Livro ‘O Som do Nosso Coração’ por Emma Cooper

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“Nossa vida ― não importa o que aconteça entre o início e o fim ― começa e termina com uma batida do coração: nosso próprio ritmo, nossa própria música.”  A vida da heroína de O som do nosso coração, Melody King, não é nada fácil. Afinal, desde que sofreu um acidente e bateu a cabeça, ela adquiriu um estranho distúrbio: ela canta quando está ansiosa. E não só canta ― alto, bem alto e às vezes errado ―, como dança, faz performances e emenda uma música na outra, com letras sempre relacionadas à situação em questão. Como se isso já não fosse ruim o bastante, Melody está constantemente ansiosa. Seu marido, Dev, desapareceu há onze anos sem deixar rastros, e ela tem dois filhos adolescentes problemáticos...
Páginas: 406 páginas  Editora: Record; Edição: 1 (15 de junho de 2020)  ISBN-10: 8501117218  ISBN-13: 978-8501117212  ASIN: B0892Y7JFS

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Leia trecho do livro

1

Melody

Nossa vida — não importa o que aconteça entre o início e o fim — começa e termina com uma batida do coração: nosso próprio ritmo, nossa própria música. Uma música pode subir e descer como o ar em nossos pulmões; pode começar com uma única e solitária nota e então se expandir a cada verso: uma família de sons. Para mim, porém, uma música tem um significado mais profundo.

— Deu 87,66 — anuncia a caixa do supermercado, me enchendo de pavor.

Sei que, do seu ponto de vista, isso não parece nada assim tão terrível. Uma quantia respeitável para a compra semanal de uma família de três pessoas. Afinal, a caixa com uma aparência masculina não está insinuando que estou na minha última semana de vida ou que minha saia está presa na calcinha. O problema, na verdade, se encontra no meu saldo bancário; sei que hoje, dia 21 de fevereiro, meu saldo bancário oscila em uma corda bamba de oitenta libras.

Ouço os primeiros acordes de “Can’t Buy Me Love”, dos Beatles. Isso pode até não parecer nada de mais para você. Supermercados no mundo todo colocam músicas de fundo; os ritmos alegres guiam os passos do consumidor de olhos vazios. Mas esse é o motivo pelo qual as poucas palavras da caixa me enchem de medo: eu tento explicar a dificil situação de minha conta bancária.

— Como? — me pergunta a caixa de rosto ensebado, ligeiramente alarmada, como era de se esperar. Veja bem, o problema é que não estou explicando minha situação com ombros caídos e uma expressão de “a vida às vezes te coloca para baixo”.

Não. Não estou simplesmente ouvindo o clássico dos Beatles: eu comecei a cantar a música — teatralmente. Talvez você esteja se perguntando por que estou cantando Beatles — com entusiasmo — para uma caixa de supermercado? Bem, a resposta é: eu não sei. De fato, já consultei diversos médicos nos últimos dois anos e nenhum deles conseguiu descobrir. Nenhum dos clínicos, especialistas ou psiquiatras (que, aliás, foram muitos).

Vou te contar o que de fato eu sei.

Era uma manhã gelada e tempestuosa de janeiro — até aí, nada digno de nota. Não havia nada especial no fato de que era o dia da coleta do lixo, ou de eu estar na rua de galochas, o roupão rosa-pastel amarrado ao redor da minha pancinha cheia de comidas de Natal, tentando arrastar a lixeira de rodinhas pelo caminho da garagem. Digo que não havia nada de especial nisso porque minha vida, mesmo naquela época, já era desorganizada. Caótica. Negligente. Se eu fosse a pessoa controlada e organizada que tenho a intenção de ser a cada Ano-Novo, então minha lixeira já estaria do lado de fora de casa: um bravo soldado enfrentando as intempéries, esperando seu estripamento com firme altivez. Se eu fosse essa pessoa, não teria ficado sem o produto para derreter neve no dia anterior e não teria usado água quente para descongelar o vidro do carro. Não haveria uma fina camada de gelo junto ao meio-fio. Eu não teria escorregado e batido a cabeça ao me estatelar no chão. Não teria havido um grito estridente da minha filha de ii anos quando me encontrou sangrando e inconsciente, vinte minutos depois. Aflito e desajeitado, meu filho não teria entrado em pânico ao tentar encontrar meu pulso fraco, usando apenas seus conhecimentos de escoteiro, e — naturalmente — eu não estaria caída no chão, com minha própria urina congelando nas minhas pernas enquanto meus filhos esperavam uma eternidade pela chegada da ambulância: lágrimas, medo e o excesso de responsabilidade sacudindo seus corpos desajeitados e em crescimento, enquanto debatiam, ansiosos, quantas compressões torácicas deveriam aplicar em mim.

Agora, aqui no supermercado, eu me superei de verdade, ao explicar para a caixa sobre todas as coisas que não posso comprar: minha voz provoca uma onda de desconforto pelo estabelecimento. Fico vendo — como fiz tantas vezes antes — as expressões, primeiro de choque, em seguida de mal-estar e, finalmente, divertimento, passando pelo rosto cheio de desdém das pessoas. Vamos lá, seja sincero: como você reagiria? Desviaria o olhar? Apontaria e zombaria? Imagine-se aqui, agora, parado na fila atrás de mim. Em uma quinta-feira qualquer, no horário de almoço, uma morena baixinha, de uns 30 e poucos anos, está cantando “Can’t Buy Me Love” a plenos pulmões, no caixa do mercado. Além do fato de ela não ser uma cantora incrível —embora afinada, ainda bem —, olhe só para as expressões faciais e os gestos das mãos! Vai lá, diz a verdade, você ia ficar boquiaberto, não ia? Eu ficaria! Olhe só para mim! Como é possível alguém arregalar tanto os olhos a ponto de parecer que eles vão pular do globo ocular e aterrissar, em toda a sua glória esférica, nos ladrilhos sujos? Ah, aqui vou eu, reforçando repetidas vezes que não me preocupo com coisas materiais porque isso não pode mesmo conquistar afeto; você percebeu como minha bunda está balançando como um pêndulo? E olha só o meu dedo indicador, sacudindo na frente do rosto gorducho da caixa! Você notou o quanto ela ficou vermelha? Veja como ela se remexe no banco, pressionando freneticamente o botão para chamar alguém, qualquer um, que leve essa mulher maluca embora. Era de se esperar que, com um bigode desses, ela teria um pouco mais de compaixão pelo incomum. Ou ela nunca ouviu falar em depilação? Ah, meu Deus, será que estou prestes a girar? Sim, aqui vou eu, as mãos estendidas como um guarda de trânsito demente enquanto dou uma volta completa, e será que acabei de…? Sim. Acabei de dar um soquinho no ar. Você viu? Eu, de fato, dei um soquinho no ar enquanto cantava a nota final.

Silêncio. Nem um pio de uma criança birrenta. Nem mesmo o bipe de uma máquina. Tudo que consigo ouvir é o que resta da minha autoestima se espatifando em caquinhos.

Um segundo, dois segundos, três segundos. E lá vamos nós. Três segundos é todo o tempo que os britânicos precisam para fechar os olhos, os ouvidos e a boca para algo. Mas eu sei que as pessoas estão escondendo risadinhas por trás das mãos, enviando mensagens para os amigos, subindo vídeos meus para o YouTube (sim, isso já aconteceu — dezenove vezes, da última vez que meus filhos tecnologicamente talentosos verificaram), guardando a história para contar aos amigos amanhã à noite enquanto tomam umas.

Ofegante, remexo na bolsa e, com a mão trêmula — sem dúvida um efeito colateral de tanto sacudir o dedo —, tento pegar meu cartão de débito.

— Desculpa — murmuro —, mas posso tirar a carne? Eu, hã, eu — inspiro — acho que o cartão não vai… — Fique. Calma.

Por razões que os talentosos médicos deste país não conseguem explicar, meu “problema” parece ser desencadeado pelo estresse. Ou seja, eu não sou um ato de música e dança o tempo todo. Quando os sintomas começaram a se apresentar —primeiro na forma de “I Will Survive”, da Gloria Gaynor, rapidamente seguida por um número final de “Crazy”, da Patsy Cline —, eu não dançava, de jeito nenhum. Só cantava. Minha voz, uma fera aprisionada, arranhando e se contorcendo para fora de mim: desesperada para ser ouvida; desesperada para escapar; desesperada para destruir. A dança é algo bem recente. O Dr. Ashley sugeriu que essa pode ser uma forma de o meu subconsciente controlar as situações que estão fora do meu controle, ao transformar minha explosão em um “ato mais aceitável”. Exatamente como rebolar ao som de “Boom! Shake the Room” em pleno vestiário do clube pode consistir em um ato mais aceitável, eu não sei. Na maior parte do tempo, sou perfeitamente normal.

Tento dirigir a — olho seu crachá — “Sue” um sorriso tranquilizador.

Desconfortável, ela assente lentamente, tirando a carne da sacola, mantendo o contato visual, como se eu tivesse acabado de sacar uma arma, em vez de prestar uma homenagem sincera a John e Paul. Fique calma. Respire. Ela parece um garoto e seu nome é Sue… Ah, droga. Não pense em Johnny Cash, mantenha a calma. Vou ficar bem desde que nada mais aconteça. Respire. Não pense nisso. Enquanto entrego a ela meu cartão de débito, posso ouvir as perguntas no ar e os comentários abafados de “pirada” com um “maluca” de acompanhamento. Posso senti-la latente em mim: a compulsão —o alívio que meu corpo avariado está desesperado em ter. Não pense nisso, não pense nisso. Fecho os olhos brevemente e me concentro no som da minha respiração. Ficarei bem desde que eu não pense naquela música, mas está tudo bem. Estou me acalmando, viu? Se continuar pensando em outra coisa, logo estarei longe daqui, em casa. Minha aflição não será nada mais que uma história para os outros devorarem.

— É sério? — Ela dirige um sorrisinho aos outros clientes. — Melody? Seu nome é Melody?

— Aham.

Eu sei; a ironia não me passou despercebida. Dos psiquiatras que consultei, vários sugeriram que esse pode ser um elo genuíno entre meu subconsciente e meu “problema”. Outro sorrisinho superior de “estamos todos juntos nisto” quase me manda para um território perigoso, mas continuo focada na respiração. Continue pensando no que vou tomar no chá e “Sue” logo não será nada mais que uma lembrança distante. Sue. Sue. Sue.

— Vai pagar em cash?

Ai, bosta.

 'O Som do Nosso Coração' por Emma Cooper

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