Livro ‘Tempos Difíceis’ por Charles Dickens

Livro 'Tempos Difíceis' por Charles Dickens
Neste clássico da literatura, Charles Dickens trata da sociedade inglesa durante a Revolução Industrial usando como pano de fundo a fictícia e cinzenta cidade de Coketown e a história seus habitantes. Em seu décimo romance, o autor faz uma crítica profunda às condições de vida dos trabalhadores ingleses em fins do século XIX, destacando a discrepância entre a pobreza extrema em que viviam e o conforto proporcionado aos mais ricos da Inglaterra vitoriana. Simultaneamente, lança seu olhar sagaz e bem humorado sobre como a dominação social é assegurada por meio da educação das crianças, com uma compreensão aguda de como...
Capa comum: 336 páginas
Editora: Boitempo; Edição: 1 (31 de dezembro de 2014)
Idioma: Português
ISBN-10: 8575594125
ISBN-13: 978-8575594124
Dimensões do produto: 21,2 x 14,2 x 2,2 cm
Peso de envio: 572 g

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Leia trecho do Livro

Livro 'Tempos Difíceis' por Charles Dickens

Sobre Tempos difíceis
Daniel Puglia

Tempos difíceis, de Charles Dickens, talvez seja uma das melhores portas de entrada para o universo do escritor britânico. Muitas das preocupações que nortearam sua escrita ao longo de inúmeros romances, ensaios e artigos estão condensadas neste romance. Tanto para leitores que iniciam seu caminho quanto para os mais familiarizados com temas e discussões presentes em sua obra, este é um livro que pode servir como guia de leitura e releitura permanente.

As consequências mais nefastas trazidas pelo rápido avanço do capitalismo no século XIX formam um dos pilares em que se estrutura a estética de Dickens. O outro pilar é a crença numa energia vital e veemente, capaz de reformar quaisquer sentimentos humanos: a imaginação e sua capacidade para despertar o que de melhor trazemos em nosso coração. A relação entre esses dois pilares origina dificuldades para o escritor, uma vez que sua prosa frequentemente realiza diagnósticos precisos, com achados de vasto alcance artístico que, no entanto, arriscam soluções nem sempre satisfatórias no plano formal – umas das características, aliás, da estranha genialidade de Dickens.

Em Tempos difíceis, como em grande parte da obra do autor, a racionalidade movida pelo lucro e pela exploração é contraposta pela celebração da fantasia e da bondade: um apelo que, em tempos tão difíceis como os atuais, pode parecer excessivamente ingênuo. Mas a fantasia e a bondade aqui devem ser vistas como um gesto, um pedido, um desejo: o sol para terminar uma noite.

As deteriorações causadas pela industrialização, os antagonismos entre as classes, o aviltamento das condições de trabalho: tudo isso estabelece uma rede de conexões que, ao longo do romance, envolve a vida familiar degradada, a diluição de sonhos afetivos e as marcas individuais que os personagens carregam. O notável é que Tempos difíceis elabora essa matéria mediante uma sofisticada fusão de arte narrativa, mapeamento social e investigação da vida subjetiva – uma poderosa combinação presente nas obras-primas.

Sobre Tempos difíceis

Havia ruas largas, todas muito semelhantes umas às outras, e ruelas ainda mais semelhantes umas às outras, onde moravam pessoas também semelhantes umas às outras, que saíam e entravam nos mesmos horários, os mesmos sons nas mesmas calçadas, para fazer o mesmo trabalho, e para quem cada dia era o mesmo de ontem e de amanhã, e cada ano o equivalente do próximo e do anterior. – Charles Dickens

Dickens vê sua sociedade apodrecendo, desvelando-se, tão sobrecarregada de substância desprovida de sentido que afunda gradualmente em uma espécie de lodo primitivo. – Terry Eagleton

Dickens estava lá para lembrar o povo que a Inglaterra havia apagado duas palavras do lema revolucionário – deixara apenas “Liberdade” e destruíra “Igualdade” e “Fraternidade”. Em todos os seus livros ele advoga a Fraternidade. Neste Tempos difíceis , defende especialmente a Igualdade. – G. K. Chesterton

Uma análise abrangente e criativa da filosofia dominante do industrialismo. – Raymond Williams

Sobre o autor

Nascido na Inglaterra em 1812, Charles Dickens foi um dos mais conhecidos escritores da era vitoriana. Além de seus célebres romances, escreveu contos, peças teatrais e artigos jornalísticos. Em suas obras, abordou alguns dos principais problemas sociais de sua época, como a violência, a pobreza, o desemprego e as péssimas condições de trabalho nas fábricas inglesas. Morreu em 1870, aos 58 anos, vítima de um acidente vascular cerebral. Tempos difíceis é sua décima obra e inaugura a segunda fase criativa do autor, quando passa a fazer críticas contundentes à sociedade em que vivia e a expor os vícios desta.

LIVRO PRIMEIRO

SEMEADURA

Livro 'Tempos Difíceis' por Charles Dickens

I
A ÚNICA COISA NECESSÁRIA

“Ora, eis o que quero: Fatos. Ensinem a estes meninos e meninas os Fatos, nada além dos Fatos. Na vida, precisamos somente dos Fatos. Não plantem mais nada, erradiquem todo o resto. A mente dos animais racionais só pode ser formada com base nos Fatos: nada mais lhes poderá ser de qualquer utilidade. Esse é o princípio a partir do qual educo meus próprios filhos, e esse é o princípio a partir do qual educo estas crianças. Atenha-se aos Fatos, senhor!”

O cenário era um cubículo de sala de aula, simples, despojado e monótono, e o reto dedo indicador do palestrante enfatizava suas observações sublinhando cada frase com uma linha na manga do professor. A ênfase era auxiliada pela testa do palestrante, uma parede quadrada que se assentava sobre as sobrancelhas, enquanto os olhos abrigavam-se comodamente em duas cavernas escuras, ensombreadas pela parede. A ênfase era auxiliada pela boca do palestrante, que era grande, estreita e rígida. A ênfase era auxiliada pela voz do palestrante, que era inflexível, seca e ditatorial. A ênfase era auxiliada pelos cabelos do palestrante, que se eriçavam em volta da calva, uma plantação de pinheiros para defender do vento a superfície brilhante, toda cheia de saliências como a crosta de uma torta de ameixas, como se à cabeça faltasse espaço para armazenar os fatos concretos ali contidos. A postura obstinada do palestrante, seu casaco quadrado, suas pernas quadradas, seus ombros quadrados – e mais, seu próprio colarinho, preparado para segurar-lhe a garganta em um incômodo aperto, como um fato teimoso, por assim dizer –, tudo auxiliava a ênfase.

“Nesta vida não queremos nada além dos Fatos, senhor; nada além dos Fatos!”

O palestrante, o professor e o terceiro adulto presente recuaram um pouco e varreram com o olhar o plano inclinado composto pelos pequenos recipientes agrupados em ordem, prontos para receber galões imperiais de fatos, até estarem cheios até a borda.

II
O ASSASSINATO DOS INOCENTES

Sr. Thomas Gradgrind. Um homem de realidades. Um homem de fatos e cálculos. Um homem que trabalha de acordo com o princípio de que dois mais dois são quatro, e nada mais, e não pode ser persuadido a permitir nada mais. Sr. Thomas Gradgrind – peremptoriamente, Thomas – Thomas Gradgrind. Com uma régua e uma balança, e a tabuada sempre no bolso, senhor, pronto para pesar e medir qualquer parcela da natureza humana, e dizer o resultado exato. É uma mera questão de números, um caso de simples aritmética. Pode-se tentar enfiar alguma outra crença absurda na cabeça de George Gradgrind, ou Augustus Gradgrind, ou John Gradgrind, ou Joseph Gradgrind (todos indivíduos hipotéticos, não existentes), mas na cabeça de Thomas Gradgrind – não, senhor!

Com tais termos o Sr. Gradgrind sempre se apresentava, mentalmente, fosse ao seu círculo privado de conhecidos ou ao público em geral. Com tais termos, sem dúvida substituindo a palavra “senhor” por “meninos e meninas”, Thomas Gradgrind agora apresentava Thomas Gradgrind aos pequenos recipientes diante dele que seriam enchidos com fatos.

Assim, enquanto seus olhos brilhavam ansiosos sobre os alunos, de dentro das cavernas já mencionadas, ele parecia um canhão carregado até a boca com fatos, preparado para lançar as crianças para fora das regiões da infância com um único disparo. Parecia também um aparelho galvanizador, carregado com um lúgubre substituto mecânico para as jovens e frágeis imaginações que seriam levadas de roldão. “Menina número vinte”, disse o Sr. Gradgrind, apontando reto seu dedo indicador reto.

“Não conheço essa menina. Quem é essa menina?”

“Sissy Jupe, senhor”, explicou a número vinte, corando, levantando-se da cadeira e fazendo uma reverência.

“Sissy não é nome”, disse o Sr. Gradgrind. “Não diga que seu nome é Sissy. Diga que seu nome é Cecília.”

“Meu pai me chama de Sissy, senhor”, respondeu a jovem com voz trêmula e outra reverência.

“Mas não deve fazê-lo”, disse o Sr. Gradgrind.

“Diga-lhe que não deve. Cecilia Jupe. Deixe-me ver. O que faz seu pai?”

“Ele pertence ao ramo da equitação, se me permite, senhor.” O Sr. Gradgrind franziu o cenho e espantou tal vocação reprovável com um aceno de mão.

“Não queremos saber de nada disso, aqui. Você não deve dizer nada sobre isso, aqui. Seu pai doma cavalos, não?”

“Se me permite, senhor, quando se consegue algum para domar, doma-se o cavalo no picadeiro, senhor.”

“Você não deve mencionar o picadeiro, aqui. Muito bem, então. Descreva o trabalho de seu pai como domador. Creio que ele trata cavalos doentes.”

“Oh, sim, senhor.”

“Muito bem, então. Ele é cirurgião veterinário, ferrador e domador de cavalos. Dê-me sua definição de ‘cavalo’.” (Sissy Jupe pareceu bastante alarmada com a exigência.)

“Menina número vinte incapaz de definir um cavalo!”, disse o Sr. Gradgrind, para a alegria de todos os pequenos recipientes.

“Menina número vinte desprovida de quaisquer fatos em referência a um dos animais mais comuns! Agora, a definição de algum garoto. Bitzer, a sua.”

O dedo reto, movendo-se para lá e para cá, pousou de súbito sobre Bitzer, talvez porque este estivesse, por acaso, sentado sob o mesmo raio solar que, dardejando através de uma das janelas nuas da sala intensamente caiada, iluminava Sissy. Porque meninos e meninas sentavam-se sobre a superfície do plano inclinado em dois grupos compactos, divididos ao centro por um estreito intervalo; Sissy, que estava sentada no canto de uma fileira do lado ensolarado, era atingida pelo começo do raio de sol, e Bitzer, que estava no canto de uma fileira do lado oposto, um pouco adiante, era atingido pelo fim dele. Porém, enquanto a menina tinha olhos e cabelos tão escuros que pareciam ganhar uma cor ainda mais profunda e lustrosa do sol quando este brilhava sobre ela, o menino tinha olhos e cabelos tão claros que os mesmos raios pareciam roubar-lhe a pouca cor que possuía. Seus olhos frios não chegariam a ser olhos, não fossem as curtas pontas dos cílios que, colocando-os em contraste imediato com algo mais pálido do que eles, mostravam sua forma. Seus cabelos muito curtos bem poderiam ser uma mera continuação das sardas castanhas da testa e do rosto. Sua pele era tão doentia e deficiente de coloração natural que parecia que, caso ele se cortasse, sangraria branco.

“Bitzer”, disse Thomas Gradgrind, “sua definição de um cavalo.”

“Quadrúpede. Graminívoro. Quarenta dentes, a saber, vinte e quatro molares, quatro caninos e doze incisivos. Troca a pelagem na primavera; em regiões pantanosas, também troca os cascos. Cascos duros, mas que requerem ferraduras. Idade conhecida por marcas na boca.”

Eis Bitzer (e muito mais). “Agora, menina número vinte”, disse o Sr. Gradgrind, “você sabe o que é um cavalo.”

Ela fez outra reverência, e teria corado mais se pudesse corar mais do que corara. Bitzer, após piscar rapidamente na direção de Thomas Gradgrind, com ambos os olhos, e captar a luz sobre suas pálpebras trêmulas, como se fossem antenas de insetos agitados, bateu continência na testa sardenta e sentou-se outra vez.

O terceiro cavalheiro deu um passo adiante. Um homem cheio de rotinas e padrões, ele era; um oficial do governo; a seu modo (e também ao modo da maioria das pessoas), um pugilista declarado; sempre em treinamento, sempre com um sistema para forçar goela abaixo do público em geral, como um remédio amargo, sempre comentado na sede de sua pequena secretaria pública e pronto para lutar contra toda a Inglaterra. Para manter a fraseologia pugilística, ele não tinha gênio para fugir do combate, qualquer que fosse e onde fosse, e era um lutador temível. Subia ao ringue e esmurrava qualquer um com a direita, seguida da esquerda, parada, troca, contragolpe, e levava o oponente para as cordas (sempre lutava contra Toda Inglaterra), avançando habilmente contra ele. Por certo, ele levaria o bom senso à lona e tornaria o infeliz adversário surdo à contagem. E fora-lhe dada, por elevada autoridade, a missão de promover o grande Milênio do serviço público, quando os Comissários reinarão sobre a terra.

“Muito bem”, disse esse cavalheiro, sorrindo vigorosamente e cruzando os braços. “Isso é um cavalo. Permitam, então, que lhes pergunte, meninos e meninas: vocês decorariam um aposento com um papel de parede que retratasse cavalos?”

Após uma pausa, metade das crianças gritou em coro: “Sim, senhor!”. Ao que a outra metade, vendo no rosto do cavalheiro que o “sim” estava errado, gritou em coro: “Não, senhor!” – como é o costume nesse tipo de exame.

“Claro que não. E por quê?”

Pausa. Um menino corpulento e abobalhado, com respiração de asmático, aventurou-se a responder: porque ele não usaria papel de parede, pintaria o aposento.

“Você deve usar papel de parede”, disse o cavalheiro, um tanto exaltado.

“Você deve usar papel de parede”, disse Thomas Gradgrind, “goste ou não. Não nos diga que não usaria. O que você está pensando, menino?”

“Vou explicar”, disse o cavalheiro, depois de outra pausa desanimadora, “por que não se deve decorar um aposento com um papel de parede que retrate cavalos. Vocês já viram cavalos andando para cima e para baixo nas paredes de um quarto – de fato? Já viram?”

“Sim, senhor!”, uma metade. “Não, senhor!”, outra metade.

“É claro que não”, disse o cavalheiro, com um olhar indignado para a metade errada. “Portanto, vocês não devem ver em lugar algum aquilo que não veem de fato; não devem ter em lugar algum aquilo que não têm de fato. O que se chama de Bom Gosto é apenas outro nome para Fatos.”

Thomas Gradgrind assentiu.

“Esse é um novo princípio, uma descoberta, uma grande descoberta”, disse o cavalheiro. “Agora, outra pergunta. Suponham que vocês queiram acarpetar um quarto. Usariam um carpete que retratasse flores?”

Àquela altura, havia a convicção geral de que “Não, senhor!” era sempre a resposta certa para o cavalheiro, e o coro do “não” foi bastante forte. Apenas uns poucos desgarrados disseram “sim”, entre eles Sissy Jupe.

“Menina número vinte”, disse o cavalheiro, sorrindo com a força calma do conhecimento.

Sissy corou e levantou-se.

“Então você acarpetaria seu quarto – ou o quarto do seu marido, se fosse uma mulher crescida e tivesse um marido – com figuras de flores, não é mesmo?”, disse o cavalheiro. “Por quê?”

“Se me permite, senhor, gosto muito de flores”, respondeu a menina.

“E é por isso que você colocaria mesas e cadeiras sobre elas e deixaria que as pessoas pisassem nelas com botas pesadas?”

“Não as machucaria, senhor. Elas não secariam nem seriam esmagadas, se me permite, senhor. Seriam figuras de coisas muito bonitas e agradáveis, e imagino que…”

“Sim, sim, sim! Mas você não deve imaginar”, gritou o cavalheiro, bastante entusiasmado por ter chegado, de modo tão feliz, ao argumento pretendido.

“É isso! Você não deve imaginar nunca.”

“Você, Cecilia Jupe”, repetiu solenemente Thomas Gradgrind, “jamais fará qualquer coisa desse tipo.” “Fatos, fatos, fatos!”, disse o cavalheiro. E:

“Fatos, fatos, fatos!”, repetiu Thomas Gradgrind.

“Vocês deverão ser, em todos os aspectos, regulados e governados”, disse o cavalheiro, “pelos fatos. Esperamos ter em breve um conselho dos fatos, composto de comissários dos fatos, que forçarão o povo a ser um povo dos fatos, e nada além de fatos. Vocês devem descartar a palavra Imaginação. Vocês nada têm a ver com ela. Não deverão tê-la em nenhum objeto de uso ou ornamento, o que seria uma contradição de fato. Vocês não caminham, de fato, sobre flores; não se pode permitir que vocês caminhem sobre flores em carpetes. Vocês não acham que borboletas e pássaros estrangeiros vêm pousar em porcelanas; não se pode permitir que pintem borboletas e pássaros estrangeiros em porcelanas. Vocês jamais viram quadrúpedes subindo e descendo paredes; vocês não podem ter quadrúpedes representados em paredes. Devem usar”, disse o cavalheiro, “para todos esses propósitos, combinações e versões (em cores primárias) de figuras matemáticas passíveis de prova e demonstração. Essa é a nova descoberta. Isso é fato. Isso é bom gosto.”

A menina fez uma reverência e sentou-se. Era muito jovem e parecia assustada com o prospecto pragmático que o mundo lhe oferecia.

“Se o Sr. Choakumchild”, disse o cavalheiro, “quiser iniciar sua primeira lição, Sr. Gradgrind, ficarei feliz em observar como ele procede, com sua permissão.”

O Sr. Gradgrind sentia-se grato. “Sr. Choakumchild, estamos esperando apenas pelo senhor.”

Assim, o Sr. Choakumchild começou, da melhor maneira possível. Ele e outros cento e quarenta e poucos professores haviam sido torneados recentemente, ao mesmo tempo e na mesma fábrica, como pernas de piano. Havia passado por uma série de etapas e respondido a perguntas de quebrar a cabeça. Ortografia, etimologia, sintaxe e prosódia, biografia, astronomia, geografia e cosmografia geral, as ciências da proporção composta, álgebra, agrimensura, música vocal, desenho a partir de modelos. Estava tudo na ponta de seus dez dedos gelados. Havia trabalhado duro até chegar ao Nível B do Honorável Conselho Privado de Sua Majestade, e havia colhido frutos nos ramos mais elevados das ciências físicas e matemáticas, do francês, alemão, latim e grego. Sabia tudo sobre os Divisores de Águas de todo o mundo (fossem lá o que fossem), e todas as histórias de todos os povos, e todos os nomes de todos os rios e montanhas, e todos os produtos, modos e costumes de todos os países, todas as suas fronteiras e direções, conforme os trinta e dois pontos da rosa dos ventos. Ah, bastante exagerado, o Sr. Choakumchild. Se houvesse aprendido um pouco menos, poderia ter ensinado muito mais!

Prosseguiu a lição preparatória como a Morgiana dos Quarenta Ladrões: olhando dentro de cada jarro enfileirado diante dele, um após o outro, para ver o que continham. Dize, bom senhor Choakumchild, quando de teu alambique tiveres logo enchido cada jarro até a borda, pensarás que mataste a ladra Imaginação que dentro deles espreita – ou apenas que a terás aleijado e deformado?

III UMA BRECHA

O Sr. Gradgrind caminhava da escola para casa em estado de considerável satisfação. Era sua escola, e ele pretendia que ela fosse um modelo. Pretendia que cada criança nela fosse um modelo – como os jovens Gradgrinds eram todos modelos. Havia cinco jovens Gradgrinds, e cada um deles era um modelo.

Haviam sido doutrinados desde a mais tenra infância; adestrados, como pequenas lebres. Assim que puderam correr sozinhos, foram obrigados a correr para a sala de aula. O primeiro objeto com o qual tiveram uma associação, ou do qual conservaram alguma lembrança, foi um grande quadro negro no qual um Ogro seco desenhava a giz sinistros algarismos brancos.

Não que conhecessem, por nome ou natureza, qualquer coisa sobre os ogros. Os Fatos os livrem! Uso a palavra apenas para definir um monstro que vivia num castelo de aulas, só Deus sabe com quantas cabeças manipuladas numa só, e capturava a infância, arrastando-a pelos cabelos para tenebrosos covis estatísticos. Nenhum dos pequenos Gradgrinds jamais vira um rosto na lua; já ocupavam alturas lunares antes de falar direito. Nenhum pequeno Gradgrind jamais aprendera a tola musiquinha: “Brilha, brilha, estrelinha! Lá no céu, pequenininha!”. Nenhum pequeno Gradgrind jamais fora impreciso sobre o tamanho de uma estrela, já que, aos cinco anos, cada pequeno Gradgrind já dissecara a Ursa Maior como um professor Owen e dirigira o Grande Carro como um maquinista de trem. Nenhum pequeno Gradgrind jamais associara uma vaca no pasto àquela famosa vaca do chifre torcido que chifrou o cão que perseguiu o gato que matou o rato que comeu o grão, ou àquela vaca, ainda mais famosa, que engoliu o Pequeno Polegar: nunca ouvira falar dessas celebridades, e fora apresentado às vacas apenas como quadrúpedes graminívoros e ruminantes, com vários estômagos.

Àquele prosaico lar, batizado de Stone Lodge, o Sr. Gradgrind dirigia seus passos. Ele estava praticamente aposentado do comércio de ferragens por atacado quando construiu Stone Lodge e agora procurava uma oportunidade adequada para fazer uma figura aritmética no Parlamento. Stone Lodge situava-se numa charneca distante dois ou três quilômetros de uma grande cidade – que será batizada de Coketown neste fiel guia que aqui se apresenta.

Stone Lodge era um elemento bastante regular na superfície da região. Nenhuma dissimulação atenuava ou obscurecia aquele intransigente fato da paisagem. Uma casa enorme e quadrada, com um pórtico pesado que obscurecia as janelas principais, assim como as pesadas sobrancelhas de seu dono ensombreavam seus olhos. Uma casa calculada, planejada, equilibrada e testada. Seis janelas de um lado da porta, seis do outro; doze no total numa ala, doze no total na outra ala; vinte e quatro, somando-se as alas de trás. Um gramado, um jardim e uma pequena entrada, todos regrados e medidos como um livro de contabilidade botânica. Gás e ventilação, serviço de água e esgoto, tudo de primeira. Traves e braçadeiras de ferro, à prova de fogo de cima a baixo; elevadores para as criadas e todas as suas escovas e vassouras; tudo que o coração poderia desejar.

Tudo? Bem, suponho que sim. Os pequenos Gradgrinds também tinham gabinetes para vários campos da ciência. Tinham um pequeno gabinete de conquiliologia, um pequeno gabinete de metalurgia e um pequeno gabinete de mineralogia; e os espécimes estavam todos ordenados e rotulados, e as amostras de pedras e minérios pareciam ter sido extraídas com instrumentos extremamente rígidos, como seus próprios nomes; e, parafraseando os tolos versinhos de Peter Piper, que nunca foram ditos pelas babás dos pequenos Gradgrinds, se os gananciosos ­Gradgrinds ganhassem mais do que isso, o que, em nome da Grande Graça, ganhariam os gananciosos Gradgrinds?

O pai dos pequenos Gradgrinds continuava caminhando satisfeito e otimista. Ele era um pai afetuoso, à sua maneira; porém, era provável que se descrevesse (se fosse obrigado a dar uma definição, como Sissy Jupe) como um pai “eminentemente prático”. Orgulhava-se da expressão “eminentemente prático”, que parecia ter um significado especial quando aplicada a ele. Em qualquer reunião pública em Coketown, sobre qualquer assunto, algum cidadão decerto aproveitaria o ensejo para aludir ao seu eminentemente prático amigo Gradgrind. O que sempre agradava ao eminentemente prático amigo. Este sabia que tal alusão não era mais do que lhe era devido, mas o que lhe era devido era aceitável.

Ele chegara ao terreno neutro das cercanias da cidade, que não era nem cidade nem campo, e, no entanto, a perspectiva de ambos foi arruinada quando ele ouviu o som da música. A banda desengonçada e desafinada, adjacente ao estabelecimento hípico que se instalara em um pavilhão de madeira, zurrava a plenos pulmões. Uma bandeira, tremulando no alto do templo, proclamava à humanidade que o “Circo Hípico Sleary” reivindicava a intercessão de todos. O próprio Sleary, uma corpulenta estátua moderna com um mealheiro junto do cotovelo, num nicho eclesiástico de arquitetura gótica primitiva, recolhia o dinheiro. A Srta. Josephine Sleary, segundo anunciavam folhetos muito longos e estreitos, iniciava os entretenimentos com seu gracioso carrossel tirolês. Naquela tarde, entre outras maravilhas agradáveis e sempre estritamente honestas que se deveriam ver para crer, Signor Jupe “mostraria as divertidas proezas de seu cão altamente treinado, Patas Felizes”. Também exibiria “seu espantoso feito de lançar setenta e cinco pesos de cinquenta quilos em rápida sucessão por cima da cabeça, formando uma fonte de ferro em pleno ar, um feito que jamais se tentou neste ou em qualquer outro país, arrancando aplausos arrebatados de multidões entusiasmadas, e por isso não pode deixar de fazer parte do espetáculo”. O mesmo Signor Jupe animaria “os vários números, a intervalos frequentes, com gracejos castos e réplicas shakespearianas”. Por último, ele brindaria a plateia interpretando seu personagem favorito, o Sr. William Button, da Rua Tooley, na “recentíssima e hilariante comédia hípica A viagem do alfaiate a Brentford ”.

É claro que Thomas Gradgrind não prestou nenhuma atenção a essas trivialidades, mas passou como um homem prático deveria passar, espantando do pensamento os insetos barulhentos, ou trancando-os na Casa de Correção. Mas a curva da estrada levou-o aos fundos do pavilhão, e nos fundos do pavilhão havia numerosas crianças em numerosas atitudes furtivas, esforçando-se para espiar as glórias secretas do lugar.

Aquilo o fez parar. “Ora, e pensar que esses vagabundos”, disse ele, “estão atraindo jovens hordas para longe de uma escola-modelo.”

Como havia um trecho de grama raquítica e entulho entre ele e as jovens hordas, tirou um monóculo do colete para procurar qualquer criança que conhecesse e pudesse expulsar dali. Por um fenômeno quase inacreditável, embora perfeitamente claro, o que ele viu, senão sua metalúrgica Louisa, espiando com toda a força por um buraco numa tábua de pinho, e seu matemático Thomas, rastejando para ver ao menos um casco do gracioso carrossel tirolês!

Mudo de espanto, o Sr. Gradgrind dirigiu-se ao local onde sua família desgraçava-se daquela maneira, pôs as mãos em cada filho transgressor e disse:

“Louisa!! Thomas!!”

Ambos ergueram-se, vermelhos e desconcertados. No entanto, Louisa olhou para o pai com mais ousadia do que Thomas. Na verdade, Thomas não olhou para ele, mas entregou-se para ser conduzido para casa como uma máquina.

“Em nome da fantasia, do ócio e da tolice!”, disse o Sr. Gradgrind, afastando cada um com uma mão. “O que estão fazendo aqui?”

“Queria ver como era”, respondeu Louisa laconicamente.

“Ver como era?”

“Sim, pai.”

Ambos tinham um ar fatigado e mal-humorado, em particular a menina: ainda assim, lutando contra a insatisfação em seu rosto, havia uma luz sem nada em que se refletir, um fogo sem nada para queimar, uma imaginação faminta que se mantinha viva de algum modo e iluminava sua expressão. Não com o brilho natural da alegre juventude, mas com clarões incertos, ansiosos e duvidosos, que tinham algo de doloroso, como a expressão de um rosto cego tateando o caminho.

Ela era uma criança de quinze ou dezesseis anos; mas não estava longe o dia em que pareceria ter-se tornado mulher de repente. Assim pensava seu pai enquanto olhava para ela. Era bonita. Seria orgulhosa (pensou ele a seu modo eminentemente prático), se não fosse sua educação. “Thomas, embora tenha o fato diante de mim, acho difícil acreditar que você, com toda a sua educação e recursos, tenha trazido sua irmã a uma cena como esta.”

Eu o trouxe, pai”, disse Louisa depressa.

“Pedi que ele viesse.” “Lamento ouvir isso. Lamento muito, de fato. Isso não torna Thomas melhor, e torna você pior, Louisa.”

Ela olhou de novo para o pai, mas nenhuma lágrima escorreu por sua face.

“Você! Thomas e você, para quem o círculo das ciências está aberto; Thomas e você, que foram treinados para a exatidão matemática; Thomas e você, aqui!”, gritou o Sr. Gradgrind. “Nessa posição degradante! Estou estupefato.”

“Eu estava cansada, pai. Tenho me sentido cansada há muito tempo”, disse Louisa.

“Cansada? De quê?”, perguntou o atônito pai.

“Não sei – acho que de tudo.”

“Não diga mais nada”, retorquiu o Sr. Gradgrind. “Você está sendo infantil. Não ouvirei nem mais uma palavra.” Ele não voltou a falar até que houvessem caminhado cerca de um quilômetro em silêncio, então irrompeu: “O que diriam suas amigas, Louisa? Você não dá valor à boa opinião delas? O que diria o Sr. Bounderby?”

Diante desse nome, a filha lançou-lhe um rápido olhar, notável por seu caráter intenso e inquiridor. Ele não viu nada porque, antes que olhasse para ela, Louisa baixou os olhos!

“O que”, repetiu ele de imediato, “diria o Sr. Bounderby?” Durante todo o caminho até Stone Lodge, enquanto conduzia com grave indignação os dois delinquentes, ele repetia a intervalos regulares: “O que diria o Sr. Bounderby?” – como se o Sr. Bounderby fosse a Sra. Grundy [¹].


¹ Personagem da peça Speed the Plough , de Thomas Northon, cujo nome tornou-se popular como sinônimo de pessoa moralista e preocupada em demasia com as convenções sociais. (N. T.)

Livro 'Tempos Difíceis' por Charles Dickens

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