali por horas ou dias antes de retornar ao mundo acima, mas outros permanecem por semanas ou anos, vivendo em aposentos compartilhados ou privados e passando suas horas lendo ou estudando ou escrevendo, discutindo e criando com os outros residentes ou trabalhando em solidão.

Entre os que permanecem, alguns poucos escolhem se devotar a esse lugar, a esse templo de histórias.

Há três caminhos. Esse é um deles.

Esse é o caminho dos acólitos.

Aqueles que desejam escolher esse caminho devem passar um ciclo inteiro da lua em contemplação isolada antes de se comprometerem. A contemplação é supostamente silenciosa, mas, daqueles que se permitem ser trancados na câmara de pedra fechada, alguns perceberão que ninguém consegue ouvi-los. Eles podem falar ou gritar ou berrar sem violar quaisquer regras. Só acha que a contemplação é silenciosa quem nunca esteve dentro da câmara.

Uma vez que a contemplação terminar, eles têm a oportunidade de abandonar o caminho. De escolher outro, ou nenhum.

Aqueles que passam o período em silêncio muitas vezes decidem abandonar tanto o caminho como o lugar. Retornam à superfície. Estreitam os olhos contra o sol. Às vezes lembram-se de um mundo subterrâneo ao qual já pensaram em se dedicar, mas a lembrança é nebulosa, como um lugar de sonhos.

Com mais frequência, são aqueles que gritam e berram e choram, aqueles que conversam sozinhos por horas, que estão prontos quando chega o momento de prosseguir com a iniciação.

Nesta noite, em que a lua é nova, a porta é destrancada e revela uma jovem que passou a maior parte do tempo cantando. Ela é tímida e não tem o costume de cantar, mas em sua primeira noite de contemplação percebeu, quase por acidente, que ninguém podia escutá-la. Ela riu; por um lado, ria de si mesma e, por outro, ria da estranheza de ter se voluntariado para ser aprisionada naquela cela luxuosa com cama de penas e lençóis de seda. A risada ecoou pela câmara de pedra como ondas na água.

Ela cobriu a boca e esperou que alguém aparecesse, mas ninguém apareceu. Tentou se lembrar se alguém lhe dissera explicitamente que não falasse.

Chamou:

— Oi? — E só os ecos retribuíram a saudação.

Levou alguns dias para ter coragem de cantar. Jamais gostara da própria voz, mas em sua prisão, livre de vergonha e expectativas, ela cantou –baixo a princípio, então com força e ousadia. A voz que o eco devolveu a seus ouvidos era surpreendentemente agradável.

Ela cantou todas as canções que conhecia. Inventou as próprias canções. Quando não conseguia pensar em palavras para cantar, inventou línguas sem sentido para compor versos com sons que achava agradáveis. Surpreendeu-se ao ver como o tempo passou rápido. Agora a porta se abre.

O acólito que entra ergue um aro com chaves de bronze e oferece a outra palma para ela. Ali, repousa um pequeno disco de metal com uma abelha em alto-relevo.

Aceitar a abelha é o próximo passo para se tornar uma acólita. Essa é a última chance de recusar. Ela pega a abelha da palma do acólito. Ele faz uma mesura e gesticula para que a garota o siga.

A jovem que se tomará uma acólita gira o disco de metal quente nos dedos enquanto percorre túneis estreitos iluminados por velas, ladeados por estantes de livros e cavernas cheias de cadeiras e mesas desconjuntadas, com pilhas altas de livros e estátuas por todos os cantos. Ela acaricia a estátua de uma raposa quando eles passam, um hábito popular que alisou o pelo entalhado entre as orelhas de pedra.

Um homem mais velho folheando um volume ergue os olhos quando eles passam e, reconhecendo a procissão, encosta dois dedos nos lábios e inclina a cabeça.

Para ela, não para o acólito que ela segue. Um gesto de respeito para um cargo que a jovem ainda não tem oficialmente. Ela inclina a cabeça para esconder um sorriso. Continuam descendo por escadarias douradas e atravessando túneis sinuosos que ela nunca viu. A garota reduz o passo para olhar as pinturas penduradas entre as estantes de livros, imagens de árvores e garotas e fantasmas.

O acólito para diante de uma porta marcada com uma abelha dourada. Escolhe uma chave do aro e a abre.

Aqui começa a iniciação.

É uma cerimônia secreta. Os detalhes são conhecidos apenas por aqueles que passam por ela e aqueles que a oficializam. Pelo que todos se lembram, sempre foi realizada da mesma forma.

Quando a porta com a abelha dourada se abre e o batente é cruzado, a acólita abandona seu nome. Como quer que essa jovem fosse chamada antes, nunca mais será chamada assim de novo. Aquilo fica no passado. Algum dia, ela poderá ter um novo nome, mas por enquanto não tem nenhum.

A sala é pequena e redonda e alta, uma versão em miniatura da cela de contemplação. Contém um assento de madeira simples de um lado e um pilar de pedra que chega à cintura dela e contém uma tigela de fogo. O fogo fornece a única luz.

O acólito mais velho gesticula para que a jovem se sente na cadeira. Ela faz isso. Encara o fogo, observando as chamas dançarem, até que uma faixa de seda preta é atada sobre seus olhos.

A cerimônia continua, invisível.

A abelha de metal é tirada de sua mão. Há uma pausa, seguida pelo tinido de instrumentos de metal, então a sensação de um dedo no tórax dela, apertando-lhe o esterno. A pressão se reduz, em seguida é substituída por uma dor aguda e abrasadora.

(Mais tarde, ela vai perceber que a abelha de metal foi aquecida no fogo e sua imagem, com asas, gravada no peito dela.)

A surpresa a deixa perturbada. Ela se preparou para o que sabe do resto da cerimônia, mas isso é inesperado. Percebe que nunca viu o peito nu de outro acólito. Se momentos antes estava preparada, agora se sente abalada e insegura. Mas não diz “Pare”. Não diz “Não”.

Ela tomou sua decisão, embora não pudesse saber tudo que essa decisão implicaria.

Na escuridão, dedos abrem seus lábios e uma gota de mel é pingada em sua língua.

Isso é para garantir que o último gosto seja doce.

Na verdade, o último gosto que permanece na boca de um acólito é mais que mel: é a doçura misturada a sangue e metal e carne queimada.

Se um acólito fosse capaz de descrevê-lo mais tarde, poderia esclarecer que o último gosto que sentiu foi de mel e fumaça.

Não é inteiramente doce.

Lembram-se dele toda vez que extinguem a chama de uma vela de cem de abelha.

Um lembrete de sua devoção.

Mas não podem falar sobre isso.

Eles cedem sua língua voluntariamente. Oferecem sua habilidade de falar para melhor servir às vozes dos outros.

Fazem um voto silencioso de nunca mais contar as próprias histórias, em reverência àqueles que vieram antes e àqueles que virão depois.

Nessa dor com um toque de mel, a jovem na cadeira pensa que talvez grite, mas não grita. Na escuridão, o fogo parece consumir a sala inteira, e Dla consegue ver formas nas chamas, embora os olhos estejam cobertos.

A abelha em seu peito tremula.

Uma vez que sua língua foi tomada e queimada e transformada em Dinzas, uma vez que a cerimônia está completa, uma vez que sua voz foi emudecida, então seus ouvidos despertam.

Então as histórias começam a vir.

DOCES DORES

Para enganar o olho.

O garoto é filho de uma vidente. Ele atingiu uma idade na qual não tem certeza se isso é algo de que se orgulhar, ou mesmo um detalhe a ser divulgado, mas continua sendo verdade.

Está voltando da escola em direção a um apartamento situado acima de uma loja cheia de bolas de cristal e cartas de tarô, incenso e estátuas de divindades com cabeça de animal e sálvia seca. (O aroma de sálvia permeia tudo, dos lençóis da cama aos cadarços do seu tênis.)

Hoje, como em todos os dias de aula, o garoto pega um atalho em um beco que contorna a loja por trás, uma passagem estreita entre os muros altos de tijolo que são muitas vezes cobertos com grafite, então pintados de branco e grafitados de novo.

Hoje, em vez das assinaturas com ortografia curiosa e profanidades em letras arredondadas, há uma única obra de arte nos tijolos brancos.

É uma porta.

O garoto para. Ajeita os óculos para focar melhor e certificar-se de que está vendo o que sua visão, às vezes pouco confiável, sugere que ele está vendo.

A nebulosidade nas margens fica mais aguçada, e a porta ainda é uma porta. Maior e mais sofisticada e mais impressionante do que ele pensara ao primeiro olhar embaçado.

garoto não sabe bem o que pensar dela.

A incongruência daquilo demanda atenção.

A porta está situada bem nos fundos do beco, em uma seção sombreada escondida do sol, mas as cores ainda são ricas e alguns dos pigmentos são metálicos. É mais delicada que a maioria dos grafites que o garoto já viu. Pintada em um estilo que ele sabe ter um nome francês chique, algo sobre enganar o olho, embora não consiga recordar o termo aqui e agora.

A porta é entalhada — não, pintada — com padrões geométricos afiados que se aprofundam ao redor dos cantos, criando profundidade onde só há muro plano. No centro, na altura em que um olho mágico estaria, e estilizada com linhas que combinam com o resto da pintura, há uma abelha. Abaixo da abelha há uma chave. Abaixo da chave há uma espada.

Uma maçaneta dourada, de aspecto tridimensional, cintila apesar da ausência de luz. Um buraco de fechadura está pintado embaixo dela, tão escuro que parece ser um vazio esperando uma chave, em vez de algumas pinceladas de tinta preta.

A porta é estranha e bonita e algo para o qual o garoto não tem palavras e não sabe se existem palavras, ou mesmo expressões chiques em francês.

Um cachorro late em algum ponto da rua, mas o som é distante e abstrato. O sol se esconde atrás de uma nuvem e o beco parece se tornar mais longo, mais profundo e mais escuro, enquanto a porta fica mais brilhante.

Hesitante, o garoto estende a mão para tocá-la.

A parte dele que ainda acredita em magia espera que seja quente apesar do ar frio. Espera que a imagem tenha mudado fundamentalmente o caráter do tijolo. A ideia faz seu coração bater mais rápido, mesmo enquanto sua mão se move mais devagar, porque a parte dele que pensa que a outra parte está sendo infantil se prepara para a decepção.

A ponta dos dedos encontra a porta abaixo da espada e pousa em tinta lisa cobrindo tijolo fresco, um leve desnível na superfície revelando a textura por baixo.

É só um muro. Só um muro com uma pintura bonita.

Ainda assim.

Ainda assim, ele tem uma sensação incômoda de que isso é mais do que parece ser.

Pressiona a palma contra o tijolo pintado. A madeira falsa da porta é de uma tonalidade de marrom próxima da pele do garoto, como se tivesse sido misturada para combinar com ele.

Atrás da porta existe um outro lugar. Não a sala que fica atrás do muro. Algo mais. Ele sabe disso. Ele sente isso nos dedos dos pés.

É isso que sua mãe chamaria de um momento com significado. Um momento que muda os momentos seguintes.

O filho da vidente sabe apenas que a porta parece importante de um jeito que ele não consegue explicar, nem para si mesmo.

Um garoto no começo de uma história não tem como saber que a história começou.

Ele contorna as linhas pintadas da chave com a ponta dos dedos, maravilhado ao ver como a chave, do mesmo jeito que a espada e a abelha e a maçaneta, dá a impressão de que deveria ser tridimensional.

O menino se pergunta quem a pintou e o que significa, se é que significa algo. Se não a porta, ao menos os símbolos. Se é um sinal e não uma porta, ou ambos ao mesmo tempo.

Nesse momento significativo, se o menino girar a maçaneta pintada e abrir a porta impossível, tudo vai mudar.

Mas ele não gira.

Em vez disso, enfia as mãos nos bolsos.

Parte dele decide que está sendo infantil e que é velho demais para esperar que a vida real seja como nos livros. Outra parte decide que, se não tentar, não ficará decepcionado e pode continuar acreditando que a porta se abriria, mesmo se for só faz de conta.

Ele permanece parado com as mãos nos bolsos e considera a porta por mais um momento antes de se afastar.

No dia seguinte, a curiosidade vence e o garoto retoma e descobre que pintaram o muro de tijolos. Passaram tanta tinta branca que não é possível nem discernir onde, exatamente, estivera a porta.

Então o filho da vidente não encontra o caminho para o Mar Sem Estrelas.

Ainda não.


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