Livro ‘Autobiografia de um Iogue’ por Paramahansa Yogananda

Livro 'Autobiografia de um Iogue' por Paramahansa Yogananda

Esta autobiografia de Paramahansa Yogananda apresenta uma visão dos mistérios finais da existência humana. Paramahansa Yogananda narra a história de sua vida- as experiências de sua infância; os encontros que teve com numerosos santos e sábios durante a busca que empreendeu em sua juventude, por toda a Índia, na procura de seu mestre; os dez anos de treinamento que recebeu no eremitério de Sri Yukteswar, considerado um dos maiores sábios da Índia, assim como os trinta anos que viveu e lecionou nos Estados Unidos. Relata também as ocasiões em que se reuniu com Mahatma Gandhi, Rabindranath Tagore, Teresa Neumann (a santa católica estigmatizada) e outras renomadas personalidades espirituais, tanto do Oriente, quanto do Ocidente.

Páginas: 742 páginas; Editora: Self-Realization Fellowship Publishers (1 de junho de 2008); ISBN-10: 0876120982; ISBN-13: 978-0876120989; ASIN: B07G5KL5RL

Biografia do autor: Paramhansa Yogananda (1893-1952), um dos primeiros mestres a introduzir o yoga no Ocidente, enfatizava a experiência íntima e direta com o Divino, que ele chamava de “autorrealização”. Seus ensinamentos são universais e apresentam uma abordagem prática ao despertar interior. Em seus primeiros anos nos Estados Unidos (1920-1942), Yogananda escreveu várias séries de lições e artigos que hoje já não se encontram facilmente. Muitos desses escritos, já em domínio público, são aqui apresentados pela primeira vez.

Leia trecho do livro

PARAMAHANSA YOGANANDA

AUTOBIOGRAFIA DE UM IOGUE CONTEMPORÂNEO

“Se não virdes sinais e milagres, não crereis”– João. 4:48.

Dedicada à memória de Lutero Burbank “Um Santo Americano”

Introdução

É esta a primeira vez que um autêntico iogue hindu escreve a história de sua vida para leitores do Ocidente. Descrevendo com vívidos detalhes muitos anos de treinamento espiritual com Siri Yukteswar, um mestre que em muito se assemelhava ao Cristo, revela aqui o autor um aspecto fascinante e pouco conhecido da moderna Índia.

Paramahansa Yogananda foi o primeiro grande mestre da Índia a viver no Ocidente durante um longo período (mais de trinta anos). Iniciou na ioga 100.000 estudantes – técnicas científicas para despertar a consciência divina do homem. Neste livro ele explica, com clareza científica, as leis sutis mas definidas pelas quais os iogues realizam milagres e alcançam o autodomínio.

Yogananda, diplomado pela Universidade de Calcutá, escreve, com inesquecível sinceridade e incisiva agudeza. Capítulos cheios de vida são dedicados a suas visitas ao Mahatma Gandhi, a Rabindranath Tagore, a Luther Burbank e a Therese Neumann – a católica estigmatizada da Bavária. Este livro foi traduzido para doze idiomas.

Paramahansa Yogananda – Um Iogue na Vida e na Morte

Paramahansa Yogananda entrou em mahásamádhi (a derradeira vez que um iogue abandona conscientemente seu corpo) em Los Angeles, na Califórnia, em 7 de março de 1952, após concluir seu discurso num banquete em homenagem a Sua Excelência Binay R. Sen, embaixador da índia. O relato da partida do muito amado iogue apareceu no número de março de 1952 de SeIf-Realization Fellowship Magazine (Los Angeles) e no semanário Times de 4 de agosto de 1952.

O grande instrutor mundial demonstrou o valor da ioga (técnicas científicas para chegar à percepção de Deus como realidade) não apenas em vida, mas também na morte. Semanas após haver partido, sua face inalterada brilhava com o divino esplendor da incorruptibilidade.

O sr. Harry T. Rewe, diretor do Cemitério de Forest Lawn, de Los Angeles (onde o corpo do grande mestre jaz temporariamente) enviou a SeIf-Realization Fellowship uma carta com firma reconhecida, da qual são extraídos os seguintes trechos:

“A ausência de quaisquer sinais visíveis de decomposição no cadáver de Paramahansa Yogananda constitui o mais extraordinário caso de nossa experiência… Nenhuma desintegração física era visível no corpo, mesmo vinte dias após a morte… Nenhum indício de bolor revelava-se em sua pele e nenhum dessecamento (secagem) ocorreu nos tecidos orgânicos. Tal estado de preservação perfeita de um corpo, até onde vão nossos conhecimentos dos anais mortuários, é algo sem paralelo… Ao receber o corpo de Yogananda, os funcionários do cemitério esperavam observar, através da tampa de vidro do caixão, os costumeiros e progressivos sinais de decomposição física. Nossa admiração crescia à medida que os dias passavam sem trazer qualquer mudança visível no corpo em observação. O corpo de Yogananda permanecia evidentemente num estado fenomenal de imutabilidade.

“Nenhum odor de decomposição emanou de seu corpo em qualquer tempo … A aparência física de Yogananda em 27 de março, pouco antes de colocar-se a tampa de bronze no ataúde, era a mesma de 7 de março. Ele parecia, em 27 de março, tão cheio ‘ de frescor e intocado pela corrupção, como na noite de sua morte. Em 27 de março, não havia, em absoluto, motivo para se afirmar que seu corpo sofrera qualquer desintegração física visível. Por estas razões, declaramos novamente que o caso de Paramahansa Yogananda é único em nossa experiência.”

Capítulo 1

Meus pais e minha infância

Os traços característicos da cultura hindu têm sido, desde sempre, a pesquisa das verdades últimas e, simultaneamente, a relação entre guru.[1] e discípulo.

1 Mestre espiritual, “o que dissipa as trevas”; do sânscrito gu, trevas; ru, o que dissipa. (Guru-Gita, 17-19)

Meu próprio caminho conduziu-me a um sábio semelhante a Cristo; sua vida fora cinzelada para a posteridade. Foi ele um dos grandes mestres que constituem o mais valioso patrimônio da índia. Surgindo, altaneiros, em todas as gerações, eles foram erguendo os baluartes que evitaram a seu país o destino de civilizações extintas, como a do antigo Egito e a de Babilônia.

Minhas recordações mais antigas abrangem traços anacrônicos de uma encarnação anterior. Lembro-me claramente de uma existência longínqua – a de um iogue[2] entre as neves do Himalaia. Estes indícios do passado, graças a um elo imensurável, permitiram-me também vislumbres do futuro.

2 Praticante de ioga, “união”, antiquíssima ciência de meditação em Deus.

Indefesas humilhações da infância ainda não se desvaneceram de minha memória. Era com ressentimento que eu tinha consciência de ser incapaz de me locomover e de me expressar livremente. Sucessivas ondas de oração erguiam-se dentro de mim ao reconhecer esta impotência física. Minha forte vida emocional exprimiu-se mentalmente, em palavras de muitas línguas. Entre a confusão interna de idiomas, habituei-me, pouco a pouco, a ouvir as sílabas berigalis de meu povo. Como se enganam os adultos ao avaliarem o alcance de um cérebro infantil, julgando que ele se limita apenas aos brinquedos!

A fermentação psicológica, não encontrando possibilidade de se expressar através de meu corpo imaturo, dava origem a muitas e obstinadas crises de choro. Recordo-me da desorientação e do assombro que meu desespero provocava em toda a família. Lembranças mais felizes também me ocorrem: as carícias de minha mãe, as primeiras tentativas que fiz para balbuciar frases e dar os primeiros passos. Estes triunfos infantis, normalmente logo esquecidos, criam, contudo, em nós, um alicerce natural de auto-confiança.

O grande alcance de minha memória não é caso único. Sabe-se de muitos iogues que conservaram a consciência de si mesmos, ininterruptamente, durante a dramática transição da vida para a morte e de uma para outra vida. Se o homem fosse apenas um corpo, sua desintegração física seria para ele o término de sua identidade. Mas se, no decurso de milênios, os profetas falaram a verdade, o homem é essencialmente uma alma, incorpórea e onipresente.

Apesar de insólitas, recordações nítidas da primeira infância não são infreqüentes. Durante minhas viagens por numerosos países, ouvi, de lábios de homens e mulheres verazes, o testemunho de suas recordações de uma idade muito próxima ao período de lactância.

Nasci em 5 de janeiro de 1893, em Gorakhpur, no nordeste da índia, perto das montanhas do Himalaia. Ali passei meus primeiros anos. Éramos oito irmãos: quatro meninos e quatro meninas. Eu, Mukunda Lal Ghosh[3] , fui o quarto a nascer e o segundo varão.

3 Meu nome de família foi substituído pelo religioso de Yogananda em 1914, quando ingressei na veneranda Ordem Monástica dos Swâmis. Em 1935, meu guru conferiu-me um título espiritual mais elevado, o de Paramahansa (ver capítulos 24 e 42).

Meu pai e minha mãe eram bengalis, da casta Xátria[4] . Ambos foram abençoados com uma natureza de santos. O mútuo amor que os uniu, tranqüilo e digno, nunca se expressou com frivolidade. Sua harmonia conjugal perfeita era o foco de serenidade em torno do qual girava o tumulto de oito filhos pequenos.

4 A segunda casta, tradicionalmente de legisladores e guerreiros

Meu pai, Bhágabati Charan Ghosh, era bondoso e sério; em certas ocasiões, mostrava grande rigor. Embora lhe tivéssemos muita afeição, nós, crianças, mantínhamos para com ele certa distância que raiava pela reverência. Notável em matemática e lógica, guiava-se principalmente por seu intelecto. Mas minha mãe era uma rainha de corações e educou-nos inteiramente através do amor. Depois que ela morreu, meu pai externou mais sua ternura íntima e eu notei que seu olhar muitas vezes parecia se metamorfosear no olhar de minha mãe.

Foi em presença de mamãe que travamos os primeiros contatos agridoces com as Escrituras. Ela recorria ao Mabábhárata e ao Rarnayâna[5] para exumar histórias que se aplicassem vantajosamente às exigências disciplinares. Instrução e castigo caminhavam de mãos dadas.

5 Estes antigos poemas épicos são um repositório precioso de história, mitologia e filosofia da índia.

Em sinal de respeito por meu pai, mamãe nos vestia cuidadosamente, em cada tarde, para recebê-lo ao regressar do escritório. O cargo por ele ocupado era equiparável ao de vice-presidente numa das maiores companhias ferroviárias da índia: a de Bengala-Nagpur. Seu trabalho obrigava-o a freqüentes viagens e mudanças de residência; nossa família viveu em diversas cidades durante minha meninice.

Mamãe sempre tinha a mão aberta, generosamente, para todos os necessitados. Papai também era caridoso, mas seu respeito à lei e à ordem estendia-se até o orçamento doméstico. Em certa quinzena, mamãe gastou com a alimentação dos pobres mais do que papai gastava num mês.

– Por favor, só lhe peço que seja caridosa dentro de limites razoáveis. – Mesmo uma repreensão suave de seu esposo era de suma gravidade para minha mãe. Sem revelar aos filhos seu desacordo com papai, ela fez vir uma carruagem de aluguel.

– Adeus, vou-me embora para a casa de minha mãe. – Antiqüíssimo ultimato!

Rompemos em pranto e lamentações. Nosso tio materno chegou no momento oportuno. Segredou a meu pai um conselho herdado certamente de algum sábio de antanho.

Depois de papai ter pronunciado algumas palavras de esclarecimento e conciliação, mamãe, feliz, despediu a carruagem. Assim terminou a única divergência de que tive conhecimento entre meus pais. Recordo-me, porém, de uma discussão característica.

– Por favor, preciso de dez rúpias para dar a uma pobre mulher que veio bater à nossa porta. – O sorriso de mamãe era persuasivo.

– Por que dez rúpias? Uma é bastante[6]. – Papai acrescentou esta justificação: – Quando meu pai e meus avós faleceram subitamente, eu soube, pela primeira vez, o que era a pobreza. De manhã, comia unicamente uma pequena banana, antes de caminhar vários quilômetros até a escola. Mais tarde, na Universidade, sofri tais privações que me vi forçado a pedir a um rico juiz o auxílio de uma rúpia por mês. Ele recusou, declarando que mesmo uma rúpia tinha valor.

6 Uma rúpia vale pouco menos que um terço de dólar

– Com que amargura você lembra a recusa dessa rúpia! – O coração de minha mãe teve um instante de lógica. – Você gostaria que essa mulher tivesse de recordar dolorosamente a recusa das dez rúpias de que tanto necessita com urgência?

– Você ganhou! – Com o gesto imemorial dos esposos que se dão por vencidos, meu pai abriu a carteira. – Aqui está uma nota de dez rúpias. Entregue com os meus melhores votos de felicidade.

Tinha papai a tendência de dizer “não”a qualquer proposta nova. Sua atitude perante aquela desconhecida, que tão depressa conquistara a compaixão de minha mãe, era um exemplo de sua cautela habitual. Em verdade, a aversão a aceitar imediatamente é apenas uma homenagem ao princípio de “reflexão necessária”. Achei meu pai sempre justo e equilibrado em seus julgamentos. Se eu pudesse reforçar meus numerosos pedidos com um ou dois bons argumentos, ele, invariavelmente, punha a meu alcance o objetivo ambicionado – fosse uma viagem durante as férias ou uma nova motocicleta.

Meu pai foi um disciplinador austero de seus filhos, desde pequeninos. Mas sua atitude para consigo mesmo só se podia classificar de espartana. Nunca freqüentou, por exemplo, o teatro, mas procurava suas recreações em várias práticas espirituais e na leitura do Bhágavad Gitá[7] . Repudiava todo luxo e aderia a um par de sapatos velhos até que se tornassem imprestáveis. Seus filhos compravam automóveis, depois que seu uso se tornou popular, mas papai contentava-se com o bonde para ir diariamente ao escritório.

7 Este nobre poema sânscrito, que faz parte do épico Mabábhárata, é a Bíblia hindu. 0 Mahátma Gandhi escreveu: “Aqueles que meditarem no Gíta retirarão dele novas alegrias e novos significados todos os’ dias. Não existe uma única meada espiritual com fios embaraçados que o Gíta não possa desembaraçar”

Papai não tinha interesse em acumular dinheiro por amor ao poder. Em certa ocasião, depois de organizar o Banco Urbano de Calcutá, negou-se a tirar vantagens disso e não guardou para si nenhuma ação. Desejara apenas cumprir um dever cívico durante as horas de folga.

– Ele fez sozinho o trabalho de três homens! – o contador informou à companhia. – Tem a haver 125 000 rúpias, ou seja, 41500 dólares por compensações atrasadas. – O tesoureiro enviou a papai um cheque com esse valor. Meu pai lhe deu tão pouca importância que se olvidou de mencioná-lo à família. Mais tarde, meu irmão mais moço, Bishnu, informado de um grande depósito a seu crédito no banco, fez perguntas a papai.

– Por que me orgulhar com um lucro material? – papai respondeu. – Quem procura alcançar o equilíbrio mental não se rejubila com o lucro nem se desespera com o prejuízo. Sabe que o homem chega sem dinheiro a este mundo e dele parte igualmente sem levar uma só rúpia!

Pouco depois de seu casamento, meus pais tornaram-se discípulos do grande mestre Láhiri Mahásaya[8] , de Benares. Esta associação fortaleceu o temperamento, por natureza ascético, de meu pai. Certa ocasião, mamãe fez uma confidência notável à minha irmã mais velha, Roma: “Seu pai e eu nos unimos como marido e mulher apenas uma vez por ano, com o intuito de termos filhos”.

8 Pronuncia-se um tanto Láiri quanto Laíri; é mudo o a final do título: Maáchái. 0 acento tônico recai na primeira e na terceira sílabas de Bábají. Sri Yuktéswar soa Chrii luctésuor. Diz-se Patânjali, Guitânjali, Guita.

Meu pai conheceu pela primeira vez Láhiri Mahásaya por intermédio de Abinash Babu[9] , empregado de um ramal da Estrada de Ferro Bengala-Nagpur. Em Gorakhpur, Abinash Babu monopolizava meus ouvidos infantis com absorventes histórias sobre muitos santos da índia. Concluía invariavelmente prestando um tributo às glórias superiores de seu próprio guru.

9 Babu (senhor) é aposto aos nomes próprios em bengali.

– Alguma vez lhe contaram em que circunstâncias extraordinárias seu pai se tornou discípulo de Láhiri Mahásaya? – Foi numa tranqüila tarde de verão, quando Abinash e eu sentávamos na varanda de minha casa, que ele me fez esta excitante pergunta. Movi a cabeça em sentido negativo, com um sorriso de satisfação antecipada.

– Anos atrás, antes de você nascer, supliquei a meu chefe – seu pai -, uma licença de sete dias para ausentar-me do trabalho a fim de visitar meu guru em Benares. Seu pai ridicularizou meu plano.

– Vai se converter num religioso fanático? – perguntou-me. Concentre-se em seu trabalho no escritório, se quiser progredir.

Naquele dia, voltando tristemente para casa por uma vereda no bosque, encontrei-me com seu pai que era transportado numa liteira. Ele despediu os servidores que o conduziam e passou a caminhar ao meu lado. Procurando me consolar, começou a discorrer sobre as vantagens de lutar pelo sucesso mundano. Mas eu o escutava distraidamente. Meu coração repetia: – Láhiri Mahásaya, não posso viver sem Te contemplar!

O caminho nos conduzia à orla de um campo tranqüilo, onde os raios do sol ao entardecer coroavam a ondulante elevação do capim bravo. Estacamos, em admiração. E ali, no campo, a alguns metros de nós, apareceu subitamente a forma de meu grande guru![10]

10 Os poderes invulgares possuídos pelos grandes mestres são explicados no capítulo 30, “A Lei dos Milagres”

– Bhágabati, você é muito duro com seu empregado! – A voz ressoava em nossos ouvidos atônitos. Meu guru desapareceu tão misteriosamente como viera. De joelhos, eu exclamava: – Láhiri Mahásaya! Láhirí Mahásaya! – Durante alguns momentos, seu pai quedou-se imóvel de assombro.

– Abinash, não só lhe dou licença, mas também a concedo a mim mesmo a fim de partirmos amanhã para Benares. Devo conhecer este grande Láhiri Mahásaya, capaz de se materializar à vontade para interceder por você! Levarei minha esposa comigo e pedirei a este mestre que nos inicie na senda espiritual. Você nos guiará até ele?

– Sem dúvida! – Eu transbordava de alegria ante a resposta miraculosa à minha prece e a rápida e favorável alteração no curso 1 dos acontecimentos.

Na noite seguinte, seus pais e eu viajamos de trem para Benares. Lá chegando durante o dia, cobrimos certa distância num trole e depois tivemos de caminhar por ruelas estreitas para atingir a moradia retirada de meu guru. Entrando em sua pequena sala, fizemos uma reverência ao mestre, ensimesmado na habitual posição de lótus. Ele piscou os olhos penetrantes e levantou-os para meu chefe: – Bhágabati, você é muito duro com seu empregado! – Suas palavras eram as mesmas que ele pronunciara dois dias antes no campo de Goralchpur. E acrescentou: – Alegro-me por haver permitido a Abinash visitar-me e terem vindo, você e sua esposa, em companhia dele.

Para alegria dos esposos, meu guru os iniciou na prática espiritual de Kriya Yoga[11]. Seu pai e eu, condiscípulos espirituais, temos sido amigos íntimos desde aquele memorável dia da visão. Láhiri Mahásaya manifestou particular interesse em seu nascimento, Mukunda, e sua vida estará com certeza relacionada com a dele; as bênçãos do mestre nunca falham.

11 Uma técnica iogue ensinada por Láhiri Mahásaya; acalma e silencia o tumulto sensorial, permitindo ao homem alcançar identidade crescente com a Consciência Cósmica (ver capítulo 26)

Láhiri Mahásaya deixou este mundo pouco depois de eu nele haver entrado. Seu retrato, em moldura ornamentada, sempre permaneceu no altar de nossa família, nas várias cidades para onde meu pai era transferido por necessidade de serviço. Muitas manhãs e muitas noites nos encontraram, à minha mãe e a mim, em meditação ante o improvisado altar, oferecendo flores aromatizadas com pasta de sândalo. juntando incenso e mirra às nossas devoções, honrávamos a Divindade que se manifestara com plenitude em Láhiri Mahásaya.

Sua fotografia teve influência transcendental em minha vida. À medida que eu crescia, o pensamento focalizado no mestre crescia comigo. Em meditação, eu via com freqüência sua imagem fotográfica destacar-se da pequena moldura e, assumindo forma vivente, sentar-se diante de mim. Quando eu tentava tocar os pés de seu corpo luminoso, ele voltava a se transformar em fotografia. No período de transição da infância para a adolescência, aconteceu que Láhiri Mahásaya deixou de ser a imagenzinha exterior encerrada em moldura, para surgir em minha própria mente, convertido e ampliado em presença vívida e luminosa. Em momentos de prova e confusão, eu costumava invocá-lo numa prece, encontrando em seu interior, sua orientação consoladora.

A princípio, eu me afligia por não o ter mais neste mundo, em seu corpo físico. Quando comecei a descobrir sua secreta onipresença, já não volvi a me lamentar. Ele escrevera, amiúde, a todo discípulo demasiado ansioso em visitá-lo: “Por que vir me contemplar em carne e osso, quando estou sempre dentro do raio de visão de seu kutástha (olho espiritual)?

Aos oito anos de idade aproximadamente, conheci a bênção de uma cura maravilhosa, graças ao retrato de Láhiri Mahásaya. Esta experiência intensificou meu amor. Enquanto residia em nossa grande propriedade familiar de Ichapur, em Bengala, contraí o cólera asiático. Fui desenganado pelos médicos; estes nada mais podiam fazer. Ao lado de meu leito, mamãe impeliu-me freneticamente a olhar para a fotografia de Láhiri Mahásaya, presa à parede, acima de minha cabeça.

Curve-se diante dele, mentalmente! – Ela sabia que a excessiva fraqueza me impedia até mesmo de erguer as mãos para saudá-lo. – Se oferecer sua devoção e ajoelhar interiormente diante dele, sua vida será salva!

Olhei fixamente a fotografia e contemplei uma luz cegadora que envolvia meu corpo e o quarto inteiro. Minha náusea e outros sintomas incontroláveis desapareceram; eu estava curado. Imediatamente me senti bastante forte para inclinar-me e tocar os pés de minha mãe num gesto ele reconhecimento pela fé incomensurável que ela demonstrara ter em seu guru. Minha mãe comprimia a cabeça repetidas vezes contra o pequeno retrato: – O Mestre Onipresente, agradeço-Te por Tua luz ter curado meu filho!

Compreendi que ela também havia testemunhado o resplendor deslumbrante através do qual me recobrei instantaneamente de uma doença fatal.

Um de meus bens mais preciosos é essa mesma fotografia. Oferecida a meu pai pelo próprio Láhiri Mahásaya, ela irradia uma santa vibração. Este retrato teve origem miraculosa. Ouvi a história contada por Káli Kumar Roy, condiscípulo espiritual de meu pai.

Parece que Láhiri Mahásaya tinha aversão a ser fotografado. Não obstante seus protestos, tirou-se um retrato do mestre com um grupo de devotos, entre os quais Káli Kumar Roy. Surpreendido, o fotógrafo descobriu que a chapa, na qual se divisavam claramente as imagens de todos os discípulos, apenas revelava um espaço vazio no centro, onde ele esperava que aparecesse a figura de Láhiri Mahásaya. O fenômeno foi amplamente comentado e discutido.

Certo estudante, fotógrafo perito, Ganga Dhar Babu, jactou-se de que a fugitiva imagem não lhe escaparia. Na manhã seguinte, quando o guru se colocava em posição de lótus, num assento de madeira com um biombo por trás, Ganga Dhar Babu. chegou com seu equipamento. Tomando todas as precauções para o sucesso, tirou sofregamente doze fotografias. Em cada uma encontrou a impressão do assento de madeira com o biombo, mas a figura do mestre novamente havia sumido.

– Eu sou Espírito. Pode a sua câmara fotográfica refletir o Invisível Onipresente?

– Vejo que é impossível! Mas, santo senhor, desejo ardentemente um retrato desse templo corpóreo. Minha visão era estreita: até hoje eu não tivera consciência que nele o Espírito habita em plenitude.

– Regressa, então, amanhã cedo. Posarei para você.

O fotógrafo novamente focalizou sua máquina. Desta vez, a sagrada figura não se cobriu de impereceptilidade misteriosa; apareceu, nítida, na chapa. O mestre jamais posou para outro retrato; pelo menos, nunca vi outro[12].

12 Em 1959, Daya Mata fez uma peregrinação ao lar de Láhiri Mahásaya em Benares, residência atual de um neto do mestre, Abhoy Charan Lahiri. Este informou que seu pai Tincouri (então apenas um mocinho) estava presente quando Ganga Dhar tirou a fotografia. Durante sua visita, Daya Mata viu o pequeno quarto, hoje um santuário, onde se encontram um tablado de madeira que foi o assento habitual de Láhiri Mahásaya; suas sandálias; uma peça de roupa usada por ele; seu exemplar do Bhágavad-Gíta manuscrito em sânscrito; e um recipiente contendo algumas de suas sagradas cinzas. “Ali seus devotos se reuniam em torno dele enquanto Láhiri Mahásaya comentava as Escrituras – disse 13 Cópias desta fotografia podem ser adquiridas de SRF, em Los Angeles.

A fotografia é reproduzida neste livro[13]

13 Cópias desta fotografia podem ser adquiridas de SRF, em Los Angeles

Lahiri Mahasaya, discípulo de Babaji - Autobiografia de um Iogue
Lahiri Mahasaya, discípulo de Babaji – Autobiografia de um Iogue.

Os traços fisionômicos de Láhiri Mahásaya, de casta universal, dificilmente sugerem a raça a que ele pertencia. O intenso deleite de sua comunhão com Deus é levemente denunciado pelo sorriso enigmático. Seus olhos, semi-abertos, indicam um interesse nominal pelo mundo externo e, ao mesmo tempo, semicerrados, revelam sua absorção na beatitude interior. Alheio aos míseros atrativos da Terra, estava sempre desperto para atender generosamente aos problemas espirituais dos que o procuravam.

Pouco depois de minha cura, graças à luz que se projetou através da fotografia de Láhiri Mahásaya, tive uma visão de grande influência espiritual. Sentado em meu leito, certa manhã, absorvi-me em profunda concentração.

– Que há por trás da obscuridade dos olhos? – Este pensamento inquiridor me avassalou a mente. Imensa luz manifestou-se instantaneamente em minha visão interna. Divinas figuras de santos, sentados em posição de lótus, em cavernas de montanhas, alinhavam-se, como imagens de um filme em miniatura, na grande tela de radiações surgida tio interior de minha testa.

– Quem sois? – perguntei em voz alta.

– Somos iogues do Himalaia. – É difícil descrever a resposta celestial; meu coração, estremecido, inundou-se de beatitude.

– Ali, como anseio ir ao Himalaia e tornar-me um de vós! – A visão desapareceu, mas seus raios prateados expandiram-se em círculos cada vez maiores, até o infinito.

– Que maravilhoso esplendor é este? – Eu sou Íswara[14].

14 Nome sânscrito para indicar Deus em seu aspecto de Legislador Cósmico; da raiz is, legislar. As Escrituras hindus contêm milhares de nomes para designar Deus, cada um correspondendo a um diferente matiz de significado filosófico. Deus, sob o aspecto de Íswara, cria e dissolve todos os universos, metódica e periodicamente.

Eu sou luz! – A voz se parecia a nuvens murmurantes.

– Quero unir-me a Ti!

Do lento desvanecer-se de meu divino êxtase, ficou-me a herança de uma permanente inspiração para buscar a Deus. “Ele é Alegria eterna, sempre renovada! “Esta lembrança perdurou muito após o dia do místico rapto.

Outra recordação de minha infância é notável, e tão literalmente, que carrego sua cicatriz até hoje. Certa manhã, bem cedo, minha irmã mais velha, Uma, estava sentada comigo sob uma árvore de neern[15], em nossa casa de campo em Gorakhpur. Ela me ajudava no estudo de minha primeira cartilha em bengali, nos momentos em que eu consentia desviar minha vista de alguns papagaios que, ali perto, bicavam os frutos maduros de amargoseira.

15 Amargoseira, grande árvore originária da índia oriental, cujas flores são de corola lilás, e os frutos, amarelo. Suas propriedades medicinais são hoje reconhecidas no Ocidente, onde a casca amarga é usada como tônico; descobriu-se que o óleo de suas sementes e frutos é de valia no tratamento da lepra e de outras moléstias.

Daya Mata. As vibrações de paz e de amor divinos nesse quarto são arrebatadoras.

Satya Charan Láhiri, outro neto, construiu em Benares um Guru Mandir (templo) onde se venera uma bela estátua de mármore de Láhiri Mahásaya. (Nota de SRF).

Queixou-se Uma de certo inchaço em sua perna e foi buscar um frasco de ungüento. Untei meu antebraço com um pouco de pomada.

Por que esfrega remédio num braço sadio?

Bem, irmã, sinto que amanhã vou ter um furúnculo. Estou experimentando o ungüento no lugar onde a inflamação vai aparecer.

– Menino mentiroso!

– irmã, não me chame de mentiroso até ver o que acontecerá amanhã. – Eu estava indignado.

Ela, sem se deixar impressionar, três vezes me chamou de mentiroso. Resolução inflexível como diamante soou em minha voz quando lhe dei esta lenta resposta:

– Pelo poder da vontade em -mim, afirmo que amanhã terei um enorme furúnculo exatamente neste lugar de meu braço; e o teu furúnculo estará duas vezes mais inchado que hoje.

Na manhã seguinte, encontrei um valente furúnculo no lugar indicado; o de Uma tinha duplicado suas dimensões. Gritando agudamente, minha irmã correu para mamãe. – Mukunda converteu-se em nigromante! – Com gravidade, mamãe instruiu-me a nunca usar o poder da palavra para fazer o mal. Sempre recordei seu conselho e o segui fielmente.

Um cirurgião rasgou o meu furúnculo. Uma cicatriz notável, até hoje, mostra onde o médico fez a incisão. Em meu antebraço direito existe um sinal memorável do poder imanente na límpida palavra do homem.

Aquelas frases simples e aparentemente inofensivas a Uma, pronunciadas com profunda concentração, possuíram suficiente força oculta para explodir como bombas e produzir efeitos definidos, embora prejudiciais. Compreendi, mais tarde, que o poder vibratório da linguagem poderia ser sabiamente dirigido para liberar nossa vida de dificuldades e assim operar sem deixar cicatrizes nem censuras[16].

16 A potencialidade infinita do som deriva da Palavra Criadora, AUM, o poder vibratório cósmico por trás de toda a energia atômica. Qualquer palavra proferida com límpida compreensão e profunda concentração tem valor materializante. A repetição oral ou silenciosa de palavras inspiradoras provou sua eficiência em sistemas de psicoterapia como, por exemplo, o de Coué; o segredo reside em introduzir um “crescendo” na freqüência vibratória da mente.

Nossa família transferiu-se para Lahore, no Punjab. Ali comprei um retrato da Mãe Divina, sob a forma da Deusa Káli[17], que santificou um modesto altar na sacada interna de nossa casa. Dominou-me a convicção inequívoca de que todas as minhas preces pronunciadas naquele santo lugar se realizariam.

17 Káli é um símbolo de Deus sob o aspecto da eterna Mãe Natureza.

Certo dia, de pé nessa sacada, em companhia de Uma, observei dois meninos empinando papagaios de papel sobre o telhado de dois edifícios vizinhos, separados de nossa casa por uma estreita rua.

– Por que se acha tão quieto? – perguntou-me Uma, dando-me um empurrão por brincadeira.

– Estou pensando como seria maravilhoso se a Mãe Divina me desse tudo o que eu pedisse.

– Suponho que Ela lhe daria aqueles dois papagaios! – O riso de minha irmã era de caçoada. – Por que não?

– Comecei a rezar silenciosamente para obtê-los.

Na índia, os meninos fazem competições e apostas com papagaios cujas linhas são recobertas de cola e vidro moído. Cada jogador procura cortar a linha de seu adversário. Finalmente, um papagaio solto voa sobre os telhados; é divertido correr atrás dele para apanhá-lo. Estando Uma e eu numa sacada interior, recoberta de telhas, parecia impossível que um papagaio de linha cortada viesse cair em nossas mãos; sua linha naturalmente passaria flutuando sobre o telhado.

Do outro lado da estreita viela, os competidores começaram o combate. Uma das linhas foi cortada e imediatamente o papagaio flutuou em minha direção. Devido à súbita ausência de brisa, o papagaio permaneceu imóvel por um momento; nessa pausa, a linha enroscou-se num cacto que havia na sotéia do prédio em frente: de tal modo a linha se envolveu no cacto que formou um extenso e perfeito laço no ar, ao alcance de minhas mãos. Entreguei o troféu a Uma.

– Foi apenas um extraordinário acidente, e não uma resposta à sua prece. Se o outro papagaio cair em sua mão, então acreditarei.

Os olhos pretos de minha irmã mostravam muito mais assombro que suas palavras. Continuei a rezar com intensidade crescente. Um puxão mais forte dado à linha pelo outro jogador causou a perda brusca de seu papagaio. Este veio em minha direção, bailando no vento. Meu útil ajudante, o cacto, novamente prendeu a linha num laço bastante extenso para que eu o pudesse alcançar. Apresentei meu segundo troféu a Uma.

– A Mãe Divina o escuta, certamente! Tudo isto é demasiado misterioso para mim! – E minha irmã pôs-se em fuga, como uma pequena corça assustada.

Capítulo 2

A morte de minha mãe e o amuleto místico

O maior desejo de minha mãe era o de ver casado meu irmão mais velho.

– Ali, quando eu contemplar a face da esposa de Ananta, terei encontrado o céu na terra! – Freqüentemente ouvi mamãe expressar com estas palavras o seu arraigado sentimento hindu. pela continuidade da família.

Tinha eu onze anos quando se realizaram os esponsais de Ananta. Mamãe estava em Calcutá, supervisando alegremente os preparativos para o enlace. Papai e eu ficamos sozinhos em nossa casa em Bareilly, ao norte da índia, para onde ele fora transferido, após dois anos de permanência em Lahore.

Anteriormente eu havia presenciado o esplendor dos ritos nupciais de minhas duas irmãs mais velhas, Roma e Uma; para Ananta, entretanto, como primogênito, os preparativos eram muito meticulosos. Mamãe, em Calcutá, recepcionava numerosos parentes que chegavam de regiões distantes, todos os dias. Alojava-os confortavelmente numa casa ampla, recém-adquirida, situada em Amherst Street, 50. Tudo estava pronto: as deliciosas iguarias do banquete, o trono vistoso no qual meu irmão seria carregado até a casa da noiva, as fileiras de luzes coloridas, os gigantescos elefantes e camelos feitos de papelão, as orquestras indiana, inglesa e escocesa, os comediantes e artistas profissionais, os sacerdotes celebrantes dos antigos ritos

Papai e eu, com espírito festivo, havíamos planejado nos reunir à família em tempo oportuno para a cerimônia. Pouco antes do grande dia, porém, tive uma visão de mau presságio.

Foi em Bareilly, à meia-noite: eu dormia ao lado de meu pai no terraço de nosso bangalô, quando fui acordado pelo franzir peculiar do mosquiteiro estendido sobre a cama. As frágeis cortinas abriram-se e vi a amada figura de minha mãe.

– Acorde seu pai! Sua voz era apenas um sussurro. – Tomem o primeiro trem que partir, o das quatro da madrugada. Corram a Calcutá, se me quiserem ver! – A aparição desvaneceu-se.

– Pai, papai! Mamãe está morrendo! – O terror em minha voz despertou-o imediatamente. Em soluços comuniquei-lhe a notícia fatídica.

– Não se impressione com suas alucinações. Meu pai, como de costume, deu sua negativa a uma situação nova. Sua mãe está de perfeita saúde. Se recebermos notícias más, partiremos amanhã.

– Papai nunca se perdoará por não haver partido agora. – E a angústia me fez acrescentar: – Nem eu o perdoarei.

A manhã seguinte despontou melancolicamente e, com ela, o telegrama explícito: “Mãe gravemente enferma; casamento adiado; venham imediatamente”.

Papai e eu partimos como dementes. Um de meus tios veio ao nosso encontro numa estação onde tínhamos de baldear. Estrondosa locomotiva puxando seus vagões vinha em nossa direção com velocidade telescópica. De meu tumulto interior brotou a determinação repentina de me atirar aos trilhos, sob as rodas do trem. Sentindo que minha mãe me era violentamente arrebatada, eu não podia suportar um mundo de súbito calcinado até os ossos. Eu amava minha mãe como ao ser mais querido sobre a terra. Seus consoladores olhos negros tinham sido meu refúgio em toda as insignificantes tragédias de minha infância.

– Ela ainda vive? – Detive-me para fazer esta derradeira pergunta a meu tio. Ele compreendeu, num átimo, todo o desespero em minha face. – Claro que vive! – Eu, porém, dificilmente acreditava.

Quando chegamos à nossa casa em Calcutá, foi só para defrontar, alurdidos, o mistério da morte. Sofri um colapso e depois mergulhei num estado de quase torpor. Muitos anos decorreram antes que meu coração se conformasse. Meu grito e meu pranto, como tempestades renovando-se às próprias portas do céu, afinal impeliram a Mãe Divina a se apresentar. Suas palavras trouxeram o bálsamo da cura às feridas que ainda supuravam:

– Sou Eu que tenho velado por ti, vida após vida, na ternura de todas as mães! Contempla em Meu olhar os dois olhos negros, os formosos olhos perdidos que andas buscando!

Papai e eu regressamos a Bareilly logo após os ritos crematórios da bem-amada. Todas as madrugadas, bem cedo, em sua memória, eu fazia uma patética peregrinação à frondosa árvore sheoli que sombreava o prado auriverde em frente ao nosso bangalô. Em momentos poéticos, imaginava que as flores brancas de sheoli se derramavam com espontânea devoção sobre o altar do prado. Misturando minhas lágrimas ao orvalho que tombava, freqüentemente observei uma estranha luz de outro mundo emergindo da aurora. Dores me assaltavam, intensas, de saudade de Deus. Sentia-me fortemente atraído para o Himalaia.

Um de meus primos, recentemente chegado de uma viagem às montanhas sagradas, visitou-nos em Bareilly. Escutei com avidez seus relatos sobre a elevada cordilheira, residência de iogues e swâmis[18].

18 Swa, a raiz sânscrita de Swâmi, significa “aquele que se unificou com o seu Eu Divino” (ver capítulo 24).

– Fujamos para o Himalaia. – Esta sugestão feita, um dia, a Dwarka Prasad, jovem filho de nosso caseiro em Bareilly, não foi de seu agrado. Revelou meu plano a meu irmão mais velho, recém-chegado para visitar papai. Em vez de sorrir com tolerância do projeto impraticável de um menino, Ananta aproveitou-se disso para me ridicularizar.

– Onde está a sua túnica alaranjada? Não pode ser um swâmi sem ela.

Suas palavras, entretanto, provocaram em mim estranha comoção. Pintaram-me com nitidez um quadro: eu próprio era um monge, errante pela terra da índia. Talvez as palavras de Ananta despertassem lembranças de uma vida anterior; em todo caso, percebi com que naturalidade eu usaria a túnica daquela Ordem Monástica, de fundação antiqüíssima.

Conversando certa manhã com Dwarka, senti que o amor por Deus descia sobre mim com a força de uma avalanche. Meu companheiro prestava atenção fragmentada à minha ininterrupta eloqüência, enquanto eu, encantado, me ouvia integralmente.

Fugi naquela tarde para Naini Tal no sopé do Himalaia. Ananta perseguiu-me com denodo; fui tristemente forçado a regressar a Bareilly. A única peregrinação que me permitiam era o passeio à árvore sheoli todas as madrugadas. Meu coração chorava pelas duas Mães perdidas, a humana e a Divina.

A morte de mamãe deixou no tecido da família um rasgão irreparável. Papai nunca voltou a se casar, vivendo sozinho o resto de sua vida, cerca de quarenta anos. Assumindo o difícil papel de pai e mãe de seu pequeno rebanho, ele se tornou notavelmente mais terno, mais acessível. Com serenidade e discernimento, resolvia os vários problemas da família. Após as horas de trabalho no escritório, retirava-se como um ermitão à cela de seu quarto, praticando Kriya Yoga em doce tranqüilidade. Muito posteriormente à morte de minha mãe, tentei contratar uma enfermeira inglesa para cuidar dos detalhes que tornariam mais confortável a vida de meu pai. Mas ele abanou a cabeça negativamente.

– Os cuidados para comigo terminaram com a partida de sua mãe. – Seus olhos miravam remotamente o que era o objeto de devoção de toda a sua vida. – Não aceitarei os serviços de nenhuma outra mulher.

Catorze meses depois da partida de minha mãe, eu soube que ela me deixara uma importante mensagem. Ananta estivera presente, ao lado de seu leito de morte, e registrara suas palavras. Embora ela tivesse recomendado que a revelação me fosse feita um ano após a sua morte, meu irmão a retardou. Em breve ele partiria de Bareilly para Calcutá, a fim de casar-se com a jovem escolhida por mamãe[19]. Uma noite, ele me chamou para junto de si.

19 O costume hindu, segundo o qual os pais escolhem a esposa para seus filhos, tem resistido às rudes investidas do tempo. Elevada é a porcentagem de casamentos indianos felizes.

– Mukunda, tenho relutado em dar-lhe uma estranha mensagem. – A voz de Ananta apresentava um tom de resignação. – Temi que se inflamasse o seu desejo de abandonar o lar. Mas, de qualquer maneira, você está revestido de fervor divino. Quando o capturei recentemente a caminho do Himalaia, firmei esta resolução: não devo adiar por mais tempo o cumprimento de uma solene promessa. – Fazendo-me entrega de uma caixinha, meu irmão transmitiu a mensagem de mamãe:

Deixe que estas palavras sejam minha bênção póstuma, meu bem-amado filho Mukunda! – dissera minha mãe. – Chegou a hora em que devo relatar alguns fenômenos extraordinários acontecidos após o seu nascimento. Conheci a senda reservada a você, quando ainda era um bebê em meus braços. Carreguei-o ao colo, naquele tempo, em visita a meu guru em Benares. Eu mal podia ver Láhiri Mahásaya, sentado em meditação profunda, quase escondido atrás de uma multidão de discípulos.

Eu acalentava o meu filhinho e, ao mesmo tempo, fazia uma prece para que o grande guru. nos percebesse e abençoasse. Minha súplica silenciosa crescia em intensidade; ele entreabriu os olhos e fez sinal para que me aproximasse. Os outros me abriram caminho respeitosamente; reverenciei-o, tocando-lhe os pés sagrados. Láhiri Mahásaya sentou-o, Mukunda, sobre as pernas dele, colocando-lhe a mão na testa, à guisa de batismo espiritual.

– Mãezinha, seu filho será um iogue. Semelhante a um motor espiritual, ele conduzirá muitas almas ao reino de Deus.

Meu coração saltou de alegria porque minha súplica secreta fora atendida pelo guru onisciente. Pouco antes de seu nascimento, Mukunda, Láhirí Mahásaya me dissera que você seguiria o caminho dele.

Mais tarde, meu filho, sua visão da Grande Luz foi testemunhada por mim e por sua irmã Roma; de um quarto próximo, nós o observávamos imóvel em seu leito. Seu rostinho iluminou-me; sua voz soou com determinação de ferro quando você falou de viajar ao Himalaia em busca do Divino.

Por estes meios, filho querido, eu soube que sua senda está muito além das ambições mundanas. O mais singular evento de minha vida trouxe-me confirmação posterior – um evento que agora me impele a dar-lhe, de meu leito de morte, esta mensagem.

Foi uma entrevista com um sábio no Punjab, Quando nossa família vivia em Lahore, a criada entrou certa manhã em meu quarto.

– Senhora, um estranho sádhu[20] está aqui. Ele insiste em “ver a mãe de Mukunda”.

20 Anacoreta; quem adotou sádhana ou uma senda de disciplina espiritual.

Estas singelas palavras tangeram uma corda profunda em meu coração. Fui imediatamente cumprimentar o visitante. Curvando-me a seus pés, em reverência, senti que estava em presença de um verdadeiro homem de Deus.

– Mãe – disse ele – os grandes mestres desejam que saiba que sua permanência na Terra não será longa. Sua próxima doença será a última[21]. – Houve um silêncio durante o qual não me senti alarmada; ao contrário, experimentei a vibração de uma grande paz. Finalmente ele se dirigiu a mim outra vez:

21 Quando descobri, por estas palavras, que mamãe tinha conhecimento secreto da breve duração de sua vida, compreendi pela

A senhora deve ser a depositária de certo amuleto de prata. Não lhe darei o talismã agora; para demonstrar a veracidade de minhas palavras, ele se materializará em suas mãos, amanhã, quando estiver meditando. De seu leito de morte, deverá instruir seu filho mais velho Ananta, para que guarde o amuleto durante um ano e então o e o entregue a seu segundo filho. Mukunda entenderá o significado do talismã, proveniente de Grandes Seres. Ele o receberá na época em que estiver pronto para renunciar a todas as esperanças mundanas e começar sua busca vital de Deus. Depois de haver conservado o amuleto por vários anos e quando este já tiver servido a seu propósito, desaparecerá. Mesmo que esteja guardado no esconderijo mais secreto, o talismã voltará ao lugar donde veio.

Ofereci esmolas[22] ao santo e me inclinei diante dele com grande reverência. Sem aceitar minha oferenda, ele me abençoou e partiu. Na manhã seguinte, enquanto sentada eu meditava, um amuleto materializou-se entre as palmas de minhas mãos, tal como o sádhu prometera. Fez-se notar por seu contato liso e frio. Guardei-o zelosamente durante mais de dois anos, e agora o deixo sob a custódia de Ananta. Não lamente minha partida, pois serei introduzida por meu guru nos braços do Infinito. Adeus, filhinho; a Mãe Cósmica o protegerá.

22 Um gesto habitual de respeito para com os sádhus.

Uma rajada de luz desceu sobre mim com a posse do amuleto; muitas recordações adormecidas despertaram. O talismã, redondo e autenticamente antigo, estava coberto de caracteres sânscritos. Compreendi que procedia de mestres de vidas anteriores, os quais guiavam invisivelmente meus passos. Havia outro significado ainda, mas seu possuidor, se assim o preferir, pode não desvendar completamente a intimidade de um amuleto[23].

Como o talismã afinal se evaporou em meio a circunstâncias profundamente infelizes de minha vida, e como sua perda foi o arauto da chegada de um guru, não o direi neste capítulo.

O menino porém, frustrado em suas tentativas de atingir o Himalaia, viajou para muito longe, todos os dias, nas asas de seu amuleto.

23 O amuleto era um objeto produzido astralmente. De estrutura evanescente, tais objetos devem afinal desaparecer de nosso mundo físico (ver capítulo 43). Inscrito no talismã, havia um mântra ou letra de um canto sonoro. Em parte alguma, os poderes do som e de vach, a voz humana, foram tão profundamente pesquisados como na índia. A vibração AUM que reverbera em todo o universo (o “Verbo” ou “voz de muitas águas” da Bíblia) apresenta três manifestações ou gunas: criação, preservação e destruição (Taittirya Upanishád 1,8) Cada vez que o homem pronuncia uma palavra, ele põe em ação uma das três qualidades de AUM. Esta lei se encontra por trás daquele mandamento que, em todas as Escrituras, impõe ao homem o dever de falar a verdade. O mântra inscrito no amuleto possuía, quando pronunciado de modo correto, uma potência vibratória espiritualmente benéfica. 0 alfabeto sânscrito, de construção ideal, compreende 50 letras, tendo, cada uma, pronúncia determinada, invariável. George Bernard Shaw escreveu um ensaio sagaz e, como era de se esperar, satírico, sobre a impropriedade fonética do alfabeto inglês de base latina, no qual 26 letras se esforçam para agüentar, sem êxito, o pesado encargo de indicadoras de sons. Com sua habitual crueza (“Se a introdução de um alfabeto inglês custar uma guerra civil … eu não a lamentarei”), o sr. Shaw propõe a adoção urgente de um novo alfabeto de 42 letras (ver seu prefácio ao livro de Wilson O miraculoso nascimento da linguagem, Philosophical Librairy, N ‘ Y.). Semelhante alfabeto aproximar-se-ia da perfeição fonética do sânscrito, cujo emprego de 50 letras evita erros de pronúncia. A descoberta de sinetes no Vale do rio Indo está levando vários eruditos a abandonarem a teoria corrente de que a Índia tomou emprestado de fontes semíticas o seu alfabeto sânscrito. Algumas grandes cidades indianas foram recentemente dessoterradas em Mohenjo-Daro e Harappa, fornecendo provas de uma cultura eminente que “deve ter tido uma longa história anterior no solo da Índia, pois nos faz retroceder a eras obscuramente suspeitadas” (Sir John Marshall, Mohenjo-Daro e as civilizações do Indo, 1931). Se a teoria hindu da existência extremamente remota do homem civilizado no planeta é correta, torna-se possível explicar por que a mais antiga língua, o sânscrito, é também a mais perfeita (ver capítulo 10). Disse sir William Jones, fundador da Sociedade Asiática: “0 sânscrito, seja qual for a sua antigüidade, possui maravilhosa estrutura; mais perfeita que o grego, mais rica que o latim e mais requintada que qualquer das duas”. E afirma a Enciclopédia Americana: “Desde o ressurgimento dos estudos clássicos, não houve acontecimento mais importante na história da cultura que a descoberta do sânscrito (por eruditos ocidentais) nos fins do século 18. A filosofia, a gramática comparada e a ciência da religião … ou devem sua própria existência à descoberta do sânscrito ou foram profundamente influenciadas por seu estudo”

Capítulo 3

O Santo com dois corpos

Pai, se eu prometer regressar à nossa casa, sem ser coagido, poderei fazer uma excursão a Benares?

Meu pai raramente punha obstáculos à minha acentuada predileção por viagens. Permitiu-me, ainda menino, visitar muitas cidades e lugares de peregrinação. Em geral, um ou dois amigos me acompanhavam; viajávamos confortavelmente com passes de primeira classe, fornecidos por papai. Sua posição de alto funcionário na estrada de ferro favorecia inteiramente os nômades da família.

Papai prometeu estudar minha proposta. No dia seguinte, chamou-me e ofereceu-me uma passagem de ida e volta, de Bareilly a Benares, certo número de rúpias em notas e duas cartas.

– Tenho um negócio a propor a um amigo em Benares, Kedar Nath Babu. Infelizmente perdi seu endereço, mas acredito que você poderá lhe entregar esta carta por intermédio de nosso amigo comum, Swâmi Pranabananda. Este swâmi é, como eu, discípulo de Láhiri Mahásaya, e alcançou elevada estatura espiritual. A você, a companhia dele será benéfica; esta segunda carta lhe servirá de apresentação.

Piscando um olho, papai acrescentou: – Fugir de casa, de agora em diante, não!

Parti com o entusiasmo de meus doze anos (embora a idade nunca tivesse diminuído meu prazer de avistar novas paisagens e rostos desconhecidos). Ao chegar em Benares, dirigi-me imediatamente à residência do swâmi. A porta de entrada estava aberta; subi a um quarto, longo como um corredor, no primeiro andar. Um homem atlético, usando uma tanga, estava sentado em posição de Iótus, numa plataforma pouco acima do chão. Os cabelos tinham sido rapados, e a face sem rugas, barbeada; um sorriso de beatitude flutuava em seus lábios. Para banir meu pensamento de estar sendo um intruso, ele me cumprimentou como a um velho amigo.

– Baba anand (bem-aventurança para você, querido). – Suas boas-vindas foram expressas de todo coração, com voz infantil. Ajoelhei-me e toquei-lhe os pés.

– O senhor é Swâmi Pranabananda?

Ele moveu a cabeça afirmativamente. – Você é o filho de Bhágabati? – Suas palavras foram ditas antes que eu tivesse tempo de retirar do bolso a carta de meu pai. Espantado, estendi-lhe a carta de apresentação, agora supérflua. Sem abri-la, ele acrescentou:

– Naturalmente localizarei Kedar Nath Babu para você. – O santo de novo me surpreendeu por sua clarividência. Teve apenas um olhar para o envelope e fez algumas referências afetuosas a meu pai.

– Sabe, estou desfrutando duas pensões. Uma, por recomendação de seu pai, para quem trabalhei anteriormente na estrada de ferro. Outra, por recomendação de meu Pai Celestial, para quem terminei conscientemente meus deveres terrenos nesta vida.

Achei muito obscura esta última frase. – Que espécie de pensão recebe do Pai Celestial? Ele atira dinheiro ao seu colo?

O Swâmi riu-se. – Refiro-me a uma pensão de paz insondável, recompensa por muitos anos de profunda meditação. Agora, nunca imploro dinheiro. A satisfação de minhas escassas necessidades materiais está sobejamente garantida. No futuro, você entenderá o significado de uma segunda pensão.

Terminando de chofre a conversa, o santo imobilizou-se gravemente. Um ar de esfinge o envolveu. A princípio, seus olhos brilharam como se observassem algo interessante, depois se tornaram baços. Seu mutismo deixou-me confuso; ele ainda não me dissera como eu poderia encontrar o amigo de meu pai. Um tanto inquieto, circunvaguei o olhar pelo quarto vazio; com exceção de nós dois, era um deserto, Meus olhos errantes pousaram em suas sandálias de madeira, sob o estrado.

– Senhorzinho[24], não se preocupe. O homem a quem veio procurar estará aqui dentro de meia hora. – O iogue estava lendo meu pensamento: uma empresa não muito difícil naquele momento!

24 Alguns santos hindus usavam a expressão “Choto Mahásaya”ao se dirigirem a mim, Traduz-se por “Senhorzinho” (little sir).

Novamente ele se interiorizou num silêncio impenetrável. Meu relógio indicava que trinta minutos tinham decorrido quando o swâmi se levantou.

– Penso que Kedar Nath Babu está chegando à porta da rua disse ele.

Ouvi alguém subindo as escadas. O assombro e a incompreensão mesclavam-se de repente em mim; meus pensamentos eram velozes mas confusos. “Como é possível que o amigo de meu pai tenha sido intimado a comparecer aqui sem que um mensageiro o fosse chamar? O swâmi não falou com ninguém desde a minha chegada!”

Sem-cerimônia, abandonei o quarto e desci as escadas. A meio caminho, encontrei um homem magro, de pele clara e de média estatura. Parecia estar com pressa.

– O senhor é Kedar Nath Babu? – A excitação dava colorido à minha voz.

– Sim. E você não é o filho de Bhágabati que está esperando ror mim? – Ele sorriu amigavelmente.

– Senhor, como lhe ocorreu vir aqui? Eu sentia frustração e ressentimento por não poder explicar sua presença.

– Hoje, tudo é misterioso! Há menos de uma hora atrás, eu saía de meu banho no Ganges, quando Swâmi Pranabananda se aproximou. Não tenho a menor idéia de como soube que eu me achava ali, àquela hora. Disse-me ele: – O filho de Bhágabati está à sua espera em meu apartamento. Pode vir comigo – Concordei de bom grado. Caminhamos lado a lado, mas logo o swâmi, usando sandálias de madeira, tomou estranhamente a dianteira, apesar de eu ter, nos pés, sapatos reforçados para andar pelas ruas. – Quanto tempo levará para atingir minha casa? – Pranabananda parou de súbito, para fazer-me esta pergunta. -Cerca de meia hora. – Ele me olhou enigmaticamente. – Devo deixá-lo para trás; nos encontraremos em minha casa, onde o filho de Bhágabati e eu estaremos à sua espera. – Antes que eu pudesse replicar, adiantou-se velozmente e desapareceu entre a multidão. Vim para cá tão depressa quanto me foi possível.

Esta explicação apenas aumentou meu assombro. Perguntei-lhe há quanto tempo conhecia o swâmi.

– Tivemos alguns encontros no ano passado, mas não recentemente. Foi com prazer que o revi no ghat[25] de banho esta manhã.

25 Escadaria para que os banhistas possam descer a um rio ou lago; desembarcadouro. De ghats reservados à cremação, os participantes do funeral têm acesso à água para se purificarem e atirarem as cinzas à correnteza.

– Não posso crer em meus ouvidos! Será que estou ficando louco? O senhor encontrou Pranabananda numa visão ou realmente o viu, tocou-lhe a mão e escutou o ruído de seus passos?

– Não sei onde está querendo chegar. – Ele ficou rubro de indignação. – Não lhe estou mentindo. Não pode compreender que só por intermédio do swâmi eu podia saber que você me esperava neste lugar?

– Pois eu lhe asseguro que esse homem, Swâmi Pranabananda, não se afastou de minha vista um só instante desde que entrei aqui há uma hora atrás. – E sem mais reflexão, contei-lhe toda a história, repetindo a conversação que tivera com o swâmi.

Seus olhos abriram-se desmesuradamente. – Estamos vivendo nesta era materialista ou estamos sonhando? Nunca esperei testemunhar tal milagre em minha vida! julguei que este swâmi era um homem comum e agora descubro que pode materializar um corpo extra e operar com ele! – Entramos juntos no quarto do santo. Kedar Nath Babu apontou com o dedo para os sapatos sob o estrado.

– Olhe, são as mesmas sandálias que ele usava no ghat – segredou-me. – E vestia apenas uma tanga, exatamente como agora.

Quando o visitante se inclinou diante dele, o santo voltou-se para mim com um sorriso divertido.

– Por que ficou espantado com tudo isto? A sutil unidade do mundo dos fenômenos não se acha oculta aos verdadeiros iogues. Eu vejo e converso instantaneamente com meus discípulos na distante Calcutá. Eles também podem transcender à vontade qualquer obstáculo de matéria densa.

Foi provavelmente para avivar o ardor espiritual em meu jovem peito que o swâmi condescendeu em falar-me de seus poderes de rádio e televisão astrais[26]. Mas, em vez de entusiasmado, senti apenas terror, Talvez porque eu estivesse destinado a empreender minha divina busca sob a direção de determinado guru – Swâmi Yuktéswar, a quem ainda não encontrara – não me senti disposto a aceitar Pranabananda como meu instrutor. Olhei-o com desconfiança, conjeturando se era ele ou seu segundo corpo o que eu tinha à minha frente.

26 A ciência física está, por seus próprios métodos, confirmando a validade de leis descobertas pelos iogues através da ciência mental. Por exemplo, na Real Universidade de Roma, em 26 de novembro de 1934, obtiveram-se provas de que o homem possui poderes de televisão. 0 dr. Giuseppe Calligaris, professor de neuropsicologia, comprimiu certas partes do corpo de um indivíduo e este fez minuciosa descrição de pessoas e objetos situados atrás de uma parede. Disse o dr. Calligaris a outros professores que, ao serem estimuladas certas áreas da pele, o indivíduo recebe impressões supersensoriais e torna-se capaz de ver objetos que, de outra maneira, não poderia perceber. Para fazer o indivíduo discernir objetos situados atrás de uma parede, o dr. Calligaris comprimiu um lugar no lado direito do tórax durante quinze minutos. Afirmou o dr. Calligaris que, estimulados certos pontos do corpo, os indivíduos podem ver objetos a qualquer distância, mesmo no caso de nunca antes os terem visto.

O mestre procurou dissipar minha inquietude, lançando-me um olhar de alento espiritual e dizendo algumas palavras inspiradoras sobre seu guru.

– Láhiri Mahásaya foi o maior iogue que conheci. Ele era a própria Divindade revestida de carne.

Se um discípulo, refleti, pode materializar uma forma carnal extra à vontade, que milagres não estarão ao alcance de seu mestre?

– Vou lhe dar uma idéia de quanto é inestimável a ajuda de um guru. Eu costumava meditar com outro discípulo durante oito horas, todas as noites. Tínhamos de trabalhar no escritório da estrada de ferro durante o dia. As práticas noturnas tornavam difícil o cumprimento de meus deveres diurnos de empregado, e por isso desejava dedicar meu tempo integral a Deus. Durante oito anos perseverei, meditando metade da noite. Obtive maravilhosos resultados; tremendas percepções espirituais me iluminaram a mente. Mas sempre um véu delgado persistia entre mim e o Infinito. Mesmo desenvolvendo esforços sobre-humanos, a união irrevogável me era negada, Certa noite, fiz uma visita a Láhirj Mahásaya e supliquei sua divina intercessão. Continuei a importuná-lo durante o resto da noite.

– Angélico guru, minha angústia espiritual é tanta que não posso mais suportar a vida sem ver o Supremo Bem-Amado, face a face!

Que posso fazer? Você deve meditar mais profundamente.

Estou apelando a Ti, ó Deus meu Mestre! Contemplo-Te materializado perante mim num corpo físico; abençoa-me para que Te possa perceber afinal sob Teu aspecto infinito!

Láhiri Mahásaya estendeu a mão num gesto benigno: – Agora você pode ir e meditar. Intercedi por você junto a Brahma[27].

27 Deus em Seu aspecto de Criador, da raiz sânscrita brih, expandir. Quando o poema “Brahma”, de Emerson, foi publicado no Atlantic Montly em 1857, a maioria dos leitores escandalizou-se. Emerson riu ironicamente: “- Digam Jeová em lugar de Brahma e não sentirão perplexidade alguma”.

Em estado de elevação incomensurável, regressei à minha casa. Ao meditar, naquela mesma noite, alcancei o ardente ideal de minha vida. Agora desfruto incessantemente da pensão espiritual. Nunca, desde aquele dia, o Criador Beatífico permaneceu oculto a meus olhos, por trás do véu da Ilusão.

A face de Pranabananda estava irradiante de luz divina. A paz de um outro mundo penetrou em meu coração; todo o medo voara para longe. O santo fez ainda outra confidência:

– Alguns meses depois voltei a visitar Láhiri Mahásaya e tentei lhe agradecer por me haver concedido a dádiva infinita. Na mesma ocasião, mencionei outro problema.

– Guru divino, não posso mais trabalhar no escritório. Por favor, liberte-me. Brahma tem-me constantemente inebriado.

Peça sua aposentadoria à estrada de ferro.

Que razão invocarei, contando poucos anos de serviço? Diga o que sente.

No dia seguinte, fiz o requerimento. O médico procurou conhecer que fundamento havia para a solicitação prematura.

– Durante meu trabalho, experimento uma sensação avassalante que sobe pela espinha dorsal.[28], penetra meu corpo inteiro e me incapacita para o cumprimento de meus deveres[29].

28 Em meditação profunda, a primeira experiência do Espírito é percebida no altar da espinha, e depois, no cérebro. Beatitude torrencial avassala o iogue, mas ele aprende a controlar suas manifestações exteriores.

29 Na época de nosso encontro, Pranabananda era, de fato, um mestre completamente iluminado. Mas os últimos anos de sua vida profissional haviam ocorrido muito antes, quando ainda não se estabelecera irrevogavelmente em nirbikálpa samádhi (ver capítulos 26 e 43). Nesse perfeito e imutável estado de consciência, um iogue não encontra dificuldade em desempenhar seus deveres mundanos. Depois de sua aposentadoria, Pranabananda escreveu Pranab Gíta, profundo comentário ao Bhágavad Gíta, publicado em hindi e bengali. O poder de aparecer em mais de um corpo é um siddhi (poder iogue) mencionado nos Yoga Surras de Patânjali (cap. 24). É o fenômeno da bilocação, registrado na vida de muitos santos, através dos séculos. A. P. Schimberg, em “A História de Tereza Neumann” (Bruce Public Co.), descreve diversas ocasiões em que a grande santa católica contemporânea apareceu a pessoas distantes que necessitavam de sua ajuda, e com elas conversou.

“Sem mais perguntas, o médico recomendou-me calorosamente para a aposentadoria. Recebi-a sem demora. Sei que a vontade divina de Láhiri Mahásaya operou através do médico e dos chefes da estrada de ferro, seu pai inclusive. Eles obedeceram automaticamente à direção espiritual do grande guru e me deixaram livre para uma vida de ininterrupta comunhão com o Bem-Amado”.

Depois desta extraordinária revelação, Swâmi Pranabananda mergulhou em um de seus longos silêncios. Despedi-me, tocando-lhe os pés com reverência, e ele me deu sua bênção.

– Sua vida pertence à senda de renúncia e de ioga. Ainda o verei outra vez, junto a seu pai, futuramente. – Os anos trouxeram a confirmação destas duas predições[30].

30 Ver capítulo 27.

Kedar Nath Babu caminhava a meu lado na escuridão crescente. Entreguei-lhe a carta de meu pai e meu companheiro a leu sob um lampião da rua.

– Seu pai me sugere que aceite um emprego no escritório da estrada de ferro, em Calcutá. Que agradável, olhar para o futuro aguardando pelo menos uma das aposentadorias de que goza Swâmi Pranabananda! Mas é impossível; não posso deixar Benares. Infelizmente, ainda não tenho dois corpos!

Capítulo 4

Minha fuga interrompida rumo ao Himalaia.

Abandone a sala de aula arranjando algum pretexto fútil e alugue um coche. Pare na travessa lateral onde ninguém de minha casa o possa ver.

Estas foram minhas instruções finais a Amar Mitter, um colega de escola secundária que planejara me acompanhar ao Himalaia. Havíamos escolhido o dia seguinte para empreender a fuga. Era necessário tomar precauções, pois meu irmão Ananta exercia vigilância rigorosa. Ele decidira frustrar os planos de fuga que suspeitava predominarem em minha mente. O amuleto, como um fermento espiritual, trabalhava silenciosamente em meu interior. Eu esperava encontrar, em meio às neves do Himalaia, o mestre cuja face muitas vezes me aparecia em visões.

Minha família estava morando em Calcutá, para onde papai fora definitivamente transferido. Em obediência ao costume patriarcal hindu, Ananta trouxera sua noiva para viver em nossa casa, agora em Gurpar Road n.4. Ali, num quartinho do sótão, eu me entregava a meditações diárias, preparando minha mente para a busca divina.

A memorável manhã chegou com uma chuva pouco auspiciosa. Ouvindo as rodas do coche de Amar, na rua, embrulhei precipitadamente um cobertor, um par de sandálias, duas tangas, um rosário, a fotografia de Láhiri Mahásaya e um exemplar do Bhágavad Gíta. Atirei este embrulho pela janela de meu quarto no segundo andar. Desci as escadas correndo e passei por meu tio que comprava peixe na porta.

– Que excitação é essa? – Seu olhar me examinou cheio de suspeita.

Eu lhe sorri com ar inocente e avancei para a viela. Apanhando meu embrulho, reuni-me a Amar com a cautela de um conspirador. Dirigimo-nos para Chandni Chank, zona comercial da cidade. Durante meses, havíamos economizado o dinheiro de nosso lanche para comprar roupas inglesas. Sabendo que meu esperto irmão desempenharia facilmente o papel de detetive, pensamos iludi-lo, disfarçados em trajes europeus.

Em nosso caminho para a estação, detivemo-nos a fim de que a nós se reunisse meu primo, Jotin Ghosh, a quem eu chamava de Jatinda. Era um novo convertido, suspirando por um guru no Himalaia. Preparamos sua nova roupa e ele a vestiu. ótima camuflagem, pensávamos esperançosos. Uma grande euforia dominava nossos corações.

– Agora só nos faltam sapatos de lona. – Conduzi meus companheiros a uma loja onde estavam expostos calçados com sola de borracha. – Artigos de couro, obtido pela matança de animais, não devem sr usados nesta sagrada viagem. – Detive-me na rua para remover a capa de couro de meu Bhágavad Gíta e as correias de couro de meu sola topee (capacete) de manufatura inglesa.

Na estação, compramos passagens para Burdwan, donde planejávamos baldear para Hardwar, no sopé do Himalaia. Assim que o trem, como nós, se pôs em fuga, dei rédea solta a algumas de minhas gloriosas previsões, antegozando-as.

– Imagine só! – exclamei. – Seremos iniciados pelos mestres e experimentaremos o transe da consciência cósmica. Nossos corpos se carregarão de tal magnetismo que os animais ferozes do Himalaia, ao se aproximarem de nós, ficarão instantaneamente domados. Os tigres não passarão de dóceis gatos caseiros, à espera de nossas carícias.

Este comentário que delineava perspectivas fascinadoras – tanto metafórica quanto literalmente – produziu um sorriso entusiástico em Amar. Jatinda, porém, desviou os olhos e, pela janela, dirigiu-os para a paisagem que fugia.

– Vamos dividir o dinheiro em três partes. – Jatinda quebrou um longo silêncio com esta sugestão. – Cada um de nós deverá comprar sua própria passagem em Burdwan. Assim, ninguém na estação desconfiará de que estamos fugindo juntos.

Sem de nada suspeitar, concordei. Ao anoitecer, nosso trem parou em Burdwan. Jatinda foi ao guichê de passagens; Amar e eu sentamos na plataforma. Esperamos quinze minutos; depois, infrutiferamente, inquirimos sobre seu paradeiro. Procurando em todas as direções, gritávamos o nome de Jatinda com a insistência do terror. Mas ele se esfurnara nos desconhecidos e obscuros arredores da pequena estação.

Fiquei completamente abatido, num estado de choque próximo do torpor. Não acreditava que Deus pudesse abençoar um incidente tão depressivo! Minha romântica fuga em direção a Ele, a primeira que recebera cuidadoso planejamento, redundara num cruel estrago.

– Amar, devemos voltar para casa. – Eu chorava feito criança, O adeus empedernido de Jatinda é um mau presságio. Esta viagem se destina ao fracasso.

– É esse o seu amor a Deus? Você não tem forças para suportar o pequeno teste da traição de um companheiro?

Graças à idéia sugerida por Amar, de que se tratava de uma provação enviada por Deus, meu coração se acalmou. Logo nos refizemos com os famosos doces de Burdwan, sitabhog (manjar para a deusa) e motichur (pepitas de pérola doce). Horas depois, tomamos o trem para Hardwar, via Bareilly. Fazendo a baldeação no dia imediato em Moghul Serai, discutimos um assunto vital enquanto esperávamos na plataforma.

– Amar, poderemos em breve ser interrogados pelos funcionários da estrada de ferro. Não estou subestimando a argúcia de meu irmão! Aconteça o que acontecer, não direi uma só mentira.

– Só lhe peço, Mukunda, que não fale. Não ria e não faça um gesto enquanto eu falar.

Neste momento, um funcionário europeu da estação se aproximou de mim. Ele agitava um telegrama, cujo conteúdo adivinhei imediatamente.

– Estão fugindo de casa, inconformados?

– Não! – Fiquei satisfeito por ele haver escolhido palavras que me permitiram dar-lhe esta resposta enfática. Não era a inconformidade mas a “divina melancolia”a responsável por meu comportamento nada convencional.

O funcionário voltou-se, então, para Amar. O duelo de inteligente subtileza que sustentaram dificilmente me permitiu manter a estóica gravidade aconselhada.

– Onde está o terceiro jovem? – O homem pôs toda autoridade possível em sua voz. – Vamos, diga a verdade.

– Senhor, noto que está usando óculos. Não pode ver que somos apenas dois? – Amar sorriu descaradamente. – Não sou um mágico, não posso tirar da cartola um terceiro rapaz.

O funcionário, visivelmente desconcertado com esta impertinência, procurou atacar outro campo vulnerável.

– Qual é o seu nome?

– Chamam-me de Thomas. Sou filho de mãe inglesa e pai hindu convertido ao cristianismo.

– Qual é o nome de seu amigo?

– Eu o chamo de Thompson.

Nesta altura, minha hilaridade interior atingiu o zênite; sem cerimônia, caminhei para o trem que, providencialmente, dava o apito de partida. Amar veio atrás, acompanhado pelo funcionário, que se tornara crédulo e obsequioso a ponto de nos alojar em um compartimento reservado a europeus. Evidentemente lhe doía ver dois jovens de sangue semi-inglês viajarem numa seção destinada aos nativos. Quando se despediu cortesmente, reclinei-me para trás, no assento, em gargalhadas incontroláveis. O semblante de Amar expressava incontida satisfação por haver logrado um funcionário europeu veterano.

Na plataforma, eu dera um jeito de ler o telegrama. Era de meu irmão Ananta e dizia: “Três jovens bengalis, vestidos à inglesa, fogem de casa, direção Hardwar, via Moghul Serai. Favor detê-los até minha chegada. Ampla recompensa por seus serviços.”

– Amar, eu o preveni que não deixasse em sua casa itinerários com horas assinaladas. – Eu o reprovava.

– Meu irmão deve ter encontrado algum, lá. Meu amigo reconheceu sua falta, como um cordeiro. Paramos brevemente em Bareilly, onde Dwarka Prasad[31] esperava por nós com um telegrama de Ananta. Dwarka tentou valentemente nos deter. Convenci-o de que nossa fuga não fora empreendida por motivos fúteis. Como já o fizera em ocasião anterior, Dwarka recusou meu convite de partir para o Himalaia.

31 Mencionado no capítulo 2.

Enquanto, à noite, nosso trem se detinha em certa estação e eu dormitava, Amar foi acordado por outro funcionário inquiridor. Também este foi vítima do híbrido sortilégio de “Thomas e Thompson”. O trem nos levou a uma chegada triunfal em Hardwar, ao despontar a aurora. As majestosas montanhas assomavam convidativas à distância. Como um raio, atravessamos a estação e nos misturamos à multidão citadina, respirando nossa liberdade. Nosso primeiro ato foi mudar de roupa, envergando trajes indianos, pois Ananta, de algum modo, descobrira nosso disfarce europeu. Uma premonição de captura me obcecava.

Reconhecendo que seria prudente partir de Hardwar, sem demora, compramos passagens para prosseguir em direção ao norte, até Rishikesh, terra santificada pelos pés de muitos mestres, desde épocas remotas. Eu ia subir ao trem, enquanto Amar se atrasava na plataforma. Acabou detido abruptamente pelo grito de um policial. Este indesejado vigilante escoltou-nos até a delegacia de polícia e confiscou nosso dinheiro. Cortesmente explicou que era seu dever reter-nos até a chegada de meu irmão mais velho.

Ao saber que nosso destino de fugitivos era o Himalaia, o oficial relatou uma estranha história.

– Vejo que são alucinados por santos! Nunca, porém, encontrarão maior homem de Deus do que um santo com quem estive ainda ontem. Um irmão de armas e eu o vimos pela primeira vez há cinco dias atrás. Patrulhávamos o Ganges, em caçada feroz a um assassino. Tínhamos ordem de capturá-lo, vivo ou morto. Sabia-se que usava disfarce de sádhu para roubar os peregrinos. A pouca distância de nós, descobrimos uma figura cujos sinais coincidiam com a descrição do criminoso. Ele não tomou conhecimento de nossa ordem de “alto!”; corremos para subjugá-lo. Ao chegar por trás dele, brandi minha machadinha com tremenda força; o braço direito do homem foi quase completamente decepado.

Sem proferir um grito, ou olhar sequer a horrorosa ferida, o desconhecido continuou, para assombro nosso, em seu passo veloz, Quando saltamos à sua frente, ele disse em voz mansa:

– Não sou o assassino que procuram.

Fiquei profundamente mortificado ao ver que havia ferido um sábio de olhar divino. Prostrei-me a seus pés, implorei seu perdão, ofereci-lhe meu turbante para estancar o sangue que jorrava em abundância.

– Filho, foi um engano compreensível de sua parte. – O santo olhou-me com bondade. – Siga seu caminho e não se reprove. A Mãe Divina toma conta de mim. – Ele agarrou o braço pendente, apertou-o em seu lugar junto ao ombro e – 6 maravilha! – o braço aderiu e o sangue parou de jorrar.

– Volte dentro de três dias e me verá completamente curado, ali,. sob aquela árvore. Assim não sentirá mais remorso.

Ontem, meu companheiro e eu fomos ansiosamente ao lugar designado. O sádhu achava-se ali e permitiu-nos examinar seu braço. Nenhuma cicatriz era visível nem qualquer vestígio de ferimento!

– Vou para as solidões himalaicas, via Rishikesh. – O sádhu nos abençoou e partiu com pressa. Sinto que minha vida ganhou elevação espiritual, graças à sua santidade.

O policial concluiu seu relato com piedosa jaculatória; aquela experiência, sem dúvida nenhuma, o havia comovido e transportado a profundezas além das suas habituais. Com expressivo gesto, ele me estendeu um recorte de jornal sobre o milagre. No estilo sensacionalista de certos periódicos (que infelizmente não faltam, mesmo na índia!), a versão do repórter aparecia bastante exagerada; informava que o sádhu quase fora decapitado!

Amar e eu lamentamos não conhecer o grande iogue que perdoara seu perseguidor à maneira de Cristo. A Índia, materialmente pobre durante os dois últimos séculos, possui, entretanto, um lastro inesgotável de riqueza divina; “arranha-céus”espirituais podem ser encontrados, às vezes, à beira do caminho, até mesmo por homens mundanos como este policial.

Agradecemos o oficial por ter aliviado nosso tédio com sua história maravilhosa. Ele provavelmente tentava insinuar ser mais afortunado que nós; sem qualquer esforço, encontrara um santo iluminado; nossa veemente busca terminara, não aos pés de um mestre, mas em mísera delegacia de polícia.

Tão perto do Himalaia e, contudo, em nosso cativeiro, tão longe, confessei a Amar que eu sentia redobrar-se meu impulso de buscar a liberdade.

Vamos escapar assim que a oportunidade se ofereça. Podemos ir a pé à sagrada Rishikesh. – Sorri para lhe dar coragem.

Meu companheiro, porém, tornara-se pessimista assim que a firme escora de nosso dinheiro nos foi arrancada.

– Se nos embrenharmos a pé na perigosa jângal, terminaremos, não na cidade dos santos, mas no estômago dos tigres!

Três dias depois, Ananta e o irmão de Amar chegaram. Amar saudou o irmão com afetuoso alívio. Eu, permaneci. inconciliável; Ananta só obteve de mim severa repreensão.

– Compreendo como se sente – disse meu irmão com brandura.

Tudo quanto lhe peço é que me acompanhe a Benares para conhecer certo sábio e depois a Calcutá para visitar por alguns dias nosso aflito pai. Então, poderá reencetar sua busca de um mestre neste lugar.

Amar interveio neste ponto da conversação para declarar que não tinha qualquer intenção de volver a Hardwar comigo. Ele estava gozando o calor da família. Eu, porém, tinha certeza de que jamais abandonaria minha busca até chegar ao guru.

Nosso grupo viajou de trem para Benares. Ali tive resposta singular e instantânea a uma prece minha.

Um plano habilidoso fora arquitetado, previamente, por Ananta. Antes de ir ao meu encontro em Hardwar, ele se detivera em Benares para pedir a uma autoridade em matéria de Escrituras sagradas, a concessão de uma entrevista, mais tarde, quando voltasse comigo. O erudito e seu filho prometeram a Ananta que tentariam dissuadir-me de vir a ser um sannyási[32].

32 Literalmente, “renunciado; da raiz do verbo, sânscrito “pôr de lado”, “rejeitar”.

Ananta levou-me a essa casa. O filho, um jovem de maneiras exageradas, cumprimentou-me no pátio. A seguir, empenhou-se em longo discurso filosófico. Pretendendo conhecer por clarividência o meu futuro, queria lançar ao descrédito minha idéia de seguir a vida monástica.

Você terá dissabores constantes e nunca achará Deus, se insistir em desertar de suas responsabilidades ordinárias. Não pode queimar seu passaporte do karma[33] fugindo às experiências no mundo.

33 Efeitos de ações passadas, nesta vida ou em existências anteriores; do sânscrito kri, “fazer”.

Palavras imortais do Bhágavad Gíta[34] subiram a meus lábios em resposta: “Até mesmo alguém com o pior dos karmas, se em Mim medita sem pausa, queima os efeitos de suas más ações. Transforma-se em um ser de alma excelsa e atinge em breve a imorredoura paz. Tem certeza disto: o devoto que confia em Mim, jamais perece!

34 IX, 30-31.

Os prognósticos forçados do jovem não abalaram minha confiança. Com todo o fervor de meu coração, orei a Deus silenciosamente:

Por favor, tira-me deste embaraço e responde-me, aqui mesmo, se Tu desejas que eu leve uma vida de renúncia ou a de um homem mundano!

Notei um sádhu de nobre aparência, além dos limites da propriedade do erudito. Evidentemente ouvira algo da animada conversação entre mim e o pretenso clarividente, pois o desconhecido me chamou a seu lado. Um imenso poder fluía de seus olhos tranqüilos.

– Filho, não dê atenção a esse ignorante. Em resposta à sua prece, o Senhor me encarrega de lhe assegurar que seu caminho nesta vida é unicamente o da renúncia.

Com espanto e gratidão, sorri feliz ao receber esta mensagem decisiva.

– Afaste-se desse homem! – O ignorante chamava por mim, do pátio. Meu santo guia levantou a mão para me abençoar e afastou-se lentamente.

– Este sádhu é, como você, um doído varrido. – Era o encanecido erudito quem fazia esta encantadora observação. Ele e o filho me olhavam com ar lúgubre. – Ouvi dizer que também ele abandonou seu lar por uma vaga procura de Deus.

Voltei-lhe as costas. Disse a Ananta que eu não estava disposto a sustentar mais discussões com os donos da casa. Meu irmão, desencorajado, concordou em partir imediatamente; embarcamos de trem para Calcutá. –

Senhor detetive, como descobriu que eu fugira com dois companheiros? – Dei curso à minha viva curiosidade interrogando Ananta em nossa viagem para casa, Ele sorriu maliciosamente.

– Em sua escola, descobri que Amar deixara a sala de aula sem regressar. Na manhã seguinte, fui à casa dele e achei um itinerário de trens com horários assinalados. O pai de Amar estava de saída e dizia ao cocheiro: “Meu filho não irá à escola comigo esta manhã; ele desapareceu.”’ Respondia o empregado: “Ouvi um cocheiro, meu colega, dizer que seu filho e dois companheiros, vestidos com trajes europeus, tomaram o trem na estação de Howrah e presentearam com sapatos de couro o condutor dos cavalos.”Assim obtive três pistas: o horário, o trio de rapazes e a roupa inglesa.

Eu ouvia as revelações de Ananta com um misto de bom humor e de vergonha. Que mal endereçada fora nossa generosidade para com o cocheiro!

Naturalmente, corri ao telégrafo para enviar mensagens aos chefes de estação em todas as cidades que Amar assinalara no horário de trens. Ele havia sublinhado Bareilly; telegrafei a seu amigo Dwarka, lá residente. Procedendo a um inquérito em nossa vizinhança em Calcutá, soube que o primo Jatinda estivera ausente uma noite mas voltara para casa na manhã seguinte, vestido à européia. Convidei-o para sair e jantar comigo. Aceitou, desarmado por minha atitude amigável. No caminho, levei-o, sem que suspeitasse, à delegacia de polícia. Jatinda foi cercado por diversos policiais que eu previamente escolhera por seu aspecto feroz. Sob aqueles olhares ameaçadores, nosso primo concordou em explicar sua misteriosa conduta:

– Parti para o Himalaia, mentalmente boiando num mar de alegria. Vibrava, inspirado, diante da perspectiva de encontrar os mestres. Mas, quando Mukunda disse: ‘durante nossos êxtases nas cavernas do Himalaia, os tigres ficarão fascinados e sentarão à nossa volta como gatinhos mansos’, minha efervescência gelou; gotículas de suor brotaram em minha testa. ‘E se não for assim?’ pensei. ‘Se a natureza carnívora dos tigres não se modificar pelo poder de nosso transe espiritual, seremos tratados com a delicadeza dos gatos domésticos?’ Em minha imaginação, já me via hóspede compulsório do estômago de algum tigre – lá não entrando de uma vez, de corpo inteiro, mas a prestações, em diversas postas!

Minha raiva contra o desaparecido Jatinda evaporou-se em riso. A hilariante explicação, dada no trem, valia por toda a angústia que ele me causara. Devo confessar que senti leve satisfação: Jatinda, também ele, não escapara de um encontro com a polícia!

– Ananta[35], você nasceu um cão policial autêntico! – Em meu divertimento havia algo de exasperação. – Direi a jatinha que estou contente por sua conduta se dever, não a disposições traiçoeiras como parecia, mas apenas ao prudente instinto de conservação!

35 Sempre o chamei de Anantada. Da é sufixo de respeito, acrescentado ao nome do irmão mais velho por todos os seus outros irmãos e irmãs.

Em nosso lar em Calcutá, papai enternecidamente comovido, suplicou-me conter meus pés errantes, pelo menos até completar os estudos secundários. Durante minha ausência, ele carinhosamente amadurecera um plano, contratando um santo versado nas Escrituras, Swâmi Kebalananda[36], para vir com regularidade à nossa casa.

36 Na época de nosso encontro, Kebalananda ainda não havia ingressado na Ordem dos Swamis e seu nome mais conhecido era Shastri Mehásaya. Para evitar confusão com o nome de Láhiri Mahásaya e do Mestre Mahásaya (capítulo 9), quando me refiro a meu professor particular de sânscrito, uso seu último nome, o monástico, de Swâmi Kebalananda. Sua biografia foi recentemente publicada em bengali. Nascido no distrito de Khulna, em Bengala, em 1863, Kebalananda abandonou o corpo em Benares com 68 anos. Seu nome de família foi Ashutosh Chatterji.

– Este sábio será seu instrutor de sânscrito – anunciou meu pai, cheio de confiança.

Papai nutria a esperança de satisfazer meus anseios espirituais com instruções de um filósofo erudito. Mas, num baralho sutil, as cartas logo mostraram outro jogo: meu novo mestre, longe de oferecer conhecimentos cheios de aridez intelectual, converteu-se em um abanador para avivar, entre as cinzas, as brasas de minha aspiração por Deus. Meu pai ignorava que Swâmi Kebalananda era discípulo de Láhiri Mabásaya, e um dos de mais elevada espiritualidade. O incomparável guru tivera milhares de discípulos, silenciosamente atraídos pelo poder irresistível de seu divino magnetismo. Eu soube, mais tarde, que Láhiri Mabásaya muitas vezes definira Kebalananda como um ríshi ou sábio iluminado.

O rosto formoso de meu instrutor tinha, por moldura, barba e cabeleira abundantemente encaracoladas. Seus negros olhos abriam-se sinceros, com a transparência de um olhar de criança. Todos os movimentos de seu corpo delgado revelavam a deliberação em repouso. Sempre cortês e pleno de bondade, estabelecera-se firmemente na consciência do infinito. Muitas de nossas horas mais felizes foram passadas, juntos, em profunda meditação de Kriya.

Kebalananda era notável autoridade nos antigos shastras ou livros sagrados; conquistara, por sua erudição, o título de Shastri Mahásaya, de uso comum ao cumprimentá-lo. Meu progresso, entretanto, na disciplina do sânscrito, era quase nulo. Eu aproveitava toda oportunidade para desertar da gramática prosaica e conversar sobre ioga e Láhiri Mahásaya. Um dia, tive a honra de ouvir meu professor falar de seu convívio pessoal com o mestre.

– Tive a rara felicidade de permanecer ao lado do mestre durante dez anos. Seu lar em Benares constituía a meta de minha peregrinação todas as noites. O guru encontrava-se sempre em sua pequena sala de recepção no andar térreo. Ao sentar-se em posição de lótus num banco de madeira sem espaldar, seus discípulos formavam uma semiguirlanda a seus pés. Seus olhos cintilavam e bailavam com alegria divina[37]. Conservava-os semicerrados, contemplando, através do olho telescópico interior, a esfera de beatitude perene. Raras vezes se alongava ao falar. Ocasionalmente seu olhar focalizava um estudante precisando de ajuda; então, palavras impregnadas de vibrações curativas e consoladoras fluíam numa avalanche de luz.

37 Porque a verdadeira natureza de Deus é Beatitude, o devoto, sintonizado com Ele, experimenta uma inata e ilimitada alegria. “A primeira das paixões da alma e da vontade é a alegria”- S. João da Cruz, autor de Subida ao Monte Carmelo. Um de seus místicos aforismas: “Para chegar Àquilo que não se tem, é preciso tomar o caminho que não se tem; para atingir Aquilo que não se é, necessário se faz tomar o caminho onde não se é; para obter o Tudo, é preciso abandonar tudo.”0 corpo do grande santo cristão, morto em 1591, exumado em 1859, achava-se em estado de incorruptibilidade.

Paz indescritível florescia dentro de mim ao simples olhar do mestre. Sua fragrância saturava-me como se viesse de um lótus do infinito. Estar com ele, mesmo sem trocar uma palavra durante muitos dias, era uma experiência que alterava todo o meu ser. Se alguma barreira invisível se interpunha no caminho de minha concentração, eu ia meditar aos pés do guru. Ali atingia facilmente estados de consciência sutilíssimos. Tais percepções me escapavam em presença de instrutores menores. O mestre era um templo vivente de Deus, cujas portas secretas se abriam para todos os discípulos através da devoção.

Láhiri Maliásaya não era um intérprete livresco das Escrituras. Sem esforço algum, ele mergulhava na “Biblioteca Divina”. Da fonte de sua onisciência, manavam os pensamentos como repuxos orvalhantes, e as palavras, como espumas. Possuía a chave maravilhosa que descerrava a profunda ciência filosófica, escondida nos Vedas[38] há milênios atrás. Se lhe pediam que explicasse os diferentes planos de consciência mencionados nos textos arcaicos, acedia sorrindo.

38 Dos quatro antigos Vedas subsistem cerca de 100 livros canônicos. Emerson em seu Diário, rendeu este tributo ao pensamento védico: “Ele é sublime como o calor e a noite, e um oceano sem pulsação. Contém todos os sentimentos religiosos, todas as grandes éticas que gozam da intimidade de cada espírito poético e nobre, alternativamente… Inútil é pôr de lado este livro; se me confio aos bosques ou a um barco no lago, a Natureza me converte logo num Brilunim: pobreza eterna, equilíbrio perpétuo, poder insondável, silêncio imperturbável. Este é o credo da Natureza. – Paz – ela me diz – e pureza, e abandono absoluto: estas panacéias expiam todo o pecado e o conduzem à beatitude dos Oito Deuses”

– Atingirei esses estados e simultaneamente lhes direi o que estou percebendo. – Era, assim, diametralmente oposto aos professores que aprendem as Escrituras de memória e depois explicam abstrações das quais não têm experiência.

– Por favor, explique os versículos sagrados à medida que o significado deles lhe ocorrer. – O taciturno guru costumava dar esta ordem a um discípulo próximo. – Guidarei seus pensamentos para que faça a interpretação correta. – Desta maneira, muitas das percepções de Láhiri Mahásaya vieram a ser registradas, acrescidas de volumosos comentários feitos por vários estudantes.

O mestre jamais ensinou a acreditar servilmente. ‘Palavras são apenas conchas’, dizia ele. ‘Adquira convicção da presença de Deus através de seu próprio contato com a beatitude, ao meditar.’

Fosse qual fosse o problema do discípulo, o guru aconselhava Kriya Yoga como solução.

– A chave de ioga não perderá sua eficiência quando eu não mais estiver presente no corpo para guiar meus discípulos. É uma técnica que não pode ser encadernada, arquivada e esquecida, à maneira das inspirações teóricas. Continuem sem pausas na senda de libertação através de Kriya, cujos poderes residem em sua prática.

Eu próprio considero Kriya o mais eficiente recurso de salvação, pois o homem aplica seu esforço pessoal na busca do Infinito. – E Kebalananda gravemente concluiu seu testemunho: – Por meio de seu uso, o Deus Onipotente, oculto em todos os homens, tornou-se uma encarnação visível em Láhiri Mahásaya e em certo número de seus discípulos.

Um milagre crístico, realizado por Láhiri Mahásaya, ocorreu em presença de Kebalananda. Meu santo tutor, um dia, repetiu a história, afastando os olhos dos livros de sânscrito abertos sobre a mesa.

– Um discípulo cego, Ramu, despertou minha compaixão ativa. Por que não teria luz em seus olhos, quando servia com tanta fidelidade nosso mestre, em quem a Divindade resplandecia plenamente? Certa manhã, tratei de falar com Ramu, mas ele se sentava pacientemente, durante horas, refrescando o ar em torno de seu guru com um punkha, abanador feito à mão, de folhas de palmeira. Quando afinal o devoto deixou a habitação, eu o segui.

Ramu, há quanto tempo você é cego?

Desde o nascimento, senhor! Nunca meus olhos foram abençoados com um vislumbre do sol.

– Nosso guru onipotente pode ajudá-lo. Suplique-lhe, por favor.

No dia seguinte, Ramu. aproximou-se timidamente de Láhiri Mahásaya. O discípulo sentia quase vergonha de pedir que uma riqueza física fosse acrescentada à sua superabundância espiritual.

– Suplico a meu mestre, dentro de quem está Aquele que ilumina o cosmos: conduza a Sua luz aos meus olhos para que eu possa perceber o tênue resplendor do sol.

– Ramu, alguém o induziu a colocar-me em posição difícil. Eu não tenho o poder de curar.

Senhor, o Infinito dentro do guru pode realmente curar.

Isso é bem diferente, Ramu. Para Deus não há limites! Ele, que acende as estrelas e as células da carne com misteriosa refulgência de vida, pode trazer-lhe, seguramente, o brilho da visão aos olhos.

– O mestre tocou a testa de Ramu no ponto médio entre as sobrancelhas[39].

39 Sede do “olho espiritual”. Ao morrer, a consciência do homem é atraída para este ponto sagrado, como o demonstram os olhos, erguidos para cima, dos mortos.

– Conserve sua mente concentrada aí e cante com freqüência o nome do profeta Rama[40] durante sete dias. O esplendor do sol terá uma aurora especial para você.

40 Principal figura sagrada de Ramayâna, a epopéia sânscrita.

E, de fato, ao findar a semana, aconteceu! Pela primeira vez em sua vida, Ramu contemplou a bela face da natureza. Deus Onisciente havia, sem erro, induzido o discípulo a repetir com fé o nome de Rama, por ele adorado acima de todos os santos. A fé de Ramu era o solo devocional já arado, onde germinou a poderosa semente da cura perrnanente, lançada por seu guru.

– Kebalananda guardou silêncio por um momento e depois prestou novo tributo a seu guru.

Era evidente, em todos os milagres realizados por Láhiri Mahásaya, que ele jamais consentia ao “ego[41] considerar-se a força causal. Por sua perfeita submissão ao Supremo Poder de Curar, o mestre permitia que este fluísse livremente através de si. Os numerosos corpos, que foram espetacularmente curados através de Láhiri Mahásaya, tiveram, um dia, de alimentar as fogueiras de cremação. Mas o silencioso despertar de espíritos que ele operou, os discípulos crísticos por ele formados, são seus milagres imperecíveis. Nunca cheguei a ser um erudito em sânscrito; Kebalananda me ensinou uma sintaxe mais divina.

41 O princípio do “ego”, ahânkara (literalmente, “eu faço”) é a raiz do dualismo ou da aparente separação entre o homem e seu Criador. Ahânkara coloca os seres humanos sob o domínio de máya (ilusão cósmica); o que é subjetivo (ego) apresenta-se falsamente como objetivo; as criaturas supõem que são as criadoras (ver capítulos 5 e 30) “Nada do que faço sou eu quem faz!” Assim pensará quem se atém à verdade das verdades… Sempre seguro de que “este é o mundo dos sentidos que brincam com as sensações” (V, 8-9). “Realmente vê quem percebe que os trabalhos são praxe no mundo da Natureza para exercício da Alma; quem, apesar de agir, não é o agente.” (XIII, 29). “Embora Eu seja sem nascimento e sem morte, indestrutível, o Senhor de todas as coisas vivas, nem por isso deixo -pelo poder de Máya, pela magia que imprimo às flutuantes formas da Natureza, a vastidão primeva – de nascer, e morrer, e tornar a nascer.” (IV, 6) “Difícil é ultrapassar o véu divino das várias aparências que Me escondem; contudo, os que Me adoram o traspassam para chegar além.” (VII, 14)
Bhágavad Gíta


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