Livro ‘O educador: um perfil de Paulo Freire’ por Sérgio Haddad

Livro 'O educador: um perfil de Paulo Freire' por Sérgio Haddad
Um perfil de Paulo Freire
Num momento de radicalização ideológica no país, um livro sóbrio que mostra Paulo Freire para além dos estereótipos. “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!” Era comum encontrar frases assim nas manifestações contra o governo Dilma Rousseff, em 2015. Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, as críticas a Freire ganharam reforço contundente. O educador, perfil biográfico de Paulo Freire, traz sobriedade a esse debate contaminado pela polarização ideológica; recupera a experiência exitosa de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, às vésperas do golpe de 1964; e conta em detalhe a perseguição que Freire sofreu dos militares...
Capa comum: 256 páginas
Editora: Todavia; Edição: 1 (7 de agosto de 2019)
Idioma: Português
ISBN-10: 658030927X
ISBN-13: 978-6580309276
Dimensões do produto: 14 x 1,7 x 21 cm
Peso de envio: 349 g

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Leia trecho do livro

Para Celso Beisiegel e Nilton Fischer
in memoriam,
com quem aprendi e dialoguei sobre Paulo Freire.

Para Tomás e Nina, meus netos,
com quem exercito a pedagogia da esperança.

Apresentação

Este livro começou a ser construído em agosto de 2017. Naquela oportunidade seu objetivo era o de colocar na mão das leitoras e dos leitores um texto simples, introdutório, mas que ao mesmo tempo fosse cuidadoso em seu conteúdo e na maneira de tratar os principais fatos da vida e da obra do educador Paulo Freire.

A motivação vinha por dois lados: uma conjuntural e outra de natureza pessoal. A primeira propunha oferecer um material acessível em conteúdo e forma para um conjunto de pessoas que, não conhecendo o educador, quisesse um texto que fosse a porta de entrada para um entendimento mais aprofundado sobre o biografado. Percebia, no momento em que a sociedade brasileira estava cindida e que se acirravam as posições políticas, que Paulo Freire havia sido levado ao centro de um debate que se dividia entre amor e ódio. Surpresa não foi só percebê-lo nessa posição, já que andava um tanto esquecido do debate público nos últimos anos, mas sim a desinformação sobre o educador, a utilização de argumentos para defendê-lo ou atacá-lo sem qualquer fundamento válido. Seria importante, então, produzir algo que suprisse essa necessidade para setores da sociedade que se mostravam interessados em saber mais e ter argumentos para compreender e participar do debate, que não fossem apenas do mundo da educação, e que, de alguma maneira, precisavam conhecer o educador.

A segunda motivação era de natureza pessoal: queria estudar Paulo Freire de forma sistemática e em profundidade. Como educador popular, professor em escolas de Educação de Jovens e Adultos ( EJA ) ou na minha carreira universitária, sempre li Paulo Freire para o meu trabalho, mas nunca havia dedicado um ano para estudá-lo. Valeu a pena, aprendi muito.

Mas havia uma outra motivação, ou melhor, um desafio nesta empreitada: escrever uma biografia. Depois de anos escrevendo artigos para o mundo acadêmico, com suas regras e amarras, ou elaborando textos como ativista, que também têm suas liturgias, me aventurei num romance histórico (Apartamento 34) no qual pude exercer toda a liberdade possível na escrita, além de me deixar levar pelos personagens. O desafio agora era outro: não havia espaço para imaginação. Logo nos primeiros capítulos fui questionado pelo meu editor com a pergunta: “De onde você tirou isso?”. Ele se referia a um trecho em que eu havia dado “asas à imaginação”, colocando sentimentos para dar um sabor especial ao que estava escrevendo, mas que não podiam ser comprovados. Lembrei-me então de que uma biografia exige veracidade na informação e que meus limites eram muito estreitos para construir um texto que tivesse características de literatura e que, ao mesmo tempo, fosse fiel aos fatos. Aprendi que não é fácil fazer uma biografia e passei a admirar aqueles e aquelas que se dedicam a produzi-las.

Outro desafio foi situar meu trabalho em meio a tantos e tão importantes estudos já realizados sobre Paulo Freire. Quando pensei neste projeto anos atrás, queria escrever “a biografia”, aquela que pudesse contemplar todos os fatos, sentimentos e atos do biografado. Logo percebi que, pelas características de Paulo Freire, seria um trabalho exaustivo, longo, que exigiria muitos recursos e dedicação, além de ter que encontrar editoras que se dispusessem, nestes tempos de crise financeira, a assumir o projeto. Decidi, então, em comum acordo com meu editor, por um livro com as características e os objetivos descritos antes.

Havia, por sua vez, mais um obstáculo: frente aos inúmeros trabalhos já publicados, como não acabar escrevendo apenas mais um, repetitivo, sem cara própria, sem novidades? Com o tempo, fui acalmando minha alma, porque nunca é demais escrever sobre Paulo Freire, sempre há o que ser dito, sempre há novas visões e interpretações, e isso é consequência da riqueza da sua vida e da sua figura humana. Além do mais, as motivações que inspiraram o texto e o seu lugar entre tantos outros mostravam-se adequados tanto pelos grupos de leitura da obra, formados ao longo da sua produção, validando forma e conteúdo, quanto pelo agravamento da conjuntura política que fez de Paulo Freire um personagem cada vez mais debatido na história do nosso país.

Não posso deixar de agradecer às pessoas que dedicaram o seu tempo e o seu conhecimento para me ajudar a escrever este trabalho. Às leitoras e leitores críticos: Denise Eloy, Fernanda Nascimento, Gal, Babi, Jana, Gabi, Leôncio, Regina Costa, Ivone Domingues, Maria Eugênia Letelier, Pedro Pontual, Marilena Nakano e Kimiko Nakano, que tanto contribuíram com sugestões para o livro. Ao João Ribeiro, que me acompanhou nesta jornada corrigindo os meus erros, conversando sobre o conteúdo dos capítulos, me estimulando para o trabalho. À minha família pela compreensão, respeito e estímulo, permitindo que eu dedicasse muitas das minhas horas, que seriam de convivência, ao trabalho de pesquisar, entrevistar e escrever.

Ao Pedro Marques, à Janaina Uemura e à Gabriela Zeppone, que me auxiliaram com a pesquisa para escrever o livro, mas também com opiniões e leituras críticas, sempre de maneira oportuna, meu obrigado especial.

Ao Instituto Paulo Freire, na figura de Moacir Gadotti, pelo acesso a documentos e imagens.

À Madalena Freire (Madá) por abrir as portas para este trabalho, apoiando no que foi possível.

À Ana Maria Araújo Freire (Nita), pelo estímulo, além da disponibilização de documentos e fotos sobre a vida de Paulo Freire.

Aos meus colegas da Ação Educativa e da Universidade de Caxias do Sul pelo apoio e permanente incentivo.

Agradeço ao CNPq e à Fapesp pelos recursos concedidos para a pesquisa.

Finalmente, ao meu editor Flávio Moura e à equipe da Todavia, essa jovem editora que em tão pouco tempo já é uma referência, agradeço o profissionalismo, o apoio e as aprendizagens que pude ter no processo de elaboração deste livro.

1.
“Um criptocomunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”

Quando os militares tomaram o poder em 1 o de abril de 1964, depondo o então presidente João Goulart, Paulo Freire vivia com a família em Brasília, a serviço do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Envolvido com o trabalho de formação de professores em Goiânia, era sua assistente, Carmita Andrade, quem o mantinha informado sobre a intensa movimentação política na capital. Apenas dois dias antes, Carmita havia sugerido que ele voltasse a Brasília de imediato, porque as tensões pareciam se agravar decisivamente. Retornado às pressas, Paulo se surpreendeu ao procurar Júlio Furquim Sambaqui e ser convidado a acompanhar a leitura de uma conferência que o ministro daria dali a alguns dias. O chefe queria sua opinião. Incrédulo com a ingenuidade de Sambaqui, Paulo o alertou para o que lhe parecia um quadro de grave instabilidade institucional — e para a improbabilidade de ocorrer qualquer nova atividade do governo que representavam. No dia seguinte, os militares se instalariam no poder.

O ambiente político tornou-se tenso, com notícias desencontradas de todos os lados: Haveria resistência da população? O governo deposto conseguiria reagir ao golpe de Estado? Diante do clima de insegurança e da incerteza sobre seu futuro no ministério, Paulo pediu à mãe que levasse os filhos dele para Recife, onde mantinha uma casa. Providências tomadas, ele e a esposa, Elza, permaneceram em Brasília, levando uma vida reservada na casa de amigos. Queriam ser notados o mínimo possível.

Com lançamento previsto para 13 de maio, o Programa Nacional de Alfabetização seria extinto em 14 de abril, treze dias depois do golpe militar. O novo governo aproveitou a ocasião para fazer duras acusações ao trabalho que Paulo e sua equipe vinham desenvolvendo; apontaram o material didático produzido como contrário aos interesses da nação e acusaram seus autores de querer implantar o comunismo no país. Acabava ali o sonho de lançar 60870 Círculos de Cultura para alfabetizar 1,8 milhão de pessoas ainda em 1964, 8,9% do total na faixa de quinze a 45 anos que não sabiam ler nem escrever. A preocupação maior de Paulo era agora com o imponderável, um futuro incerto e perigoso para ele e sua família diante de tais acusações e do clima de perseguição política que se instalara.

Ao extinguir o Programa Nacional de Alfabetização, os militares respondiam às pressões de parcela conservadora da sociedade brasileira que atacava e desqualificava o trabalho de Paulo Freire. As denúncias passaram a ser instrumento de luta dos partidos políticos que apoiavam o golpe contra as siglas ligadas ao ex-presidente João Goulart. Paulo viu sua situação se tornar cada vez mais complicada.

Na Câmara dos Deputados, políticos conservadores se revezavam na condenação permanente de seu método de alfabetização. Em 18 de abril, o deputado Emival Caiado, do partido conservador União Democrática Nacional ( UDN ), denunciou Mauro Borges, então governador de Goiás e aliado do ex-presidente Jango, de implantar o comunismo no estado: “O método comunizante do sr. Paulo Freire teve entusiástica acolhida do governo goiano. O sr. Mauro Borges deu total e completa cobertura a órgãos estudantis dominados por comunistas”. Caiado concluiu, aos brados: “Não creio que em nenhum outro estado o comunismo tenha se infiltrado tanto!”.

Intensamente debatido como uma questão social das mais relevantes, o analfabetismo exigia dos militares uma resposta rápida, algo concreto que pudesse ser contraposto ao que vinha sendo feito nos anos anteriores. Em 15 de maio, os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo repercutiram a proposta apresentada pela vereadora paulistana Dulce Salles Cunha Braga ao novo ministro da educação, Flávio Suplicy de Lacerda. Figura ativa na articulação do golpe, a advogada e professora afirmava poder erradicar o analfabetismo no Brasil em apenas oito meses. Denominado “Alfabetização para massas”, seu método teria se mostrado bastante eficiente ao ser aplicado a partir de veiculação na rádio Record, no estado de São Paulo. Dulce propunha, com base nessa experiência, uma cartilha a ser distribuída pelo MEC , com apoio radiofônico do programa A voz do Brasil, a fim de alcançar todo o território nacional. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, uma nova versão da cartilha já estaria pronta para divulgação imediata, com leituras retiradas do “ideário democrático, numa espécie de réplica ao modelo comunizante do método Paulo Freire”. O ministro Suplicy de Lacerda respondeu que analisaria a proposta com atenção e que logo se manifestaria.

Ao mesmo tempo, também o debate sobre o voto do analfabeto voltou à tona nos meses que se seguiram ao golpe militar. Em um país que historicamente proibia o voto aos iletrados, o Programa Nacional de Alfabetização representava uma ameaça aos redutos políticos cativos nas eleições seguintes. Em Sergipe, por exemplo, o Programa permitiria acrescer 80 mil eleitores aos 90 mil já existentes. Da mesma forma, em Recife, a iniciativa praticamente dobraria a quantidade de eleitores, elevando de 800 mil para 1,3 milhão o número de títulos. Projetados no cenário nacional, os exemplos demostravam como o método do professor Paulo Freire, que propunha alfabetizar um iletrado em 40 horas, poderia alterar a correlação das forças políticas.

Como o programa de alfabetização, a questão do voto dos analfabetos também estava em debate e exigia uma resposta do novo governo. O marechal Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro militar a assumir a presidência depois do golpe, encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de mudança tímida, que estendia o voto aos iletrados apenas nas eleições municipais — e de maneira facultativa. Ainda assim, a proposição foi derrotada, em parte pelo pouco empenho da bancada governista, fazendo crer que a medida era mero jogo de cena.

Em sua edição de 30 de junho de 1964, o jornal O Estado de S. Paulo publicou um artigo de Antônio Bernardes de Oliveira, médico, professor universitário e membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, intitulado “O voto do analfabeto, um desserviço à Nação”. O autor argumentava que tal possibilidade “só pode interessar ao demagogo e ao oportunista sem escrúpulos; não corresponde a nenhuma aspiração nacional; anula e avilta o voto consciencioso e de qualidade; compromete o regime; afasta as elites legítimas; reduz o papel dos partidos; convida ao suborno; nivela por baixo”. Sobre o método de Paulo Freire, em sua opinião adotado pelo governo deposto apenas para ampliar o colégio eleitoral, Bernardes de Oliveira dizia não passar de “uma manobra para alcançar dois escopos, uma intensiva propaganda comunista e a eclosão de uma invencível força eleitoral de índole facciosa onde a demagogia teria as portas abertas”.

Em Brasília, Paulo assistia a tudo com discrição. Elza já havia voltado para Recife para ficar junto aos cinco filhos do casal — Madalena, a mais velha, com dezoito anos, seguida por Cristina, Fátima, Joaquim e o caçula Lutgardes, então com cinco anos. Através de um intermediário com contatos entre os militares, Paulo sondou o então chefe do Gabinete Militar, o general Ernesto Geisel, e o general Antônio Carlos Muricy, comandante da 7 a Região Militar, se haveria algum impedimento para que deixasse Brasília e se juntasse à família. Quando soube que não, embarcou imediatamente para Pernambuco.

Chegando em Recife, tratou de retomar suas atividades acadêmicas e seus escritos, que havia deixado de lado com a mudança para Brasília. Paulo conquistara alta visibilidade a partir de 1963, quando encampou uma experiência de alfabetização em Angicos, no Rio Grande do Norte, trabalho desenvolvido com a equipe do Serviço de Extensão Cultural ( SEC ) da Universidade de Recife. Ali, trezentos jovens e adultos participaram de seu processo de alfabetização em 40 horas. Amplamente propagandeados pelo governo estadual, os bons resultados levaram João Goulart a se deslocar de Brasília até o interior potiguar para participar do encerramento do curso. Com o sucesso e a repercussão da iniciativa, Paulo foi convidado pelo Ministério da Educação e Cultura a estender o trabalho para todo o país. Aceitou a proposta e se mudou com a família para Brasília. Em junho de 1963, começou a trabalhar na formação de futuros coordenadores dos núcleos de alfabetização, que seriam implantados em praticamente todas as capitais. Só no estado da Guanabara, cerca de 6 mil pessoas se inscreveram naquela ampla mobilização nacional pela educação, que seria interrompida pelos militares em abril do ano seguinte.

De volta a Recife, Paulo se apresentou voluntariamente à Secretaria de Segurança Pública e constatou que não havia qualquer ordem de prisão contra ele. Foi informado, no entanto, de que poderia ser chamado para depor a qualquer momento.

O clima de intimidação era geral. As universidades e demais instituições de ensino público seriam afetadas diretamente pelos Atos Institucionais, que davam poder aos militares a partir de comissões de investigação instauradas para averiguar opositores, cassar mandatos políticos, destituir de cargos e retirar o direito ao voto. Com o objetivo declarado de voltar a integrar os alunos “na sua tarefa precípua de estudar e os professores na sua missão de ensinar”, as medidas estabeleciam um rígido controle sobre o universo estudantil com a pretensão de coibir os crescentes protestos e manifestações.

Atendendo às orientações impostas pelo Ato Institucional n o 1, de 9 de abril de 1964, João Alfredo, reitor da Universidade de Recife, em que Paulo trabalhava, convocou uma reunião do Conselho Universitário para o dia 27 de abril. Decidiu-se instalar uma comissão de professores para apurar responsabilidades de docentes e servidores na “prática de crime contra o Estado e seu patrimônio, a ordem política e social, ou atos de guerra revolucionária”, conforme rezava a portaria. Essa comissão deveria abrir rapidamente sindicâncias e analisar documentos a fim de elaborar relatórios para o reitor.

Paulo foi interrogado sobre sua atuação na universidade. A comissão solicitou que os esclarecimentos necessários à sua defesa lhe fossem passados por escrito. Os dias seguintes foram dedicados a produzir um documento descritivo de seu trabalho, em resposta às dezoito perguntas encaminhadas a ele. Paulo aproveitou para tecer considerações pessoais, indignado com a evolução dos fatos na instituição de ensino e no país. O documento seria entregue no dia 25 de maio.

Ao esclarecer que atuava no SEC desde sua implantação, em 1962, Paulo chamava a atenção para o fato de ser amigo do reitor, a quem tinha o dever de lealdade: “Aprendi com meu pai e com minha Igreja que a lealdade, a coragem e a honradez, a retidão não podem ser desprezadas pelo homem, sob pena de se desprezar a si mesmo, e deixar de já ser homem”. O documento respondia às perguntas enumerando as atividades realizadas nos dois anos anteriores. Paulo mencionou que havia sido convidado pelo então ministro Paulo de Tarso para coordenar um programa nacional de educação para adultos, e não simplesmente de alfabetização. E que entendia o convite como honroso não só para ele, mas também para a universidade. Por isso havia exigido que o trabalho ocorresse por meio do SEC , em convênio do ministério com a Universidade de Recife, na qual continuaria com suas pesquisas regulares.

Em relação às críticas da imprensa recifense sobre suas atividades, tachadas de subversivas ou propagadoras de ideias contrárias ao regime democrático, respondeu que não só tinha conhecimento do que se dizia na cidade “mas também em todo o Brasil e que a leitura dessas críticas lhe servira para fazer um verdadeiro curso de como se pode, por ignorância, má-fé, ou outras coisas quaisquer, distorcer o pensamento dos homens”. Em contrapartida, destacou a valorização e o apoio ao trabalho do SEC em artigos e depoimentos de nomes como o do sociólogo Gilberto Freyre e do professor Walter Costa Porto. Paulo fez referência também à Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, em Brasília, onde estivera para dar uma conferência que, seguida de debate, gerou muitos elogios ao seu trabalho. Todas essas pessoas, observou, não eram comunistas nem estavam interessadas em comunizar o país — e justamente por isso apoiavam o que estava sendo feito. Escreveu que não podia deixar de rir quando o acusavam de “lavador de cérebros”, pois a essência da sua teoria pedagógica era alérgica a regimes totalitários: “Nego, pois, a veracidade das acusações assacadas contra o SEC , anteontem, ontem e hoje. Nego que o SEC […] exerça atividades subversivas ou contrárias ao regime democrático. Horroriza-me o assanhamento destas acusações”.

Em suas considerações finais, Paulo faria uma defesa intransigente da alfabetização de adultos. Escreveria:

Há até quem diga que não adianta alfabetizarmos esses 36 milhões de brasileiros porque talvez “papagaio velho não aprende a ler”. Como se estas legiões de analfabetos não constituíssem, para nós, seus irmãos letrados, uma prova de nosso desamor. De nossa incúria. De nosso fracasso. Nunca pretendemos ser os donos da alfabetização nacional. Há analfabetos demais. […] Se tudo o que dissemos em nossa defesa pessoal e na defesa do SEC a ninguém convencer, paciência. Salvem-se, porém, os analfabetos.

Entregue o documento, Paulo ficou à espera do parecer da comissão e de como o Ministério da Educação e Cultura reagiria frente ao declarado. Cerca de três semanas depois, em 16 de junho, dia do aniversário de Elza, estava em casa trabalhando na reescrita para publicação de sua tese Educação e atualidade brasileira quando dois agentes bateram à sua porta e pediram para que os acompanhasse. Sem imaginar o que viria, vestiu-se, tomou um café, despediu-se da esposa e seguiu com os policiais. No trajeto, passaram pela Secretaria de Segurança Pública, pela polícia e de lá seguiram para o quartel do 4º Exército. Apresentado ao capitão de plantão, foi fichado e detido — sem nenhuma peça de roupa ou objeto de higiene pessoal, nenhum livro para acompanhá-lo. Paulo não tinha imaginado que de fato pudesse ser preso.

Duas semanas depois, em 1º de julho, prestou novo depoimento sobre suas “atividades subversivas antes e durante o movimento de 1º de abril, assim como suas ligações com pessoas e grupos de agitadores nacionais e internacionais”, agora em inquérito policial militar chefiado pelo tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima. Duro nos interrogatórios, em 2014 Ibiapina Lima foi apontado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, junto a outros 376 agentes do Estado, por violação dos direitos humanos e crimes cometidos durante o regime militar.

O tenente-coronel iniciou o interrogatório pela formação e pelas atividades profissionais de Paulo; questionou-o em seguida sobre inúmeros autores e seus métodos pedagógicos: Dalton, Montessori, Mackinder, Decroly, Kilpatrick, Petersen, Cousinet, Laubach, Alfredina de Paiva e Souza, sintético, analítico-sintético… Surpreso, Paulo respondeu sobre aqueles que conhecia, afirmou que, em sua maioria, eram integrantes de uma pedagogia moderna, defensora de uma educação ativa na qual o educando pudesse superar a passividade característica da escola antiga e assumir uma posição participante em seu aprendizado.

Na sequência viriam perguntas para testar seu conhecimento específico sobre os autores e métodos apresentados, os resultados que produziram, onde foram aplicados. Depois, sobre sua avaliação dos sistemas de ensino adotados pelo Exército dos Estados Unidos e do Brasil a partir de 1941. Em seguida, Paulo foi questionado sobre a diferença entre sua visão pedagógica e a perspectiva de cada um dos outros educadores citados. E, finalmente, sobre o seu método de aprendizado — destinava-se apenas à alfabetização ou ao ensino de maneira geral?

Em relação ao último questionamento, Paulo se deteve mais pacientemente, explicando com didatismo para Ibiapina Lima que sua principal preocupação era educar, e não só alfabetizar. Esclareceu que era um método baseado no diálogo, que abordava situações da vida cotidiana e pretendia fazer com que os alunos se tornassem pessoas ativas a partir das discussões sobre o contexto em que viviam. Descreveu os procedimentos para a escolha das palavras, o modo como elas eram decompostas em sílabas que depois se juntavam em outras combinações para construir novas palavras. Para concluir, disse que todo seu trabalho educativo se fundava no absoluto respeito ao ser humano e que o importante era educar, não doutrinar.

Nesse momento do inquérito, tendo ouvido Paulo com atenção, Ibiapina Lima tornou-se mais agressivo; perguntou como ele poderia se considerar um educador se demonstrava desconhecer parte dos teóricos citados. Paulo argumentou que não lhe cabia julgar a si próprio e que não tinha nada a acrescentar sobre os demais autores.

O tenente-coronel então fez referência à duração do método de alfabetização de Paulo Freire, questionou o porquê das 40 horas — rapidez tão alardeada pelos meios de comunicação. A busca por uma solução ágil, respondeu Paulo, era necessária porque o problema era muito grave, e argumentou que a alfabetização deveria ser aprofundada em fases subsequentes. Quanto à originalidade de seu trabalho, afirmou que não tinha pretensões de ser original, mas de dar sua contribuição ao combate do analfabetismo.

Ibiapina Lima então questionou Paulo sobre seu suposto envolvimento com o comunismo ou com regimes totalitários, comparando seu método àqueles utilizados por Hitler, Mussolini, Stalin e Perón. Quis saber também sua opinião a respeito de Cuba, da União Soviética e da China. E o que pensava sobre Brizola, Miguel Arraes, Luís Carlos Prestes, Francisco Julião e Gregório Bezerra. Em uma guerra entre o Brasil e um país comunista ou socialista, de que lado Paulo estaria? Paulo se defendeu de todas as perguntas. Constrangido pelas circunstâncias, repudiou o comunismo, expressou-se como apoiador das reformas do marechal Castello Branco, mostrou-se satisfeito com sua liderança, negou vontade de deixar o país e, por fim, colocou-se na condição de cristão que valorizava o ser humano e que se orientava pela doutrina da fé. Depois de horas de tensão e afrontamento, pôde enfim voltar para a cela. Dois dias depois, em 3 de julho, foi solto.

Por pouco tempo, entretanto. Paulo voltou a ser preso já no dia seguinte. Sem maiores explicações, foi levado para o Quartel de Obuses, no bairro de Jatobá, na vizinha Olinda. Foi encarcerado em uma das solitárias do piso inferior, onde ficava a prisão dos sargentos e tenentes. A cela era pequena, as paredes, ásperas; havia apenas uma cama e altura justa para que Paulo ficasse em pé. Poucos dias depois, foi transferido para a enfermaria dos oficiais, no andar de cima, para onde eram encaminhados os presos com curso superior.

Ali passaria a maior parte de seu segundo encarceramento, convivendo com outros detidos como Clodomir Santos de Morais, ativista político ligado ao Partido Comunista e às Ligas Camponesas, Pelópidas Silveira, o prefeito deposto de Recife, o advogado Joaquim Ferreira e Plínio Soares, ex-funcionário da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), entre outros políticos e lideranças sociais.

Para passar o tempo, além de conversar e contar casos, jogavam xadrez e faziam palavras-cruzadas. Paulo também se dedicou intensamente à leitura. Caiu-lhe nas mãos o clássico Grande sertão: veredas. Incomodado com a linguagem de Guimarães Rosa, desistiu do livro e comentou com Clodomir sua dificuldade com o estilo, o palavreado, o tom regional do romance. Surpreso, o companheiro explicou as circunstâncias que levaram aquela região entre o rio São Francisco e Goiás a manter uma espécie de dialeto próprio, o mesmo falado até então por sua mãe e alguns parentes que moravam ali. “Se você quiser, eu, com toda a satisfação, vou tratar de traduzi-lo”, propôs Clodomir, disposto a fazer anotações sobre as expressões idiomáticas no próprio livro. Paulo aceitou de imediato.

Em clima de camaradagem, o tempo se arrastava no andar de cima do Quartel de Obuses. Um dia, um jovem tenente se aproximou da cela de Paulo: “Professor, vim conversar com o senhor porque agora nós vamos receber um grupo de recrutas e, entre eles, há uma quantidade enorme de analfabetos. Por que o senhor não aproveita sua passagem por aqui e ajuda a gente a alfabetizar esses rapazes?”. Ao que Paulo respondeu, surpreso com a ingenuidade do rapaz: “Mas meu querido tenente, estou preso exatamente por causa disso! Está havendo uma irracionalidade enorme no país hoje, e se o senhor falar nessa história de que vai convidar o Paulo Freire para alfabetizar os recrutas, o senhor vai para a cadeia também. Não dá!”.

Somados os dois períodos de encarceramento, em Recife e em Olinda, Paulo ficou preso por mais de setenta dias. Fez um acordo com a mulher para que os dois filhos mais novos não o visitassem na prisão. Para eles o pai estava viajando. Durante todo esse tempo, Elza desdobrou-se como pôde para cuidar da família e atenuar o sofrimento do marido na prisão. Uma de suas estratégias era entregar regularmente uma panela da comida de casa, sempre que possível em quantidade suficiente para alimentar não só os companheiros de cela, mas também os outros presos. A justa distribuição era garantida com a colaboração dos carcereiros ainda não submetidos aos rigores do golpe.

A vontade de Paulo era permanecer no Brasil, mas as circunstâncias não ajudavam. Desde que fora solto pela última vez, estava obrigado a comparecer regularmente a instâncias do Exército para registrar suas atividades. Em um desses encontros, ele seria convocado para um novo inquérito, desta vez no Rio de Janeiro. A essa altura, Elza já alentava a possibilidade de sair do país para preservar a integridade física e mental do marido — e da família.

Quando chegou no Rio, atendendo a uma nova intimação militar, Paulo se rendeu ao apelo feito por vários de seus amigos, entre eles o professor de literatura e líder católico Alceu Amoroso Lima, conhecido também como Tristão de Ataíde, e buscou exílio na embaixada da Bolívia. Antes disso, tentara sem sucesso a representação diplomática do Chile, que recusara seu pedido. Muitos colegas também tentaram encontrar formas de acolhê-lo no exterior, caso de Ivan Illich, educador austríaco radicado no México, que conhecera Paulo em uma visita ao Recife. Mas nada havia dado certo até então.

Enquanto esperava pela autorização para viajar a La Paz, Paulo foi informado de que um representante do Ministério da Educação da Bolívia, que estava no Rio para um congresso de educadores latino-americanos, gostaria de se reunir com ele na embaixada. O colega boliviano propôs que Paulo trabalhasse em seu país como assessor de educação, em particular no ensino de adultos. O convite foi aceito na hora.

Em 28 de setembro, Ibiapina Lima expediu um mandado de prisão para Paulo Freire, baseado nos seguintes argumentos: o educador estaria implicado em subversão nos meios intelectuais e de alfabetização; seu método não tinha qualquer originalidade e a velocidade era inferior a de outros modelos; a experiência de Angicos era por si só um atestado de subversão na medida em que mais politizava do que alfabetizava; seria um mistificador, suposto criador de um método e sem pejo de negar que desconhece tudo o que há a respeito; seria um aliciador sistemático do marxismo; refugiou-se em embaixada estrangeira depois de viajar para o Rio de Janeiro para atender a um inquérito, utilizando passagens compradas pelo governo.

Enquanto a viagem ao exterior não se arranjava, Elza e os filhos, por segurança, passaram a viver inicialmente na casa de Zé de Melo, seu irmão. Depois se mudaram de Recife para a casa de Stela, irmã de Paulo, em Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, para poderem visitá-lo com maior frequência. Nesse período, também esteve na embaixada o advogado Odilon Ribeiro Coutinho, seu colega e amigo dos tempos em que frequentaram juntos a Faculdade de Direito. Além de um pacote de livros, Odilon entregou a ele alguns dólares para serem usados em sua chegada à Bolívia, dada a sua dificuldade para acessar recursos financeiros. Parte do dinheiro ele daria a Elza para ajudar nas despesas da família. Sem passaporte, porque nunca havia deixado o país, Paulo embarcou para La Paz apenas com sua carteira de identidade, enfiada por Elza em seu bolso no último instante.

Em 18 de outubro, alguns dias após Paulo ter partido para o exílio, Ibiapina Lima divulgou o relatório final do inquérito sobre o educador, no qual o acusava de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos. Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização dos mesmos”. Para Ibiapina Lima, Paulo não tinha criado método algum e sua fama viria da propaganda feita por agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um criptocomunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, acusava.

Para o militar, Paulo era um fugitivo:

Recebeu um chamado para depor no Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro, e ali chegando fugiu sem considerar que a Nação forneceu passagem de avião, confiando que um dos seus intelectuais não seria um relapso e um fujão. Após viajar, […] asilou-se na embaixada da Bolívia, negando-se a depor e caracterizando, desta forma, toda a sua culpabilidade criminosa de que era um dos chefes. Assim, confirmou as acusações que pesavam sobre ele: assumiu por conta própria toda a responsabilidade por ter fugido. Quem não teme, não se esconde.


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