Livro ‘Mimesis’ por Erich Auerbach

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A edição brasileira de Mimesis, a obra monumental de Erich Auerbach, referência absoluta para os estudos literários e literatura comparada, completa cinquenta anos de sua primeira publicação. O ensaio permanece vivo em seu campo, ajudando a formar multidões de pensadores, não obstante as profundas mudanças pelas quais o mundo atravessou nesse tempo e o aparecimento de grandes teóricos da crítica literária. Mimesis encanta pela abrangência da análise, seja pelo vasto período de tempo, seja pela multiplicidade de obras e estilos que traz, que lhe dá, nas palavras de Manuel da Costa Pinto, um “sentido épico […] – nada menos do que um afresco da civilização ocidental por meio de suas obras mais representativas”. Mimesis é obra de um homem que perde sua pátria e é obrigado a se exilar e se isolar. Em terra estranha, nas margens de uma Europa conflagrada pela Segunda Guerra Mundial, Erich Auerbach…

Editora: Perspectiva; 7ª edição (16 fevereiro 2021); Páginas: 688 páginas; ISBN-10: 655505042X; ISBN-13: 978-6555050424; ASIN: B08VV9KZYP

Leia trecho do livro

O Romance da Mimesis

“Na verdade, não existe teoria que não seja um fragmento, cuidadosamente preparado, de alguma autobiografia”, escreveu Paul Valéry em “Poesia e Pensamento Abstrato”. Seria impossível, senão ocioso, dizer se a afirmação do autor de Eupalinos vale para toda e qualquer teoria – literária ou não. Mas certamente é válida para Mimesis, de Erich Auerbach. Escrita entre 1942 e 1945, no exílio do ensaísta alemão em Istambul durante o nazismo, e publicada no ano seguinte em Berna – sem o capítulo “A Dulcineia Encantada” (que seria elaborado para a edição espanhola e incorporado ao conjunto a partir de 1949) –, a obra é o maior monumento da teoria literária.

Outros autores desse campo de estudos podem ter elaborado métodos e reflexões mais influentes, desde Roman Jakobson e Mikhail Bakhtin até Northrop Frye e Roland Barthes. Mas são obras em que conceitos como “função poética”, “dialogismo” ou écriture aparecem dispersos em diferentes ensaios, muitas vezes derivando da análise de livros, escritores ou períodos específicos. Mimesis, ao contrário, concentra, num único volume de abrangência inaudita, questões que percorrem a história daquilo que chamamos de literatura desde Homero até Virgina Woolf – ou seja, do primeiro clássico ocidental até uma escritora que morreu no ano anterior ao início da elaboração do livro.

Bem entendido, não se trata de uma história da literatura, de que há inúmeros exemplos antes do surgimento dos estudos literários como especialidade acadêmica¹. Auerbach aborda um tema determinado, descrito em seu subtítulo: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental, segundo a versão consagrada na maior parte dos idiomas, ou, para quem prefere tradução mais literal, “a realidade representada na literatura ocidental”.

Há em Mimesis, portanto, uma questão própria da teoria literária – a representação – que, por sua abrangência, compreende não um recorte particular, um conjunto de autores ou um período, mas praticamente todos os grandes autores e períodos da literatura. Para dar conta dessa amplitude, Auerbach lança mão de uma modalidade de leitura que está na raiz de sua formação intelectual: a filologia – o estudo da produção textual (em geral, com ênfase na literatura) de uma ou mais línguas, levando em conta contexto cultural, social e político, variantes linguísticas, concepções retóricas e estilísticas, paleografia, epigrafia, documentos etc.

Auerbach pertenceu a um momento da cultura europeia – ou, mais precisamente, de crise da cultura europeia – em que surgiram vários tratados de grande envergadura, percorrendo imensos arcos temporais para consolidar seu legado e preservar aquilo que estava em vias de desaparecer. Exemplos dessas obras ambiciosas e complexas são O Outono da Idade Média (1923), do holandês Johan Huizinga, e Literatura Europeia e Idade Média Latina (1948), do alemão Ernst Robert Curtius – que lecionara na mesma Universidade de Marburg da qual Auerbach foi demitido em 1935 pelas autoridades nazistas, em razão de suas origens judaicas.

No prefácio à edição brasileira do livro de Curtius, o romanista Segismundo Spina coloca Mimesis ao lado dessas duas obras como culminância da

filologia na sua função transcendente, isto é, quando o texto deixa de ser um fim em si mesmo da tarefa filológica, um objeto de exegese gramatical, para se transformar num instrumento que permite ao filólogo interpretar a vida espiritual de um povo […] ou até de uma civilização².

Mas há uma evidente diferença entre elas. Huizinga aborda a história e a cultura da França e dos Países Baixos nos séculos XIV e XV. Curtius, em seu estudo da retórica e das tópicas (fórmulas e lugares-comuns, como a invocação da natureza ou o tema recorrente do “mundo às avessas”), busca a “unidade de sentido” que se expande pela literatura europeia a partir da Antiguidade clássica e da romanidade medieval – porém, vai até Goethe e faz apenas breves menções a autores da modernidade, como Mallarmé ou Joyce. Bem diferente é o caso de Mimesis, que remonta à Odisseia e à Bíblia e, no capítulo final, contrasta Virginia Woolf com Joyce, Thomas Mann e, sobretudo, Proust.

Dito isso, a leitura da obra-prima de Auerbach surpreende sob vários aspectos, em se tratando do livro de um scholar , de um erudito ancorado numa erudição incomensurável. Em primeiro lugar, chama a atenção seu caráter fragmentário – assinalado pela introdução de Edward W. Said (aqui reproduzida) à edição do 50 o aniversário da publicação de Mimesis em inglês. Auerbach jamais analisa a íntegra de uma obra, muito menos o conjunto da literatura de um escritor. Seu procedimento básico é tomar uma passagem, uma cena ou (no caso da poesia épica) uma sequência narrativa de versos, para então descrever o modo como a realidade vem nela representada.

Em segundo lugar, considerando o sentido épico do próprio livro – nada menos do que um afresco da civilização ocidental por meio de suas obras mais representativas –, o tom de Auerbach é sempre comedido, nada enfático, obra de um leitor minucioso que se atém menos aos grandes significados alegóricos ou simbólicos (todavia, presentes) dos textos que interpreta do que a nuances de recortes narrativos, incluindo a sintaxe das frases e o campo semântico de cada termo na relação com registros linguísticos de época (alto, baixo, erudito, popular). Em seu estilo discreto, quase neutro – e o leitor de Mimesis logo percebe o quanto questões estilísticas são fundamentais para a forma de apreender e representar a realidade –, Auerbach se coloca na persona do comentador douto e metódico, cujo decoro livresco o mantém sempre na margem do cortejo de formas a que assiste. Nenhum traço, enfim, daquela tentação de fazer da crítica (cujos limites Auerbach ultrapassa largamente) um novo gênero literário, como cobiçado por autores tão diversos quanto Lukács e Adorno (que deram um estatuto literário ao ensaio sobre arte e estética) ou Valéry e Blanchot (nos quais o ego scriptor triunfa sobre o homo teoreticus).

Há ainda dois aspectos mais objetivos: causa estranheza que um livro com o rigor acadêmico de Mimesis não traga uma única nota de rodapé e, sobretudo, que Auerbach não dê definições claras ou pelo menos discuta mais aprofundadamente as diferentes acepções de termos-chave para seu argumento, como representação e realidade. O próprio termo mimesis e sua problemática tradução latina, imitatio , com as modernas derivações filológicas e filosóficas exaustivamente estudadas no Brasil por um teórico da envergadura de Luiz Costa Lima, só aparece pouquíssimas vezes ao longo do texto de Auerbach, permanecendo restrito de modo totêmico ao título da obra.

Essas duas características estão explicadas no “Epílogo” de Mimesis , em que Auerbach justifica as inevitáveis lacunas temporais do livro e suas omissões de escolas literárias (como o Siglo de Oro espanhol ou o realismo alemão do século XVII). De quebra, permitem avaliar o quanto há, na obra, daquele “fragmento de autobiografia” que Valéry diz estar inoculado em toda teoria.

A ausência de notas, escreve Auerbach no texto que fecha Mimesis , se deve ao fato de que ele escreveu o livro em Istambul, onde não havia “biblioteca bem provida para estudos europeus” – circunstância que, acrescida à interrupção das comunicações internacionais durante a Segunda Guerra, o obrigou a “renunciar a quase todas as publicações periódicas, à maioria das pesquisas mais recentes e, por vezes, às edições críticas dos meus textos dignas de confiança”. Sua principal fonte de consulta, assim, seria a biblioteca do mosteiro dominicano da igreja de São Pedro e São Paulo, próxima à torre de Gálata, cujas portas lhe foram abertas pelo monsenhor Angelo Giuseppe Roncalli – que, em 1958, um ano após a morte de Auerbach, se tornaria o papa João XXIII.

Ali, presume-se, ele encontrava as fontes primárias utilizadas em seu livro, ou seja, os textos clássicos que interpretou com paciência monástica – pois é de se supor, ainda, que a biblioteca dos dominicanos não mantivesse em suas estantes os últimos e hiper-especializados estudos de filologia românica produzidos na Europa. Por serem obras supostamente já incorporadas ao patrimônio da cultura europeia, Auerbach não viu a necessidade de fazer remissão à edição utilizada e às páginas citadas – daí a inexistência das notas bibliográficas.


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