Livro ‘A economia com rigor’ por Ilan Goldfajn e Fernando Dantas

Livro 'A economia com rigor: Homenagem a Affonso Celso Pastore' por Ilan Goldfajn e Fernando Dantas
Em nove artigos e uma entrevista inédita, o percurso intelectual e o legado de um dos maiores economistas brasileiros. Com textos de Antonio Delfim Netto, Arminio Fraga Neto, Celso Lafer, Edmar Bacha, Ilan Goldfajn, José Júlio Senna, Marcos Lisboa, Mário Magalhães Mesquita e Samuel Pessôa. Affonso Celso Pastore trilhou uma brilhante trajetória desde a década de 1960, quando passou a integrar a equipe de Antonio Delfim Netto na Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo e posteriormente no ministério da pasta. Entre agosto de 1983 e março de 1985, foi presidente do Banco Central e liderou as negociações da dívida externa...
Capa comum: 160 páginas
Editora: Portfolio; Edição: 1 (2 de julho de 2020)
Idioma: Português
ISBN-10: 8582851081
ISBN-13: 978-8582851081
Dimensões do produto: 21 x 13,8 x 1,2 cm

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Leia trecho do livro

INTRODUÇÃO

Ilan Goldfajn e Fernando Dantas

A VIDA E A OBRA DE Affonso Celso Pastore são um exemplo emblemático da linha de pesquisa econômica baseada no rigor teórico e, principalmente, na busca incessante de uma análise criteriosa dos dados. No contexto da história do pensamento brasileiro, essa corrente muitas vezes minoritária se contrapõe às grandes narrativas sem adequada comprovação que marcaram nossa tradição intelectual.

Essa luta em prol da objetividade, da racionalidade e do teste empírico das hipóteses foi o tema que perpassou quase todas as apresentações do seminário realizado em homenagem aos oitenta anos de Affonso Celso Pastore, na sede do Centro de Debates de Políticas Públicas ( CDPP ), em São Paulo, em 6 de junho de 2019. São características da atuação profissional e da obra de Pastore que se tornaram importante linha mestra deste livro, baseado naquele evento.

Na ocasião do seminário, Marcos Lisboa e outros participantes resgataram a história da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade de São Paulo ( USP), fundada em 1946 e berço intelectual de Pastore. Quase como por acidente, em torno de pesquisadores entre os quais se incluíam a historiadora Alice Canabrava e o estatístico Luiz de Freitas Bueno, a FCEA emergiu como uma escola de economia ligada ao que havia de mais moderno no mundo em termos de pesquisa, impulsionada pela paixão pelo rigor teórico e, em particular, pela comprovação empírica.

Foram recordadas histórias e peripécias dos economistas que, dos anos 1950 ao início dos 1970, com bases de dados bem mais precárias e metodologias naturalmente menos desenvolvidas, lutavam para dar bases teóricas e empíricas sólidas ao pensamento econômico brasileiro. Com destaque, obviamente, para o papel seminal de Pastore.

Rememorou-se também a tese de doutoramento de Pastore, na qual ele mostrou, com base em trabalhosa pesquisa de dados, que a teoria cepalina — base de muitas conclusões da escola econômica estruturalista — de que a produção agrícola tradicional não reagia aos preços estava simplesmente errada.

José Júlio Senna, por sua vez, buscou mostrar como a frustração de Pastore com a falta de instrumentos para controlar a inflação, na sua passagem pela presidência do Banco Central ( BC ) na década de 1980, está na raiz de boa parte das suas contribuições acadêmicas. Nos debates do seminário, e no capítulo escrito por Samuel Pessôa e Marcos Lisboa para este livro, lembrou-se como Pastore chegou próximo da fundamental Regra de Taylor, que guia a política monetária nos tempos atuais, antes da sua formulação.

Todo esse imprescindível trabalho de Pastore é fruto da orientação intelectual de um grupo inicialmente muito pequeno, mas extremamente aplicado e atuante, do qual ele participou e o qual fortaleceu desde sua juventude. Nele, incluíam-se economistas apaixonados pela busca, pela organização e pela análise racional de dados empíricos que servem de comprovação (ou não) para hipóteses rigorosamente formuladas sobre como o mundo de fato funciona. Num país que tantas vezes se deixa levar pelo “pensamento mágico” ou por teorias atraentes sem qualquer respaldo na realidade, Pastore ajudou a plantar as sementes de racionalidade.

Este livro aproveita a excepcional qualidade das apresentações e das discussões durante o seminário, e o fato de que grande parte delas se concentrou exatamente nessa “celebração” da importância de dados como a contribuição fundamental de Pastore como acadêmico, consultor e homem público.

Sem esse arcabouço de pesquisa alimentando de forma constante e regular a formulação de políticas públicas, dificilmente o Brasil reencontrará o caminho do desenvolvimento econômico, em especial neste momento conturbado de nossa história.

Adicionalmente, este livro traz capítulos sobre contabilidade fiscal (assinado por Edmar Bacha), Banco Central (assinado por Arminio Fraga Neto), regime de metas de inflação (em artigos separados de Mário Magalhães Mesquita e Ilan Goldfajn). Trata-se de trabalhos sobre temas que marcaram a carreira profissional do homenageado, realizados por amigos e companheiros de jornada de Pastore especialmente para a celebração dos seus oitenta anos.

E há, por fim, os depoimentos de dois companheiros que conviveram com Pastore desde, respectivamente, a juventude e a adolescência: Antonio Delfim Netto e Celso Lafer. Como tantos outros textos deste livro, são testemunhos do rigor intelectual, do apego aos dados e à objetividade e da grande retidão de caráter de Affonso Celso Pastore.

PARTE I
A obra e a vida profissional

1
A estranha economia da USP , uma historiadora fora do lugar, um estatístico que admirava Marshall e Antonio
Delfim Netto

Marcos Lisboa

NAS DÉCADAS DE 1950 e 1960, a então Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da USP, a FCEA — que em 1969 seria renomeada Faculdade de Economia e Administração ( FEA ) —, produziu um pequeno milagre, liderado por dois professores, Alice Canabrava e Luiz de Freitas Bueno. Na contramão da tradição dominante nas ciências sociais no Brasil, os dois e um conjunto notável de alunos se dedicaram a revirar arquivos, a coletar dados e a utilizar as técnicas então recentes da econometria para analisar a economia brasileira.

Alice Canabrava nasceu em 1911, formou-se na escola normal e foi aprovada em concurso para professora do ensino primário. Em seus primórdios, a USP oferecia bolsas de estudos para professores do ensino público, e assim Canabrava foi aluna dos professores visitantes que formavam as novas gerações, como o historiador francês Fernand Braudel.

Em sua tese de doutorado, de 1942, a professora Alice, como era conhecida, revirou de cabeça para baixo a história da região do rio da Prata. O trabalho pioneiro destacou a relevância do comércio entre as colônias portuguesa e espanhola, quase sempre por vias ilegais, para o desenvolvimento da região. Canabrava revelou-se parte da liga dos historiadores de jaleco branco, aqueles que mergulham em arquivos para coletar dados e só então contar o ocorrido.

Seu trabalho surpreendeu. A tradição das ciências sociais no Brasil em meados do século passado, e da historiografia em particular, partia de uma tese; uma narrativa sobre o processo de desenvolvimento do país, com regras e lógicas que dariam conta de seu atraso. Em seguida, dados esparsos eram utilizados para justificar a tese geral. Mas Canabrava fez o inverso: buscou documentos, dados e evidências para contar o ocorrido com aquela região.

Quatro anos depois, Canabrava candidatou-se à vaga da cátedra em história da América, apresentando mais um trabalho cuidadoso e surpreendente, daquela vez sobre a indústria do açúcar na primeira metade do século XVIII . Obteve a livre-docência e a nota mais alta do concurso, mas foi preterida por decisão do presidente da comissão.

A jovem professora era rigorosa com a pesquisa acadêmica e com a moralidade. Canabrava não teve dúvidas e pediu para ser transferida da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, atravessou o pátio e tornou-se professora de história econômica da então FCEA , inaugurada no mesmo ano, onde viria a orientar historiadores que nas décadas seguintes nos surpreenderam com pesquisas cuidadosas, como Francisco Vidal Luna.

De sua parte, Luiz de Freitas Bueno se formou pela Escola de Engenharia Mackenzie e obteve seu doutorado em estatística pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul ( UFRGS ). Nomeado professor da FCEA na instalação da faculdade, ele foi se dedicar a estudar economia e econometria. “Tudo está em Marshall”, 2 costumava dizer Bueno, segundo conta seu assistente Delfim Netto. A economia de Bueno começava com a microeconomia, a análise de como os preços de mercado equilibram oferta e demanda nas diversas circunstâncias.

Saber das circunstâncias, por sua vez, implicava a análise dos dados de cada caso. Era preciso levantar os números e aplicar as então novas técnicas da estatística, que fora revolucionada por Ronald Fisher, e da econometria, como sistematizada por Trygve Magnus Haavelmo.

Em seu doutorado, Bueno estudara as estimativas com equações simultâneas, mas depois ele se encantou com a econometria de séries de tempo, o que influenciaria seus alunos. O professor gostava mesmo de estudar e cuidar dos seus alunos e nos legou economistas incrivelmente curiosos, como Delfim Netto e Affonso Pastore, assim como muitos livros, doados à biblioteca da USP.

O par inesperado Canabrava e Bueno formou uma geração. Havia que se estudar detalhadamente as fontes primárias, enfronhando-se em arquivos de cartórios e de jornais para levantar dados e acontecimentos, defendia a historiadora. Também era preciso estudar a teoria econômica e as novas técnicas da econometria que permitiam formular conjecturas e testar hipóteses, defendia o estatístico que se descobriu economista.

O resultado dessa agenda de pesquisa foi um conjunto de trabalhos que rejeitaram muitas das teses então dominantes sobre as causas do nosso subdesenvolvimento.

A produção acadêmica liderada por Canabrava e Bueno mudava radicalmente as regras da análise em economia no Brasil que predominavam então. Em vez de longas narrativas que dessem conta dos fatos estilizados do desenvolvimento brasileiro, a agenda de pesquisa da estranha faculdade queria formular, com base na teoria econômica, conjecturas precisas que pudessem ser submetidas aos testes da estatística.

Dessa forma, as narrativas ambiciosas poderiam motivar temas de pesquisa, mas o trabalho de verdade começava com o levantamento dos dados e o uso das melhores técnicas de estimação para verificar em que medida as teses sobreviviam aos dados disponíveis.

Antonio Delfim Netto formara-se técnico em contabilidade, o que na época permitia o acesso à faculdade de economia. Delfim foi assistente de Canabrava, e recorda-se das muitas horas pesquisando sobre notícias de escravos nos jornais do século XIX . Foi também assistente de Bueno, com quem descobriu Marshall e a estatística.

Em 1959, Delfim defendeu sua tese de livre-docência sobre a indústria cafeeira no Brasil. Nesse trabalho surpreendente e cuidadoso, ele levantou os dados sobre a evolução da produção de café, a oscilação do seu preço no mercado e seus impactos na economia brasileira. Delfim analisou as implicações dos acordos dos cafeicultores e das intervenções do poder público na valorização do preço do café no exterior e os reflexos na taxa de câmbio. 3

“De boas intenções o inferno está cheio” poderia ser o subtítulo de seu trabalho magistral. Durante a República Velha, o governo sistematicamente interviera para garantir a renda dos cafeicultores. Mesmo após a Revolução de 1930, o governo Vargas comprara sacas de café para serem destruídas, atenuando a queda da remuneração dos produtores locais e evitando que o excesso de oferta deprimisse seu preço no mercado internacional.

O resultado foi um tiro no pé. Os preços relativamente elevados do café durante décadas, graças à intervenção cara aos cofres brasileiros, mantiveram no mercado produtores ineficientes e valorizaram a taxa de câmbio, desestimulando o desenvolvimento da indústria local. Além disso, a política de valorizar o preço internacional do café terminou por incentivar o aumento da produção e os ganhos de produtividade em outros países. A relevância das exportações de café tornara o nosso governo refém dos interesses imediatos desses produtores, que se revelaram deletérios para o país a longo prazo.

Nos anos seguintes, Delfim, atento às novas pesquisas da academia internacional, estudou os modelos de crescimento econômico inspirados nos argumentos de Keynes na Teoria Geral, que fora tema da sua tese em 1963 para a cátedra de teoria do desenvolvimento econômico.

Superar o atraso passava pela expansão dos setores modernos da indústria. Delfim alertava à época, porém, que o crescimento econômico poderia resultar em crises nas contas externas em decorrência do aumento das importações. Um exemplo disso é seu artigo “Import Substitution: Foreign Investment and International Disequilibrium in Brazil” com Nathaniel Leff, publicado no Journal of Development Studies em 1966.

Aumentar a produtividade da agricultura e diversificar e ampliar as exportações brasileiras permitiriam enfrentar os recorrentes problemas nas contas externas, reduzindo a dependência do café e estimulando o crescimento econômico.

A relevância do desenvolvimento da agricultura nos trópicos fora sugerida a Delfim uma década antes por Eugênio Gudin, durante um seminário na Fundação Getulio Vargas ( FGV ). Gudin mencionou seu ceticismo sobre a política defendida por Juscelino Kubitschek de estimular o desenvolvimento da indústria local.

“Produzir carros é fácil”, disse Gudin, segundo lembra Delfim. “Basta desmontar mil carros e remontá-los para que qualquer país aprenda a produzi-los eficientemente. […] O desafio é domar a agricultura tropical, o que ninguém fez até agora.”

Delfim explicou-me a razão do desafio: “Nas zonas temperadas, o frio do inverno destrói as pragas, o que não ocorre nos trópicos”. Além disso, havia problemas no solo em diversas regiões do país, que dificultavam o desenvolvimento da agricultura, e as plantações das zonas temperadas não se adaptavam bem por aqui.

Na época, já existiam diversos institutos públicos dedicados à pesquisa científica para melhorar a produtividade agrícola no Brasil, como a Universidade Federal de Viçosa e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), que já pertencia à USP . Essas instituições se beneficiavam da imigração de muitos professores europeus após a Segunda Guerra. Além disso, as fundações Rockefeller e Ford financiavam muitas bolsas de estudos para jovens doutores irem estudar no exterior.

Como ministro da Fazenda, Delfim conheceu Eliseu Alves, que estudara microeconomia e se especializara em economia agrícola. Eliseu defendia a formação de pesquisadores em programas de pós-graduação no exterior e era parte de uma equipe que via a necessidade de utilizar a pesquisa científica para desenvolver a agricultura no Brasil. Esse grupo, liderado pelo ministro da Agricultura Luiz Fernando Cirne Lima, constituiu, no governo Médici, um grupo de trabalho que resultou na criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em 1973, com José Irineu Cabral na presidência e Eliseu Alves na diretoria, e que apoiava a pesquisa para o desenvolvimento da agricultura.

O fim dessa história é bem conhecido. Novas técnicas de produção permitiram a expansão da agricultura tropical, como a inesperada produção de soja no Centro-Oeste e do café no cerrado de Minas Gerais. Nas décadas seguintes, a produtividade da nossa agricultura cresceu cerca de 300%, permitindo o barateamento dos alimentos e o aumento da pauta brasileira de exportações.

Em sua passagem pelo Ministério da Fazenda, Delfim teve o mérito de implementar uma agenda para expandir o crescimento e a diversificação da nossa pauta de exportações por meio do aumento da produtividade, como a maior abertura à importação de peças e equipamentos para a produção de bens, além do começo do desenvolvimento da nossa agricultura.

Delfim também cometeu diversos equívocos, comuns à época inclusive em países desenvolvidos, como os controles de preços para combater a inflação. Além disso, ele expandiu demasiadamente os subsídios em meio ao descontrole das contas públicas.

No desastroso governo Geisel que se seguiu, as lideranças trocaram alhos por bugalhos. Fecharam a economia ao comércio exterior, distribuíram incentivos por meio do Fundo de Amparo ao Trabalhador ( FAT) , induziram investimentos do setor privado e das estatais que se revelaram pouco produtivos e ampliaram os desequilíbrios fiscais.

O resultado foi uma imensa crise, com inflação crescente e anos de economia cambaleante, apenas interrompida no começo da década de 1990 com a abertura promovida pelo governo Collor e o ajuste fiscal que permitiu o Plano Real em meio às idiossincrasias do presidente Itamar Franco.

Affonso Celso Pastore foi assistente de Canabrava e de Bueno, além de aluno de Delfim. O senhor de origem italiana, de corpo grande e gestos gentis, ainda hoje acompanha como poucos os dados da economia. Contrariando seus oitenta anos, demonstrou uma vitalidade juvenil ao analisar os números de crescimento acelerado dos preços dos ativos em tempos de juros reduzidos e baixo crescimento da economia quando conversamos na época do seu aniversário em 2019.

Pastore comentou comigo seu temor de que estejamos em meio a uma bolha na economia mundial prestes a estourar, e a economia não tem andado fácil desde então. Seu entusiasmo com a análise da economia, em meio ao seu respeito quase religioso aos dados e ao estudo das novas técnicas da econometria, tira o fôlego dos mais jovens.

Conheço Affonso há décadas e sempre me surpreendo com sua integridade. O que vale é o que os dados dizem, mesmo que o resultado seja desapontador. Sua ética na vida privada em nada difere do seu respeito pelas evidências. Como Canabrava, Pastore não admite transgressões com a análise dos números — nem com a ética.

Pastore começou a aprender econometria com Bueno, e seus primeiros trabalhos utilizavam com extremo cuidado as estimativas de séries de tempo então disponíveis. Não havia ainda os testes de causalidade de Granger, nem as análises de cointegração. Sabedor dos problemas, ele tentava, por meio de análises que parecem intermináveis, verificar a correção das conclusões.

Nos anos que se seguiram, Pastore aprendeu por conta própria as novidades da econometria. Atualmente, ele se dedica a saber em que medida as conclusões do passado sobrevivem aos instrumentos de estimação mais recentes. Seu próximo livro utiliza as bases de dados agora disponíveis e as novas técnicas para testar as suas teses do passado e verificar se ainda sobrevivem. Errar não é problema para Pastore. Ser incapaz de identificar e reconhecer erros, porém, é indesculpável, a seu ver.

Sua tese de doutorado, defendida em 1969, revela muito da velha USP e da obstinação de Pastore. Na época, os economistas brasileiros, como os da maioria do resto do mundo, achavam que a agricultura era herança indesejada do passado. O setor atrasado não reagiria a preços, que podiam aumentar ou diminuir sem que isso influenciasse a quantidade de alimentos produzida. Haveria excesso de trabalhadores no campo, em boa parte improdutivos.

A visão convencional defendia que seria possível reduzir a população no campo sem que isso afetasse a produção de alimentos. Eles acreditavam que a migração dos trabalhadores do campo para as cidades e para a indústria poderia torná-los mais produtivos.

Desde os anos 1940, porém, Theodore Schultz discordava da tese dominante — inquietação que também motivaria os estudos de Pastore anos mais tarde. Embasado por muitos estudos microeconômicos repletos de dados, o norte-americano argumentava que a agricultura reagia aos preços como os demais setores da economia. Mais ainda: Schultz defendeu que a tese de que a agricultura dos países pobres tinha trabalhadores em excesso, improdutivos, estava equivocada. A solidez do seu argumento surpreende meio século depois.

A boa estatística requer testar hipóteses por meio de grupos de controle. Na medicina moderna, um grupo homogêneo de pessoas é separado aleatoriamente em dois grupos, sendo que um recebe a droga e o outro, o placebo. Assim, pode-se estimar o impacto dela sobre os pacientes. Esses experimentos nem sempre são viáveis na economia. Nas últimas décadas, testes semelhantes passaram a ser feitos na microeconomia, mas, na macroeconomia, isso não é possível. Assim, os estudos de econometria têm buscado desenvolver técnicas a fim de emular os grupos de controle para testar conjecturas, que visam simular a melhor estatística.

Eventualmente, porém, experimentos naturais são possíveis. Acidentes inesperados afetam comunidades semelhantes de forma diferente, permitindo realizar os testes desejados.

No começo dos anos 1960, Schultz observou que a gripe espanhola tinha resultado em mortalidade variada nas diversas regiões da Índia no fim da década de 1910. Essa doença devastadora extinguiu muitas vezes entre 4% e 8% da população, mas não deixou sequelas na população sobrevivente nem nos animais ou nas plantas. Passada a epidemia, restavam apenas menos habitantes, e muita dor pelos que haviam ido.

Schultz observou que a epidemia na Índia dizimou percentuais diferentes da população local nas diversas regiões. Comparando os dados nos anos anteriores e posteriores às mortes decorrentes da gripe espanhola, porém, ele constatou que a produção agrícola caiu na mesma proporção da população. Ao contrário da tese até então dominante, não havia mão de obra excedente na agricultura. Quanto maior a mortalidade de trabalhadores rurais, maior a queda da produção de alimentos.

Em meados dos anos 1960, Delfim liderou um grupo de pesquisa sobre a economia agrícola no Brasil. Seria verdade que a produção de alimentos não reagiria aos preços? Em que medida haveria excesso de trabalhadores no campo?

Pastore fez parte desse grupo de pesquisa, o qual, com base em dados agregados, mostrou que a tese dominante parecia pouco robusta. Aparentemente, a produção agrícola reagiria aos preços de mercado como qualquer outro setor.

Poucos anos antes, Delfim havia apresentado a Pastore o trabalho de Karl Popper, filósofo do positivismo alemão que tentara demarcar a fronteira entre a metafísica, os argumentos que se justificam por si sós, e a ciência, na qual as conjecturas devem ser avaliadas pela sua capacidade de dar conta dos dados. Teses bem definidas, segundo Popper, devem delimitar as condições em que podem ser desmentidas pelos fatos. Não se trata de poucos requerimentos. Cabe a quem propõe a conjectura estabelecer precisamente as condições de contorno e os resultados esperados que, caso desmentidos pela evidência, levam à sua rejeição.

Em 1968, Pastore pediu dispensa do seu cargo no Ministério da Fazenda para verificar se a tese de que a produção da agricultura não responderia aos preços de mercado seria válida no Brasil. Ele sabia de Popper graças a Delfim, aprendera sobre a econometria com Bueno e herdara de Canabrava o cuidado com os dados e as evidências.

Pastore ainda estudara os trabalhos de Schultz e as novas técnicas da econometria para além do que lhe ensinara Bueno. Durante uma temporada nos Estados Unidos, conversou com Arnold Harberger sobre os resultados preliminares da sua pesquisa, o que resultou em um convite para apresentá-los no Seminário de Economia Latino-Americana na Universidade de Chicago.

Daí veio sua tese de doutorado, defendida em 1969, que revelou o equívoco dos velhos argumentos desenvolvimentistas. A agriculta reagia aos preços de mercado, concluiu Pastore, embasado por imensa evidência empírica. Esses resultados são descritos no próximo capítulo deste livro. Nos anos seguintes, Pastore se dedicou a estudar a política monetária com o mesmo rigor com que se dedicara ao tema da agricultura.

O surpreendente departamento de economia da USP formou economistas notáveis, mas, sendo um corpo estranho na nossa academia, acabou sucumbindo à tradição dominante de muita narrativa e pouca análise empírica. Para piorar, tornou-se mais uma vítima do pouco conhecimento dos desdobramentos da pesquisa em economia nos demais países.

Foram necessários muitos anos para que a academia brasileira resgatasse o diálogo com a pesquisa econômica do exterior, além de analisar cuidadosamente os dados para testar conjecturas e formular propostas de política econômica. Pastore, porém, continuou a estudar, a contribuir com o debate público e a formar novos economistas.

Tenho por Affonso respeito e admiração. O professor grandalhão, com bigode curto e ética impecável, não para de estudar, não desiste do Brasil e não foge do debate. Fui seu aluno tardio. Pastore me ensinou, por meio do seu exemplo, o que se espera de quem anseia ter o privilégio de servir ao público.


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