Livro ‘Cabala e a arte de manutenção da carroça’ por Nilton Bonder

Inaugurando a série Reflexos e Refrações, permeada dos ensinamentos sapienciais da cabala, Cabala e a arte de manutenção da carroça aborda o risco envolvido na gestão de negócios e propõe estratégias para lidar com problemas que desafiam qualquer forma de empreendimento. Cabala e a arte de manutenção da carroça nos orienta de forma simples e eficaz a atingir nossos objetivos, desfrutando do caminho. A um só tempo guia conciso e reflexão profunda sobre a arte e a ciência de fazer negócios e administrar riscos, este livro, com base na cabala e permeado de anedotas de rabinos e carroças, nos convida a refletir sobre o trabalho e a vida. “A boa gestão revelou-se não como a arte de evitar o risco, mas de expor-se a ele.” Essa é uma das premissas do autor. Saber como expor-se adequadamente ao risco é relevante não apenas no mundo dos negócios, mas no nosso cotidiano. Tentar evitar totalmente o risco nega o business, na medida em que só não há risco onde há negação, que nos cega…

Editora: Rocco; 1ª edição (8 julho 2019); Páginas: 96 páginas; ISBN-10: 8532531431; ISBN-13: 978-8532531438; ASIN: B07T92X8MM

Leia trecho do livro

A meu vô Pedro,
carroceiro pelas paragens
entre Cruz Alta e Passo Fundo

INTRODUÇÃO

Num pé só

A intenção deste livro é ser econômico.

Econômico em conteúdo porque fala sobre manutenção e gestão; e econômico em forma porque trata de oferecer um escrito reverberante – mais extenso nas entrelinhas que no texto.

Esse é um desafio absoluto a um rabino. Rabinos são palavrosos, como versa a anedota sobre o rabino que inicia seu discurso explicando: “Antes de falar, gostaria de dizer algumas palavras.” Ou como bem pontuava o filósofo Blaise Pascal em carta a um amigo: “Por falta de tempo, lhe escrevo este longo texto.” O sucinto é laborioso, o simples é labiríntico.

Um livro “ponte aérea” não é um atendimento ao fast, mas o reconhecimento de um mundo entupido não só de plásticos, como também de palavras. Escrever palavras passou a não mais demandar o gasto de papel; as palavras se tornaram partículas que não ocupam espaço, perderam peso.

Dizer algo enquanto se está “num pé só” é um conceito milenar na tradição judaica. Tal como no relato do sábio Hilel que, ao ser desafiado a sintetizar toda a Torá, enquanto estivesse num único pé, disse: “Não faça ao outro o que não quer que façam a você. Aí está toda a Torá, e o resto é comentário – vá e estude!” O “resto” é fundamental, mas nasce desse pequeno manancial que se faz rio e deságua em oceanos.

O RISCO

A intenção deste livro é abordar o risco.

Ao experimentar a sensação animal de perigo, o ser humano criou a ideia de risco, um instrumento interpretativo fantástico, medular para nossa evolução. A partir desse instinto, forjou-se uma ferramenta para lidar com ameaças e antecipar adversidades. Risco significa “traço”, com o qual se pode demarcar inconvenientes que existem para um lado ou para o outro. No plano vazio do destino, o ser humano traçou um risco e tentou, desde então, não tirá-lo de sua mira.

Para além da aptidão de perceber essa linha e conhecer o “risco”, o ser humano desenvolveu intimidade com a noção de imprevisto e incidente, razão pela qual a noção de que shit happens, ou de que existe uma lei de Murphy, provoca imediata identificação. Porém, para total surpresa de nossa espécie, o risco não é para ser evitado. Flertar com o risco mostrou-se um recurso inestimável para nossa civilização.

O perigo não é apenas um dispositivo da sobrevivência, mas a epiderme que roça a vida. Para além da lesão ou da letalidade que pode causar, o risco nos expõe e aproxima da própria vida e de tudo que lhe diz respeito. A boa gestão revelou-se não como a arte de evitar o risco, mas de expor-se a ele.

TSURES HAPPENS
Infortúnios acontecem. Eles não são produtos do caos, mas da consciência. Nossas expectativas são atropeladas porque podemos fazer escolhas, mas não controlamos os resultados. Se não fosse pelo poder de escolha, o resultado nunca seria um infortúnio. Seria, no máximo, um obstáculo – a parte difícil ou custosa de uma tarefa sem qualquer conotação de valor.

Tsures é a palavra do dialeto iídiche que melhor designa infortúnios, elevando-os ao seu potencial máximo que é a “aflição”. Um aflito é alguém com algum problema potencializado pela antecipação de uma saída que não vem. Parte da aflição está no desconforto em si; e parte, na ausência de um alívio que havia sido previsto. Se o foco estivesse apenas na moléstia, sem a presença da expectativa, a aflição, o tsures, deixaria de se manifestar. Para dar conta da adversidade, é necessário esforço. Já o tsures requer a anulação da expectativa.

Em matéria de risco, a parte mais difícil é a do tsures. A tortura está em imaginar que se “deveria ter feito isso ou aquilo” e, por discernimento, evitado o desconforto em questão. Este é o custo pessoal mais alto que pagamos na gestão. O lócus desse sofrimento pode ser tanto a consciência quanto o sujeito da ação, basta que exista alguma expectativa. A raiva nunca vem à tona devido ao que aconteceu, mas porque um determinado fato poderia ter sido evitado.

Para a raiva, assim como para a mágoa, é fundamental a aceitação de que uma determinada coisa teria acontecido de qualquer maneira. Sabe por quê? Porque aconteceu. Tudo que já aconteceu é, por definição, o que deveria ter acontecido. Se continuarmos revisitando o ponto da encruzilhada onde poderíamos ter tomado um caminho diferente, o senso de tsures ganha força.

Qualquer tentativa de decidir sobre algo que já aconteceu, além de inócua, confunde a gestão. O passado e sua experiência são um legado, não um tempo. Gerir significa fazer a partir do presente momento.

Shit happens, mas tsures é evitável. A arte de manutenção da carroça é a capacidade de reverter tsures em shit. Shit é o objeto da gestão.

A CARROÇA
A carroça foi um aplicativo fundamental.

Claro, a roda foi um dos maiores inventos. Fazer rolar e produzir roldanas iria revolucionar o mundo. E o fato de a roda tocar constantemente o chão num único ponto, produzindo instabilidade para qualquer lado, revelou um incrível potencial cinético. Havia algo de smart na roda a ser aplicado.

A carroça consiste em acoplar rodas a uma estrutura, e a elas uma força motriz animal. Inovação, engenharia e energia atreladas e bingo, um gesheft (um negócio), um aplicativo para prospectar novos negócios. E, assim, o ser humano abandonou o labor da natureza, fosse como coletor, agricultor, pastor ou pescador, e avançou sobre o comércio e o serviço.

Antes de o mundo se concentrar em metrópoles e dispor de avançados meios de comunicação, a carroça era a loja-escritório e a empresa. De um ponto de vista simbólico, a carroceria representava o produto/mercadoria, as rodas, o marketing e o cavalo, as vendas. O mercado, por sua vez, era o caminho por onde transitava a empresa, enfrentando entraves e contratempos.

A CABALA
Cabala significa nada mais do que “interpretar”. Conhecer aquilo que não é literal parecerá, a um leigo, como uma mágica, quando é apenas uma leitura que lhe é invisível. Para quem não sabe cifras, arrancar música de uma pauta é surpreendente. Cabala são técnicas de interpretação.

A forma mais básica de se fazer isso é pensar por dualidades. A linguagem faz isso com os antônimos. Nada ilumina melhor o conceito de “gordo” do que o de “magro”. Assim, “alto” e “baixo”, ou “bom” e “mau”, “rico” e “pobre” se autodefinem e ampliam um o conceito do outro.

Em seu recurso mais elementar, a Cabala faz a mesma coisa apenas aumentando a complexidade, como numa equação de segundo grau. Ela duplica a dualidade e produz uma espécie de “tetralidade”. A ideia é que algo possa ser mais bem compreendido se visto em quatro diferentes instâncias capazes de clarificar-se mutuamente. Um exemplo de modelo em quatro estágios são as estações do ano: primavera, verão, outono e inverno.

Na Cabala, essa técnica pode ser ampliada: pode-se ir de um modelo de quatro para outros mais complexos – de sete, 10 ou até 49 dimensões ou mundos. Em nosso caso, faremos uso do modelo mais básico, que é o da tetralidade.

Enquanto a dualidade se utiliza de um contrário para produzir seus efeitos, na tetralidade o desafio é encontrar um sistema capaz de decompor um objeto em quatro esferas, as quais poderão lançar luz umas sobre as outras.

E o sistema proposto pela Cabala para quatro dimensões é: a dimensão física, a emocional, a intelectual e a espiritual. Elas permitiriam fracionar uma dada manifestação em seus vários aspectos, ampliando a capacidade de cognição sobre ela.

AS HISTÓRIAS
Dizia o rabino Carlebach Carlebach que muitos se equivocam, achando que as histórias servem para fazer dormir quando, na verdade, sua maior função é fazer acordar.

A história é um causo, um fato, com a peculiaridade de o protagonista ser uma pessoa genérica, que sou eu, e de acontecer num tempo indefinido (“era uma vez”), que é agora.

“Eu” e “agora” são as potências das histórias. Diferentemente de uma ideia pensada como um objeto, a história nos contém no presente.

Nas histórias, a narrativa é apenas um recurso para revelar o sistema sobre o qual se dá um causo ou um padrão. Sua moral não se relaciona com a narrativa, mas com a estrutura sobre a qual acontece a história.

Juntemos então o risco, a carroça, a Cabala e a história para falarmos sobre manutenção. Faremos isso observando shit (o contratempo) nas quatro esferas: a física da lama, a emocional do buraco, a intelectual do revés e a espiritual da escassez.

Quem souber gerir a lama, o buraco, o revés e a escassez terá aprendido A arte de manutenção da carroça.

I

Livro 'Cabala e a arte de manutenção da carroça: Lidando com a lama, o buraco, o revés e a escassez (Reflexos e Refrações)' por Nilton Bonder - Quando algo que você esperava não dá certo, você lamenta, mas segue em frente, revendo processos ou aproveitando novas oportunidades criadas pelo “problema”? Ou se atormenta pensando no que poderia ter feito para evitá-lo... Leia Online, Livros Online, Baixar PDF, Frases e Citações.

Físico

LAMA

(Volatilidade)

Um ou seis cavalos?

Reb Meir de Premishlan e Reb Israel de Ruzhin eram melhores amigos, apesar de bastante diferentes. Reb Meir vivia na pobreza, e Reb Israel vivia como um rei. Os amigos se encontraram certa vez quando ambos se preparavam para uma viagem.

Reb Meir estava em sua singela carroça, puxada por um único cavalo magricela. Reb Israel, no alto de sua luxuosa carruagem, puxada por seis fortes garanhões.

Reb Israel se dirigiu até a carroça do amigo e com um ar de zombaria inspecionou minuciosamente o minguado cavalo. Virou-se então ao amigo e disse, com humor: “Eu sempre viajo com seis vigorosos cavalos. Assim, se acontecer de um dos cavalos atolar na lama, posso rapidamente resgatá-lo. Posso ver, no entanto, que seu cavalo mal consegue puxar você e sua carroça em terra seca e bem batida. Amigo, com certeza haverá muita lama na estrada… como podes assumir tanto risco?”

Reb Meir desceu da carroça e foi até o amigo, que ainda estava parado diante do cavalo. Colocando os braços em torno do pescoço de seu estimado animal, disse: “Os riscos, eu penso, são seus. Exatamente porque viajo com um único cavalo que não conseguiria desvencilhar-se da lama caso ficasse preso, de antemão tomo muito cuidado para evitar que isso aconteça. Já você, meu amigo, tem tanta certeza de que pode desvencilhar-se que nem sequer olha por onde vai e, com certeza, acabará caindo em todos os lamaçais!”


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