Livro ‘Corte de chamas prateadas’ por Sarah J. Maas

Leia online 'Corte de chamas prateadas (Vol. 4 Corte de espinhos e rosas)' por Sarah J. Maas
(Vol. 4 Corte de espinhos e rosas)

Corte de chamas prateadas é a sedutora e poderosa sequência da aclamada série Corte de espinhos e rosas. Nestha Archeron sempre foi orgulhosa, irritável e lenta em perdoar. Ter sido Feita pelo Caldeirão não tornou sua personalidade mais doce. Mas o que poucos sabem é que, por trás da fachada de força, Nestha carrega uma dor que a está corroendo: o arrependimento por não ter feito nada para ajudar a família quando caíram na pobreza e por não ter sido capaz de salvar o pai… Desde que foi forçada a entrar no Caldeirão e se tornar Grã-Feérica contra sua vontade, ela lutou para encontrar um lugar para si mesma dentro do mundo estranho e mortal que habita. No entanto, ela não consegue superar os horrores da guerra com Hybern e tudo o que perdeu nela. A única pessoa que a incendeia, mais do que qualquer outra, é Cassian…

Editora: Galera; 1ª edição (16 junho 2021); Páginas: 714 páginas; ISBN-10: 6555871903; ISBN-13: 978-6555871906; ASIN: B093CB5RSN

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Biografia do autor: Sarah J. Maas é autora da série Trono de Vidro, Corte de espinhos e rosas e Cidade da lua crescente, todas sucessos internacionais. Ela adora contos de fadas, filmes da Disney e música pop ruim; bebe café demais e vê muito lixo na TV. Sarah nasceu em Nova York, mas atualmente mora em Bucks County, Pensilvânia, com seu marido, seu filho e seu cachorro.

Leia trecho do livro

Para cada Nestha no mundo –
escale a montanha.

E para Josh, Taran e Annie,
Que são o motivo pelo qual eu escalo a minha.

A água escura batendo em seus calcanhares agitados era de congelar.

Não era como o ardor do frio do inverno, nem mesmo como o queimar de gelo sólido, mas algo mais frio. Mais profundo.

O frio do espaço entre as estrelas, o frio de um mundo antes da luz.

O frio do inferno — do verdadeiro inferno, percebeu ela, ao dar um pinote contra as mãos fortes que tentavam enfiá-la naquele Caldeirão.

Verdadeiro inferno, porque era Elain que estava caída no piso de pedra com o macho feérico de cabelos vermelhos e um olho só curvado sobre ela. Porque eram orelhas pontiagudas aparecendo entre o cabelo castanho-dourado encharcado de sua irmã, enquanto um brilho imortal irradiava da pele clara de Elain.

Verdadeiro inferno — pior do que as profundezas de nanquim que estavam a meros centímetros dos dedos dela.

Mergulhe-a, ordenou o rei feérico de expressão severa.

E, pelo som daquela voz, da voz do macho que tinha feito aquilo com Elain…

Ela sabia que entraria no Caldeirão. Sabia que perderia aquela briga.

Sabia que ninguém viria salvá-la: não a Feyre aos prantos, não o antigo amor amordaçado de Feyre, nem o novo parceiro arrasado dela.

Nem Cassian, desmantelado e sangrando no chão. O guerreiro ainda tentava se levantar sobre os braços trêmulos. Tentava chegar até ela.

O rei de Hybern é quem havia feito aquilo. Com Elain. Com Cassian.

E com ela.

A água gélida bateu nas solas de seus pés.

Era um beijo venenoso, uma morte tão permanente que cada centímetro dela rugiu em rebeldia.

Ela entraria, mas não sem lutar.

A água agarrou seus calcanhares com garras fantasma, puxando-a para baixo. Ela se virou, desvencilhando o braço do guarda que a segurava.

E Nestha Archeron apontou. Um dedo em direção ao rei de Hybern. Uma promessa de morte. Um alvo marcado. Mãos a empurraram para as garras da água à espera. Nestha gargalhou do medo que viu nos olhos do rei pouco antes de a água devorá-la por inteira.

No início
E no fim
Havia
Escuridão
E nada mais

Ela não sentiu frio ao mergulhar em um mar sem fundo, sem horizonte, sem superfície. Mas sentiu a queimação.

A imortalidade não era uma juventude serena.

Era fogo.

Era minério derretido sendo derramado em suas veias, fervendo seu sangue humano até que não passasse de vapor, forjando seus ossos quebradiços até que se tornassem aço fresco.

E quando ela abriu a boca para gritar, quando a dor rasgou ao meio quem era, não houve som. Não havia nada naquele lugar que não fosse escuridão e agonia e poder…

Eles pagariam. Todos eles.

Começando por esse Caldeirão.

Começando agora.

Ela avançou pela escuridão com garras e presas. Rasgou, partiu e dilacerou. E a eternidade escura em torno de Nestha estremeceu. Deu pinotes. Debateu-se.

Ela gargalhou conforme o breu se encolhia. Gargalhou com a boca cheia do poder intocado que acabara de arrancar e engolir de uma vez; gargalhou dos punhados de eternidade que enfiou no coração, nas veias.

O Caldeirão lutou como um pássaro sob a pata de um gato. Ela se recusou a soltar.

Tudo que ele havia roubado dela, de Elain, ela tomaria de volta.

Envoltos em eternidade sombria, Nestha e o Caldeirão se entrelaçaram, queimando pela escuridão como uma estrela recém-nascida.

PARTE UM

Novata

Capítulo 1

Cassian levou o punho até a porta verde no corredor escuro e hesitou.

Ele havia ceifado mais inimigos do que se importava em contar, tinha ficado de pé com sangue até os joelhos em incontáveis campos de batalha e continuara golpeando com a espada, fizera escolhas que haviam lhe custado a vida de guerreiros habilidosos, fora general, soldado de infantaria e assassino, e, no entanto… ali estava ele, abaixando o punho.

Hesitando.

O prédio do lado norte do rio Sidra precisava de uma pintura. De acordo com as tábuas que rangiam sob suas botas, precisava de um piso novo também. Pelo menos o lugar era limpo. Definitivamente nada convidativo para os padrões de Velaris, mas como a própria cidade não tinha bairros desfavorecidos, isso não significava muito. Ele vira e se hospedara em lugares bem piores.

Mesmo assim, jamais entendera por que Nestha insistia em morar ali. Até compreendia por que ela não aceitava morar na Casa do Vento — era longe demais da cidade, e ela não podia voar ou atravessar até lá, o que significava ter que lidar com os dez mil degraus para cima e para baixo. Mas por que viver nesse lixo, quando a casa na cidade estava vazia? Desde que a obra na ampla casa diante do rio de Feyre e Rhys tinha terminado, a casa na cidade havia ficado aberta para qualquer dos amigos deles que precisasse ou quisesse. Ele sabia que Feyre tinha oferecido a Nestha um quarto ali — o qual fora recusado.

Cassian franziu a testa para a pintura descascando na porta. Nenhum som passava pela fenda considerável entre a porta e o chão, larga o bastante para que até mesmo o maior dos ratos ziguezagueasse por baixo; não havia nenhum cheiro recente no corredor apertado.

Talvez ele desse sorte e ela estivesse fora — quem sabe dormindo atrás do balcão de qualquer que fosse a taverna sórdida a que ela fora na noite anterior. Embora talvez isso fosse pior, pois ele precisaria ir até lá atrás dela.

Cassian levantou o punho de novo e o vermelho do Sifão piscou sob as antigas luzes feéricas embutidas no teto.

Covarde. Não demonstre medo, merda.

Cassian bateu uma vez. Duas.

Silêncio.

Cassian quase suspirou alto de alívio. Puta merda, graças à Mãe…

Passos curtos e precisos soaram do outro lado da porta. Cada um mais irritado do que o anterior.

Ele fechou bem as asas, esticando os ombros enquanto afastava os pés. Uma pose de luta tradicional, com a qual fora forjado durante seus anos de treinamento e agora se transformara em simples memória muscular. Cassian não ousou pensar no porquê o som de passos fizera com que seu corpo assumisse aquela posição.

O estalo conforme ela abria cada uma das quatro trancas poderia muito bem ter sido a percussão de um tambor de guerra.

Cassian percorreu a lista de coisas que deveria dizer, como Feyre havia sugerido que as dissesse.

A porta foi aberta com um puxão, a maçaneta girou tão forte que Cassian se perguntou se ela estava fingindo que era o pescoço dele.

Nestha Archeron já estava de cara fechada. Mas ali estava ela.

Com uma aparência terrível.

— O que você quer? — Ela não abriu a porta mais do que um palmo.

Quando foi que a vira pela última vez? Naquela festa de fim de verão na barca no Sidra, no mês passado? Ela não estava tão mal assim. Muito embora ele desconfiasse que uma noite tentando se afogar em vinho e licor jamais deixasse alguém com uma aparência particularmente boa na manhã seguinte. Ainda mais às…

— São sete horas da manhã — prosseguiu ela, perfurando-o com aquele olhar cinza-azulado que sempre atiçava o temperamento de Cassian.

Ela estava com a camisa de algum macho. Pior, ela estava apenas com a camisa de algum macho.

Cassian apoiou uma das mãos na ombreira da porta e deu um meio-sorriso que sabia que a provocava.

— Noite difícil?

Ano difícil, na verdade. O lindo rosto dela estava pálido, muito mais magro do que fora antes da guerra contra Hybern, os lábios, sem cor, e aqueles olhos… Frios e aguçados, como as manhãs de inverno nas montanhas. Não havia alegria nem sorriso em nenhum canto do rosto. Em nenhuma parte dela. Nestha fez menção de fechar a porta na mão dele. Cassian enfiou a bota na abertura antes que ela conseguisse quebrar seus dedos. As narinas de Nestha se dilataram levemente.

— Feyre quer você na casa.

— Qual delas? — falou Nestha, franzindo a testa ao mirar o pé que ele havia enfiado na porta. — Ela tem cinco.

Cassian conteve a réplica. Aquele não era o campo de batalha — e ele não era oponente dela. Seu trabalho era transportá-la até o local designado. E então rezar para que a linda casa para a qual Feyre e Rhys haviam acabado de se mudar não fosse reduzida a escombros.

— A nova.

— Por que minha irmã não veio me buscar pessoalmente? — Ele conhecia aquele brilho desconfiado no olhar dela, aquele leve enrijecer das costas. Seus próprios instintos vieram à tona para enfrentar a rebeldia dela, para continuar insistindo até descobrir o que poderia acontecer.

Desde o Solstício de Inverno, eles haviam trocado poucas palavras. A maioria delas fora na festa da barca, no mês passado. E consistiam em:

Sai.

Oi, Nes.

Sai.

Com prazer.

Depois de meses e meses de nada, de mal vê-la em lugar nenhum, fora apenas isso.

Ele nem mesmo havia compreendido por que ela fora até a festa, ainda mais sabendo que ficaria presa no barco com eles durante horas. Devido a qualquer que fosse a influência que tinha sobre Nestha, era provavelmente Amren quem merecia o crédito por sua rara aparição. Mas ao fim daquela noite, Nestha estava na frente da fila para sair do barco com braços cruzados firmemente diante do corpo, e Amren estava emburrada na outra ponta, quase trêmula de ódio e desprezo.

Ninguém perguntou o que havia acontecido entre elas, nem mesmo Feyre. O barco aportou e Nestha tinha praticamente corrido para fora, e ninguém falara com ela desde então. Até hoje. Até esta conversa, que parecia a mais longa que tiveram desde as batalhas contra Hybern.

Cassian disse, por fim:

— Feyre é Grã-Senhora. Ela está ocupada governando a Corte Noturna.

Nestha inclinou a cabeça e seu cabelo castanho-dourado escorreu sobre um ombro ossudo. Em qualquer outra pessoa, o movimento teria sido de contemplação. Nela, era o aviso de um predador, avaliando a presa.

— E minha irmã — disse ela, com aquela voz inexpressiva que se recusava a entregar qualquer sinal de emoção — considerou minha presença imediata necessária?

— Ela sabia que você provavelmente precisaria se limpar, e queria lhe dar tempo. Sua presença é esperada às nove horas.

Ele esperou pela explosão enquanto ela fazia as contas.

Os olhos de Nestha se incendiaram.

— E por acaso parece que preciso de duas horas para ficar apresentável?

Cassian aproveitou o convite para avaliá-la: longas pernas nuas, uma elegante curva de quadril, cintura afunilada — magra demais, caramba — e seios fartos, convidativos, que destoavam dos novos ângulos acentuados do corpo dela.

Em qualquer outra fêmea, aqueles seios magníficos poderiam ser motivo suficiente para que ele começasse a cortejá-la desde o momento em que a conheceu. Mas desde que conhecera Nestha, o fogo frio nos olhos dela criou uma tentação diferente.

E agora que ela era Grã-Feérica, cheia de domínio e agressão inerentes — e uma atitude deplorável —, ele a evitava o máximo possível. Principalmente com o que tinha acontecido durante e depois da guerra contra Hybern. Ela deixara seus sentimentos por ele bastante evidentes.

Por fim, Cassian falou:

— Você parece que precisa de umas refeições fartas, um banho e roupas de verdade.

Nestha revirou os olhos, mas levou os dedos à bainha da camisa.

Cassian acrescentou:

— Expulse o coitado e limpe-se que eu lhe trago um chá.

As sobrancelhas dela se ergueram uma fração de centímetro.

Ele deu um sorriso torto.

— Acha que não consigo ouvir aquele macho no seu quarto, tentando silenciosamente se vestir e sair de fininho pela janela?

Como se em resposta, uma batida abafada veio do quarto. Nestha sibilou.

— Volto em uma hora para ver como as coisas estão. — Cassian enfatizou bem as palavras, de modo que seus soldados saberiam que não deveriam provocá-lo, eles seriam lembrados de que ele precisava de sete Sifões para controlar a magia por um bom motivo. Só que Nestha não voava nas legiões dele, não lutava sob seu comando, e certamente não parecia se lembrar de que Cassian tinha mais de quinhentos anos e…

— Não se dê ao trabalho. Vou chegar na hora.

Ele se afastou da ombreira da porta, e suas asas se abriram levemente conforme ele recuou alguns passos.

— Não foi isso que me pediram para fazer. Devo acompanhar você de uma porta a outra.

A expressão do rosto dela se contraiu.

— Vá se empoleirar numa chaminé.

Sem ousar tirar os olhos dela, ele esboçou uma reverência. Nestha surgira do Caldeirão com… dons. Dons consideráveis… e sombrios. Mas ninguém tinha visto ou sentido qualquer sinal deles desde aquela última batalha contra Hybern, desde que Amren estilhaçara o Caldeirão e que Feyre e Rhys tinham conseguido curá-lo. Elain também não havia dado qualquer indicação das habilidades de vidência dela desde então.

Mas se o poder de Nestha permanecia ali, ainda capaz de arrasar campos de batalha… Cassian sabia que não deveria se fazer vulnerável para outro predador.

— Quer o chá com leite ou limão?

Ela bateu a porta na cara dele.

Depois trancou todas as quatro travas.

Assoviando consigo mesmo e se perguntando se aquele pobre coitado dentro do apartamento realmente fugiria pela janela — provavelmente para escapar dela —, Cassian saiu andando pelo corredor escuro e foi procurar comida.

Ele precisaria de sustância naquele dia. Principalmente depois que Nestha descobrisse exatamente por que a irmã a havia convocado.

Nestha Archeron não sabia o nome do macho em seu apartamento.

Ela vasculhou a memória afogada em vinho enquanto voltava para o quarto, desviando de pilhas de livros e roupas amontoadas, lembrando-se de olhares fogosos na taverna, do encontro molhado e quente da boca deles, do suor que a cobria conforme ela o cavalgava até que o prazer e a bebida a lançassem para o divino esquecimento, mas não se lembrou do nome dele.

O macho já estava debruçado para fora da janela, e Cassian sem dúvida espreitava na rua abaixo para testemunhar a saída espetacularmente patética dele, quando Nestha chegou ao quarto escuro e apertado. A cama de bronze com dossel estava amassada, os lençóis meio jogados no piso de madeira irregular que rangia, e a janela rachada batia contra a parede nas dobradiças frouxas. O macho se virou para ela.

Ele era belo, da forma como a maioria dos machos Grão-Feéricos são. Um pouco mais magro do que ela gostava — praticamente um menino comparado com a imensa massa de músculos que acabara de preencher a porta de entrada dela. Ele se encolheu conforme Nestha entrou, sua expressão parecendo sofrida quando ele percebeu o que ela usava.

— Eu… Isso é…

Nestha se despiu da camisa dele, exibindo nada além de pele nua. Os olhos do macho se arregalaram, mas o cheiro do medo dele não se desfez — não medo dela, mas do macho que ele ouvira na porta da entrada. Que o fez se lembrar de quem era a irmã dela. De quem era o parceiro da irmã dela. Os amigos da irmã dela. Como se qualquer uma dessas coisas significasse algo.

Qual seria o cheiro de seu medo se o macho descobrisse que ela o havia usado, dormido com ele para se controlar? Para acalmar aquela força sombria que se contorcia e que havia fervilhado dentro dela desde o momento em que emergira do Caldeirão? No último ano, ela aprendera que sexo, música e bebida ajudavam. Não completamente, mas ajudavam a evitar que o poder fervesse. Mesmo que ainda conseguisse senti-lo em seu sangue, contraído firme em torno de seus ossos.

Ela atirou a blusa branca nele.

— Pode usar a porta da frente agora.

Ele enfiou a camisa pela cabeça.

— Eu… ele ainda… — O olhar do macho ficava se voltando para os seios dela, rígidos devido à manhã fria, para a pele nua e para o ápice entre as coxas.

— Tchau. — Nestha entrou no banheiro enferrujado e alagado junto ao quarto. Pelo menos o lugar tinha água quente na torneira.

Às vezes.

Feyre e Elain haviam tentado convencê-la a se mudar. Ela sempre ignorara o conselho delas. Assim como ignoraria o que quer que fosse dito naquele dia. Ela sabia que Feyre planejava um sermão. Talvez alguma coisa a ver com o fato de que Nestha tinha colocado a comanda obscena da taverna na noite anterior na conta bancária da irmã dela.

Nestha deu um riso de deboche enquanto girava a maçaneta da banheira. A torneira rangeu, o metal era gelado ao toque, e água escorreu, então jorrou na banheira rachada e manchada.

Aquela era a residência dela. Nenhum criado, nenhum olho monitorando e julgando cada movimento seu, nenhuma companhia, a não ser que ela convidasse. Ou a não ser que guerreiros enxeridos e arrogantes se incumbissem de aparecer.

Levou cinco minutos até que a água esquentasse o bastante para que ela começasse a encher a banheira. Houve alguns dias no ano anterior em que ela nem havia se dado ao trabalho de perder tempo. Alguns dias em que entrou na água gelada e não sentiu o frio da banheira, mas o das profundezas escuras do Caldeirão conforme ele a devorava por inteiro. Conforme arrancava sua humanidade, sua mortalidade, e a transformava nisso.

Foram meses lutando contra aquilo — o pânico que lhe tensionava o corpo e fazia com que seus ossos tremessem quando eram submersos. Mas ela havia se obrigado a enfrentar. Aprendera a se sentar na água gélida, enjoada e trêmula, com os dentes trincados; recusara-se a se mover até que seu corpo reconhecesse que estava em uma banheira e não no Caldeirão, que estava no apartamento e não no castelo de pedra do outro lado do oceano, que estava viva, imortal. Embora seu pai não estivesse.

Não, seu pai era cinzas ao vento, sua existência estava marcada apenas por uma lápide em uma colina fora da cidade. Ou era o que suas irmãs lhe haviam dito.

Eu amei você desde o primeiro momento em que a segurei nos braços, dissera o pai para ela naqueles últimos momentos juntos.

Não coloque as mãos imundas em minha filha. Essas tinham sido as últimas palavras dele, disparadas ao rei de Hybern. O pai dela desperdiçara suas últimas palavras com aquele verme de rei.

O pai dela. O homem que jamais lutara por suas filhas, não até o fim. Quando havia ido salvá-las — salvar humanos e feéricos, obviamente, mas principalmente as filhas. Salvá-la.

Que grande e estúpido desperdício.

Um poder sombrio e profano fluiu dela, mas não fora o bastante para impedir que o rei de Hybern quebrasse o pescoço de seu pai.

Nestha odiara o pai, odiara profundamente, e, no entanto, por algum motivo inexplicável, ele a amara. Não o suficiente para tentar poupá-las da pobreza ou evitar que passassem fome. Mas, de alguma forma, fora o bastante para que ele reunisse um exército no continente. Para que velejasse com um navio nomeado em homenagem a ela até a batalha.

Nestha ainda odiava o pai naqueles últimos momentos. E então o pescoço dele se partiu, e os olhos não estavam cheios de medo quando morreu, mas cheios daquele amor tolo por ela.

Era isso que havia permanecido, essa expressão do olhar dele. O ressentimento no coração enquanto ele morria por ela. Aquilo tinha apodrecido, remoendo Nestha como o poder que ela enterrava profundamente, percorrendo descontroladamente a mente dela até que nenhum banho gelado conseguisse fazê-la esquecer.

Ela poderia ter salvado o pai.

A culpa era do rei de Hybern. Ela sabia. Mas também era dela. Assim como era culpa dela que Elain tivesse sido capturada pelo Caldeirão depois que Nestha o espionou usando aquela adivinhação, culpa dela que Hybern tenha feito coisas tão terríveis para caçar a ela e a irmã como cervos.

Havia dias em que o mero pesar e pânico travavam o corpo de Nestha de tal forma que nada conseguia fazer com que ela respirasse. Nada conseguia impedir que o terrível poder começasse a emergir, emergir e emergir dentro dela. Nada além da música naquelas tavernas, dos jogos de baralho com estranhos, das intermináveis garrafas de vinho e do sexo Nestha nem se dera ao trabalho de contar a ele que evitava os dois a todo custo. Principalmente o segundo. Ultimamente, Rhysand parecia contente em fazer o mesmo.

Depois da guerra contra Hybern, Rhysand tinha oferecido empregos a ela. Posições na corte dele.

Ela não as queria. Eram ofertas feitas por pena, tentativas disfarçadas de fazer com que ela participasse da vida de Feyre, que estivesse merecidamente empregada. Mas o Grão-Senhor jamais gostara dela. As conversas deles eram friamente civilizadas, na melhor das hipóteses.

Ela nunca havia contado a ele que os motivos pelos quais ele a odiava eram os mesmos motivos pelos quais ela morava ali. Tomava banhos frios alguns dias. Esquecia-se de comer em outros. Não suportava os crepitares e estalos de uma lareira. E se afogava em vinho e música e prazer toda noite.

Cada maldita coisa que Rhysand pensava dela era verdade — e ela sabia muito antes de ele sequer surgir à porta dela.

Qualquer oferta que Rhysand lhe atirasse era feita apenas por amor a Feyre. Era melhor que ela passasse seu tempo da forma como desejava. Eles continuavam pagando, afinal de contas.

A batida à porta chacoalhou o apartamento inteiro.

Nestha olhou com raiva para o cômodo da frente, considerando fingir que tinha saído, mas Cassian conseguia ouvi-la e sentia o cheiro dela. E se ele quebrasse a porta, o que provavelmente faria, ela apenas teria a dor de cabeça de explicar para o proprietário sovina.

Então Nestha colocou o vestido que tinha deixado no chão na noite anterior e, de novo, abriu todas as quatro trancas. Ela as havia instalado assim que se mudou. Trancá-las toda noite era praticamente um ritual. Mesmo quando os machos anônimos estavam lá, mesmo fora de si devido ao vinho, ela se lembrava de trancá-las.

Como se isso fosse manter longe os monstros desse mundo.

Nestha puxou a porta o suficiente para ver o sorriso arrogante de Cassian, e a deixou entreaberta conforme sumiu para buscar os sapatos.

Ele entrou atrás dela, com uma xícara de chá na mão — louça que provavelmente foi emprestada da loja da esquina. Ou simplesmente dada a ele, considerando como as pessoas costumavam adorar o chão pelo qual as botas enlameadas dele passavam. Cassian já era adorado naquela cidade antes do conflito com Hybern. O heroísmo e o sacrifício dele e os feitos que realizara nos campos de batalha tinham lhe garantido ainda mais admiração. Nestha não culpava os admiradores dele. Ela vivenciara o prazer e o puro terror de vê-lo naqueles campos de batalha. Ainda acordava com suor no corpo diante das memórias: como não conseguia respirar enquanto o testemunhava lutar e via inimigos o cercando; a sensação de quando o poder do Caldeirão surgira e ela soubera que ele atacaria onde o exército deles era mais forte — nele.

Nestha não conseguira salvar os mil illyrianos que haviam morrido no momento seguinte ao que ela conjurara Cassian até sua segurança. Ela se esquivava daquela lembrança também.

Cassian observou o apartamento e soltou um assovio baixinho.

— Já pensou em contratar uma faxineira?

Nestha observou a pequena área de estar — um sofá carmesim murcho, uma lareira de tijolos manchada de fuligem, uma poltrona floral comida pelas traças, então a decrépita cozinha minúscula, empilhada com colunas tortas de louça suja. Onde havia jogado os sapatos na noite anterior? Ela foi procurar no quarto.

— Um ar fresco seria um bom começo — acrescentou Cassian, do outro cômodo. A janela rangeu quando ele a abriu.

Nestha encontrou os sapatos marrons em cantos opostos do quarto. Um fedia a vinho derramado.

Nestha se sentou na beira do colchão para calçá-los, puxando os cadarços. Ela não se deu ao trabalho de olhar para cima quando os passos firmes de Cassian se aproximaram e pararam à ombreira da porta.

Ele fungou uma vez. Alto.

— Eu esperava que você ao menos trocasse os lençóis entre as visitas, mas aparentemente isso não a incomoda.

Nestha amarrou o cadarço do primeiro sapato. — Por acaso isso é da sua conta?

Ele deu de ombros, embora a tensão em seu rosto não refletisse tanta indiferença.

— Se eu consigo sentir o cheiro de alguns machos diferentes aqui, então certamente seus companheiros também conseguem. — Nenhum deles reclamou até agora. — Ela amarrou o outro sapato enquanto os olhos castanhos de Cassian acompanhavam o movimento.

— Seu chá está esfriando. — Ele exibiu os dentes.

Nestha o ignorou e vasculhou o quarto de novo. O casaco…

— Seu casaco está no chão, perto da porta da frente — disse Cassian. — E vai ficar frio lá fora, então traga um cachecol.

Ela ignorou isso também, mas passou por ele como uma brisa, cuidando para evitar tocá-lo, e encontrou o sobretudo azul-escuro exatamente onde ele dissera que estava. Nestha abriu a porta, gesticulando para que ele saísse primeiro.

Cassian a encarou enquanto batia os pés na direção dela, então esticou o braço…

E recolheu do gancho da parede o cachecol cerúleo e creme que Elain dera a ela de aniversário na última primavera. Ele o segurou firme no punho fechado, balançando o objeto como uma cobra estrangulada ao passar por ela.

Alguma coisa o estava incomodando. Normalmente, Cassian aguentava um pouco mais antes de deixar o temperamento levar a melhor. Talvez tivesse a ver com o que quer que Feyre quisesse dizer na casa.

O estômago de Nestha se revirou conforme fechou cada uma das trancas.

Ela não era burra. Sabia que havia inquietação desde o fim da guerra, tanto nestas terras como no continente. Sabia que, sem a barreira da Muralha, alguns territórios feéricos estavam forçando os limites do que era aceitável em termos de reivindicações de fronteiras e de como tratavam os humanos. E sabia que aquelas quatro rainhas humanas ainda estavam aboletadas no palácio que compartilhavam com seus exércitos parados e intactos.

Eram monstros, todas elas. Tinham matado a rainha de cabelos dourados que as traíra e vendido outra — Vassa — para um mestre feiticeiro. Parecia adequado que a mais jovem das quatro rainhas restantes tivesse sido transformada em uma velha pelo Caldeirão. Transformada em uma feérica de vida longa, sim, mas envelhecida até se tornar uma casca murcha como punição pelo poder que Nestha tinha tomado do Caldeirão. Pela forma como ela o havia dilacerado enquanto ele dilacerava o corpo mortal dela e o transformava em algo novo.

Aquela rainha grisalha a culpava. E quisera matá-la, se é que os Corvos de Hybern falaram a verdade antes que Bryaxis e Rhysand os destruíssem por terem se infiltrado na biblioteca da Casa do Vento.

Não houvera um sussurro sobre aquela rainha durante os catorze meses desde a guerra.

Mas se alguma nova ameaça tinha surgido… As quatro trancas pareciam zombar dela antes de Nestha seguir Cassian para fora do prédio e para o meio da cidade tumultuada adiante.

A “casa” à margem do rio era, na verdade, uma mansão, e tão nova, limpa e linda que Nestha se lembrou que seus sapatos estavam cobertos de vinho velho assim que caminhou pelo arco de mármore imponente para dentro do lustroso corredor da entrada, decorado com bom gosto em tons de marfim e areia.

Uma grandiosa escada dividia o enorme espaço, um lustre de vidro soprado — feito pelos artesãos de Velaris — pendia do teto esculpido acima. As luzes feéricas em cada reentrância com forma de ninho projetavam reflexos tremeluzentes no chão pálido de madeira polida, interrompidas apenas por samambaias em vasos, mobília de madeira também feita em Velaris e uma variedade assombrosa de obras de arte. Ela não se incomodou em prestar atenção a nenhuma delas. Tapetes azuis felpudos irrompiam do piso impecável. Um deles, longo e estreito, fluía pelos corredores cavernosos em ambos os lados; o outro percorria o arco das escadas, direto até uma parede de janelas na outra ponta dele, a qual dava para o morro gramado e o rio reluzente aos pés da grama.

Cassian tomou a esquerda — em direção às salas formais onde, como informara Feyre a Nestha durante aquele primeiro e único tour dois meses antes, aconteciam negociações. Naquele dia, Nestha estava semiembriagada e odiara cada segundo daquilo, cada cômodo perfeito.

A maioria dos machos comprava joias para as esposas e parceiras como presente escandaloso de Solstício de Inverno.

Rhys comprara um palácio para Feyre.

Não… ele havia comprado o terreno dizimado pela guerra e então dera à parceira liberdade para projetar a residência dos sonhos deles.

E de alguma forma, pensou Nestha, enquanto acompanhava em silêncio um Cassian estranhamente quieto pelo corredor na direção de um dos escritórios cujas portas estavam entreabertas, Feyre e Rhys tinham conseguido fazer aquele lugar parecer aconchegante, acolhedor. Uma construção colossal, mas mesmo assim um lar. Até a mobília formal parecia ter sido feita visando ao conforto e ao relaxamento, para longas conversas acompanhadas de refeições saborosas. Cada obra de arte tinha sido escolhida pela própria Feyre, ou pintada por ela, muitas eram retratos e representações deles — dos amigos, dela própria, de sua… nova família.

Naturalmente, não havia nenhum de Nestha.

Até mesmo o maldito pai delas tinha um retrato na parede de um dos lados da grandiosa escada: ele e Elain, sorrindo e felizes, como eram antes de o mundo virar do avesso. Sentados em um banco de pedra entre arbustos transbordando com hidrângeas cor-de-rosa e azuis. No jardim formal da primeira residência deles, aquela bela mansão perto do mar. Nestha e a mãe delas não estavam à vista.

Era assim que tinha sido, no fim das contas: Elain e Feyre adoradas pelo pai. Nestha valorizada e treinada pela mãe.

Durante aquele primeiro tour, Nestha reparou na ausência dela ali. E na ausência da mãe delas. Não dissera nada, é claro, mas era uma ausência proposital.

Foi o bastante para, agora, fazer com que seus dentes trincassem, para fazer com que agarrasse a coleira invisível que mantinha o terrível poder dentro dela contido e puxasse com força, no momento em que Cassian passou para dentro do escritório e falou, para quem quer que os esperasse:

— Ela chegou.

Nestha se preparou, mas Feyre apenas riu.

— Está cinco minutos adiantada. Estou impressionada.

— Parece um bom presságio para apostas. Deveríamos ir até o Rita’s — disse Cassian enquanto Nestha estrava no cômodo de painéis de madeira.

O escritório se abria para um exuberante jardim de pátio. O espaço era aconchegante e luxuoso, e talvez, se não tivesse visto quem estava sentado ali, ela admitiria que gostava das prateleiras do piso ao teto e da mobília de veludo cor de safira diante da lareira de mármore preto.

Feyre estava encostada no braço cilíndrico do sofá, vestindo um suéter branco pesado e legging preta.

Rhys, com o preto habitual, estava encostado na lareira, de braços cruzados. Sem asas hoje.

E Amren, vestindo o cinza que preferia, estava sentada de pernas cruzadas na poltrona de couro ao lado da lareira crepitante, com aqueles olhos prateados e sem expressão observando Nestha com desprezo.

Tanta coisa havia mudado entre ela e a fêmea.

Nestha se encarregara disso, dessa destruição. Ela não se permitia pensar naquela discussão no fim da festa de verão, na barca do rio. Ou no silêncio entre ela e Amren desde então.

Não houve visitas ao apartamento de Amren. Nem conversas enquanto montavam quebra-cabeças. Certamente nada de lições de magia. Ela se certificara dessa última parte também.

Feyre, pelo menos, sorriu para ela.

— Soube que teve uma noite e tanto.

Nestha olhou para onde Cassian havia reivindicado a poltrona diante de Amren, para o lugar vazio no sofá ao lado de Feyre e para onde Rhys estava, ao lado da lareira.

Ela manteve a coluna reta e o queixo erguido, odiando que todos a estivessem olhando quando ela escolheu se sentar no sofá ao lado da irmã. Odiando que Rhys e Amren tivessem notado os sapatos imundos dela, e que provavelmente ainda sentissem o cheiro daquele macho nela, apesar do banho.

— Você está deplorável — falou Amren.

Nestha não era tão burra a ponto de encarar a… o que quer que Amren fosse. Ela podia até ser Grã-Feérica agora, mas um dia tinha sido algo diferente. Não desse mundo. A língua dela ainda era afiada o bastante para ferir.

Como Nestha, Amren não tinha magia específica de uma corte relacionada aos Grão-Feéricos. Isso não tornava a influência dela nessa corte menos poderosa. Os próprios poderes de Grã-Feérica de Nestha jamais haviam se materializado — ela só possuía o que havia tomado do Caldeirão, em vez de deixar que ele lhe concedesse poderes, como fizera com Elain. Não fazia ideia do que tinha arrancado do Caldeirão enquanto ele roubava a humanidade dela — mas sabia que eram coisas que não queria e jamais desejaria entender e dominar. Só de pensar nisso seu estômago se revirava.

— Embora aposto que deva ser difícil ter boa aparência — prosseguiu Amren — quando se fica na rua até altas horas da noite, bebendo até cair e fodendo com qualquer coisa que aparece.

Feyre virou a cabeça para a segunda no comando do Grão-Senhor. Rhys pareceu concordar com Amren.

Cassian ficou de boca fechada. Nestha disse, com tranquilidade:

— Eu não estava ciente de que minhas atividades estavam sob sua jurisdição. Cassian soltou um murmúrio que soou como um aviso. Para qual deles, ela não sabia dizer. E nem se importava.

Os olhos de Amren brilharam, um resquício do poder que um dia tinha queimado dentro dela. E que agora já não estava mais ali. Nestha sabia que o poder dela podia brilhar assim também — mas enquanto o de Amren tinha se revelado ser luz e calor, Nestha sabia que a chama prateada dela vinha de um lugar mais frio e mais escuro. Um lugar que era antigo — e, ao mesmo tempo, completamente novo.

Amren a desafiou:

— Já que você gasta tanto do nosso ouro com vinho, elas estão, sim.

Talvez ela tivesse forçado a barra com a conta da noite anterior.

Nestha olhou para Feyre, que estremeceu.

— Então você me fez mesmo vir até aqui para ouvir um sermão?

Os olhos de Feyre — espelhos dos dela mesma — se suavizaram um pouco.

— Não, não é um sermão. — Ela lançou um olhar afiado para Rhys, ainda friamente calado contra a lareira, e então para Amren, que fervilhava de ódio na poltrona. — Pense nisso como uma discussão.

Nestha ficou de pé bruscamente.

— Minha vida não é da sua conta, nem está aberta a nenhum tipo de discussão.

Sente-se — grunhiu Rhys.

O comando feroz naquela voz, o completo domínio e poder…

Nestha congelou, combatendo e odiando aquela parte feérica dela que se curvava a tais coisas. Cassian se inclinou para a frente na cadeira, como se fosse saltar entre eles. Ela podia jurar que algo parecido com dor percorrera o rosto dele.

Mas Nestha encarou Rhysand de volta. Colocou cada gota de rebeldia que tinha naquele olhar, mesmo que a ordem dele fizesse os joelhos dela quererem se dobrar, se sentar.

Rhys falou:

— Você vai ficar. E vai ouvir.

Ela soltou uma gargalhada baixa.

— Você não é meu Grão-Senhor. Não manda em mim. — Mas ela sabia o quanto ele era poderoso. Tinha visto, sentido. Ainda tremia ao estar perto dele.

Rhys sentiu o cheiro daquele medo. Um dos cantos de sua boca se curvou em um sorriso cruel.

— Quer brigar, Nestha Archeron? — ronronou ele. O Grão-Senhor da Corte Noturna indicou o gramado inclinado além das janelas. — Temos bastante espaço para uma luta.

Nestha exibiu os dentes, silenciosamente rugindo para que o corpo obedecesse às ordens dela. Preferiria morrer a se curvar a ele. A qualquer um deles. Rhys sorriu ainda mais, sabendo muito bem daquilo.

— Chega — disparou Feyre para Rhys. — Falei para você ficar fora disso.

Ele levou os olhos salpicados de estrelas para a parceira, e Nestha só pode se segurar para não desabar no sofá quando seus joelhos, por fim, cederam. Feyre inclinou a cabeça e, com as narinas se dilatando, disse a Rhysand:

— Você pode ou ir embora, ou ficar e manter a boca fechada.

Rhys, de novo, cruzou os braços, mas não disse nada.

— Você também — disparou Feyre para Amren. A fêmea bufou e se aninhou na poltrona.

Sentada no sofá por cima das almofadas de veludo, Nestha nem se deu o trabalho de parecer agradecida quando Feyre se virou para encará-la. A irmã engoliu em seco. — Precisamos fazer algumas mudanças, Nestha — disse Feyre, com a voz rouca. — Você precisa… e nós precisamos. Onde estava Elain, caramba? — Eu aceito a culpa — prosseguiu Feyre —, por ter permitido que as coisas chegassem a esse ponto. Depois da guerra contra Hybern e com tudo o mais que estava acontecendo… Você… eu deveria ter te ajudado, mas não ajudei, e estou pronta para admitir que isso é parcialmente minha culpa.

— Que o que é sua culpa? — sibilou Nestha.

— Você — disse Cassian. — Esse seu comportamento de bosta.

Ele havia dito aquilo no Solstício de Inverno. E da mesma forma que acontecera naquela época, a coluna dela travou ao ouvir o insulto, a arrogância

— Olhe — prosseguiu Cassian, estendendo as mãos —, não é uma falha moral, mas…

— Eu entendo como está se sentindo — interrompeu Feyre.

— Você não sabe nada sobre como estou me sentindo.

Feyre insistiu.

— Está na hora de fazer mudanças. Começando agora.

— Não venha tentar mandar na minha vida com essa baboseira pretensiosa e caridosa.

— Você não tem vida — replicou Feyre. — E não vou me sentar por mais um segundo e observar você se destruir. — Ela levou a mão tatuada até o coração, como se isso significasse alguma coisa. — Decidi que depois da guerra lhe daria tempo, mas parece que aquilo foi errado. Eu estava errada. — Ah, não me diga. — Essas palavras foram como uma adaga atirada entre as duas.

Rhys ficou tenso diante do deboche, mas mesmo assim não disse nada.

— Já chega — sussurrou Feyre, com a voz trêmula. — Desse comportamento, daquele apartamento, de tudo isso… já chega, Nestha.

— E para onde — falou Nestha, com um tom gélido — eu vou?

Feyre olhou para Cassian.

Pela primeira vez, Cassian não estava sorrindo.

— Você vem comigo — disse ele. — Para treinar.


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