Livro ‘A cabana’ por William P. Young

Livro 'A cabana' por William P. Young
“Esta história deve ser lida como se fosse uma oração – a melhor forma de oração, cheia de ternura, amor, transparência e surpresas. Se você tiver que escolher apenas um livro de ficção para ler este ano, leia A cabana.” - Michael W. Smith
Publicado nos Estados Unidos por uma editora pequena, A cabana se revelou um desses livros raros que, através do entusiasmo e da indicação dos leitores, se torna um fenômeno de público – já são quase dois milhões de exemplares vendidos – e de imprensa. 
Durante uma viagem de fim de semana, a filha mais nova de Mack Allen Phillips é raptada e evidências de que ela foi brutalmente assassinada...
Editora : Editora Arqueiro; 1ª edição (7 agosto 2008)
Idioma: : Português
Capa comum : 240 páginas
ISBN-10 : 8599296361
ISBN-13 : 978-8599296363
Dimensões : 22.8 x 15.6 x 1.6 cm

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Leia trecho do livro

WILLIAM P. YOUNG

com a colaboração de
Wayne Jacobsen e Brad Cummings

GERALDO JORDÃO PEREIRA (1938-2008) começou sua carreira aos 17 anos, quando foi trabalhar com seu pai, o célebre editor José Olympio, publicando obras marcantes como O menino do dedo verde, de Maurice Druon, e Minha vida, de Charles Chaplin.

Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma nova geração de leitores e acabou criando um dos catálogos infantis mais premiados do Brasil. Em 1992, fugindo de sua linha editorial, lançou Muitas vidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro que deu origem à Editora Sextante.

Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antes mesmo de ele ser lançado nos Estados Unidos. A aposta em ficção, que não era o foco da Sextante, foi certeira: o título se transformou em um dos maiores fenômenos editoriais de todos os tempos.

Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o próximo, Geraldo desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram sua grande paixão.

Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez mais acessíveis e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma homenagem a esta figura extraordinária, capaz de enxergar mais além, mirar nas coisas verdadeiramente importantes e não perder o idealismo e a esperança diante dos desafios e contratempos da vida.

ESTA HISTÓRIA FOI ESCRITA PARA MEUS FILHOS
Chad – o Profundo Gentil,
Nicholas – o Explorador Sensível,
Andrew – o Afeto Generoso,
Amy – a Alegre Conhecedora,
Alexandra (Lexi) – o Poder Luminoso,
Matthew – o Belo Prodígio,

E DEDICADA EM PRIMEIRO LUGAR A Kim, minha amada – obrigado por salvar minha vida –,

E EM SEGUNDO A
“…todos nós, falhos, que acreditamos que o Amor governa. Levantemo-nos e deixemos que ele brilhe”.

PREFÁCIO

Quem não duvidaria ao ouvir um homem afirmar que passou um fim de semana inteiro com Deus e, ainda mais, em uma cabana? Principalmente naquela cabana.

Conheço Mack há pouco mais de 20 anos, desde o dia em que nós dois fomos à casa de um vizinho para ajudá-lo a embalar feno para suas poucas vacas. A partir de então a gente se encontra compartilhando um café – ou, para mim, um chá tailandês superquente, com soja. Nossas conversas nos dão um prazer profundo e são sempre salpicadas de muito riso e de vez em quando de uma ou duas lágrimas. Francamente, quanto mais velhos ficamos, mais a gente se dá bem, se é que você me entende.

O nome completo dele é Mackenzie Allen Phillips, mas a maioria das pessoas o chama de Allen. É uma tradição de família: todos os homens têm o primeiro nome igual, mas são conhecidos pelo nome do meio, provavelmente para evitar a ostentação do I, II e III ou Júnior e Sênior. Assim, ele, o avô, o pai e agora o filho mais velho têm o nome de Mackenzie, mas só Nan, a mulher dele, e os amigos íntimos o chamam de Mack.

Ele nasceu em uma fazenda do Meio-Oeste, numa família irlandesa-americana de mãos calejadas e regras rigorosas. Ainda que aparentemente religioso e exageradamente rígido, seu pai bebia muito, sobretudo quando a chuva não vinha ou quando vinha cedo demais, e quase sempre entre uma coisa e outra. Mack nunca fala muito sobre o pai, mas quando o menciona a emoção abandona seu rosto, como se fosse uma maré vazante, deixando seus olhos sombrios e sem vida. Pelo pouco que Mack me contou, sei que seu pai não era o tipo de alcoólatra que cai num sono rápido e feliz, e sim um bêbado perverso que batia na mulher e depois pedia perdão a Deus.

A coisa chegou a tal ponto que, aos 13 anos e com certa relutância, Mack abriu o coração para um líder da igreja durante um encontro de jovens. Dominado pelo clima do momento, Mack confessou chorando que nunca fizera nada para ajudar a mãe nas várias vezes em que testemunhara o pai bêbado lhe dar uma surra até deixá-la inconsciente. O que Mack não pensou foi que seu confessor frequentava a mesma igreja que seu pai. Quando chegou em casa, o pai o esperava na varanda e a mãe e as irmãs não estavam. Mais tarde, Mack ficou sabendo que elas tinham sido mandadas à casa da tia May para que o pai pudesse ter liberdade para dar ao filho rebelde uma lição inesquecível. Durante quase dois dias, amarrado ao grande carvalho nos fundos da casa, ele foi castigado com um cinto e com versículos da Bíblia todas as vezes que o pai acordava de sua bebedeira e largava a garrafa.

Duas semanas depois, quando enfim conseguiu ficar em pé, Mack simplesmente se levantou e foi embora de casa. Mas antes de partir colocou veneno de rato em cada garrafa de bebida que conseguiu encontrar na fazenda. Depois desenterrou de perto da latrina externa a pequena lata onde guardava todos os seus tesouros: uma foto da família em que o pai estava meio afastado, uma figurinha de beisebol do Luke Easter de 1950, uma garrafinha com mais ou menos 30 ml de Ma Griffe (o único perfume que sua mãe havia usado), um carretel de linha e duas agulhas, um pequeno jato F-86 da Força Aérea americana em metal fundido e todas as economias de sua vida: 15 dólares e 13 centavos. Esgueirou-se pela sala e enfiou um bilhete debaixo do travesseiro da mãe, enquanto o pai roncava, curtindo mais um porre. O bilhete dizia simplesmente: “Um dia espero que você possa me perdoar.” Jurou que nunca mais olharia para trás e não olhou – durante um longo tempo.

Treze anos é muito pouco, porém Mack não tinha muitas opções e se adaptou rapidamente. Ele não fala muito sobre os anos seguintes. A maior parte foi passada fora do país, trabalhando pelo mundo, mandando dinheiro para os avós, que o repassavam à mãe. Acho que num desses países distantes chegou a pegar em armas e participar de algum conflito terrível; desde que o conheço, ele odeia a guerra com um fervor sinistro. Seja lá o que for que tenha acontecido, aos 20 e poucos anos foi parar num seminário na Austrália. Quando Mack se fartou de teologia e filosofia, retornou aos Estados Unidos, fez as pazes com a mãe e as irmãs e se mudou para o Oregon, onde conheceu Nannete A. Samuelson e se casou com ela.

Neste mundo de faladores, Mack é pensador e fazedor. Não diz muita coisa, a não ser que alguém pergunte, o que pouca gente faz. Quando fala, dá a impressão de ser uma espécie de alienígena que vê a paisagem das idéias e experiências humanas de modo diferente de todas as outras pessoas.

O que acontece é que as coisas que ele diz causam um certo desconforto em um mundo onde a maioria das pessoas prefere escutar o que está acostumada a ouvir, o que freqüentemente não é grande coisa. Os que o conhecem geralmente gostam muito de Mack, desde que ele mantenha guardados seus pensamentos. Porque as coisas que Mack diz nem sempre deixam as pessoas muito satisfeitas com elas mesmas.

Uma vez Mack me contou que quando era jovem costumava se abrir com mais liberdade, mas admitiu que a maior parte dessas conversas era um mecanismo de sobrevivência para encobrir suas feridas. Freqüentemente acabava derramando a dor sobre quem estivesse por perto. Disse que tinha prazer em apontar as falhas das pessoas e humilhá-las para manter seu sentimento de falso poder e controle. Nada muito elogiável.

Enquanto escrevo estas palavras, reflito sobre o Mack que sempre conheci: um sujeito bastante comum e certamente sem nada de especial, a não ser para os que o conhecem de verdade. Vai fazer 56 anos e não chama a atenção, está ligeiramente acima do peso, é meio careca, baixo e branco – uma descrição que serve para muitos homens dessas redondezas. Você provavelmente não o notaria numa multidão nem se sentiria incomodado sentado ao seu lado enquanto ele cochila no trem que o leva à cidade para a reunião semanal de vendas. Faz a maior parte de seu trabalho num pequeno escritório em sua casa na Wildcat Road. Vende alguma engenhoca de alta tecnologia que eu não pretendo entender: trecos eletrônicos que de algum modo fazem tudo andar mais depressa, como se a vida já não fosse rápida demais.

Você só percebe como Mack é inteligente quando, por acaso, escuta um diálogo dele com um especialista. Já vivi algumas situações dessas quando a língua falada mal parecia com a nossa e eu me via lutando para captar os conceitos que jorravam como um rio de jóias despencando de uma cachoeira. Ele consegue falar com inteligência sobre quase tudo e, apesar da força de suas convicções, Mack tem um modo gentil e respeitoso que deixa você manter as suas.

Seus assuntos prediletos são Deus, a Criação e por que as pessoas acreditam em determinadas coisas. Seus olhos se iluminam e seu sorriso repuxa os cantos dos lábios para cima. De repente, como se fosse um garotinho, o cansaço se dissolve e ele rejuvenesce, praticamente incapaz de se conter. Mas, ao mesmo tempo, Mack não é muito religioso. Parece ter uma relação de amor e ódio com a religião e talvez até com Deus, que ele imagina como um ser mal-humorado, distante e altivo. Pequenas gotas de sarcasmo escorrem às vezes pelas rachaduras de seu reservatório, como dardos cortantes cheios de veneno. Embora algumas vezes nós dois vamos juntos à mesma igreja, dá para ver que ele não se sente muito à vontade lá.

Mack está casado com Nan há pouco mais de 33 anos – na maior parte do tempo, eles são felizes. Diz que ela salvou sua vida e pagou um preço alto por isso. Por algum motivo que não dá para compreender, Nan parece amá-lo agora mais do que nunca, apesar de eu ter a sensação de que ele a magoou de algum modo terrível nos primeiros anos. Acho que, assim como a maior parte das nossas feridas tem origem em nossos relacionamentos, o mesmo acontece com as curas, e sei que quem olha de fora não percebe essa bênção.

De qualquer modo, Mack se casou. Nan é a argamassa que mantém juntos os ladrilhos de sua família. Enquanto Mack lutou num mundo com muitos tons de cinza, o dela é principalmente preto e branco. O bom senso é tão natural para Nan que ela nem consegue perceber o dom que isso representa. Ter uma família a impediu de realizar seu sonho de ser médica, mas ela se destacou como enfermeira e obteve um reconhecimento considerável em seu trabalho com pacientes terminais com câncer. Enquanto o relacionamento de Mack com Deus é amplo, o de Nan é profundo.

Esse casal contraditório teve cinco filhos de beleza incomum. Mack gosta de dizer que todos pegaram a beleza dele, “… porque Nan ainda conserva a dela”. Dois dos três meninos já saíram de casa: Jon, casado há pouco, trabalha como vendedor de uma empresa local, e Tyler, recém-formado na faculdade, está fazendo mestrado. Josh e uma das duas garotas, Katherine (Kate), cursaram a escola comunitária local. E a que chegou por último é Melissa – ou Missy, como gostávamos de chamá-la. Ela… bem, você vai conhecer melhor alguns dos filhos de Mack ao longo deste livro.

Os últimos anos foram… como é que posso dizer… notavelmente peculiares. Mack mudou: agora está ainda mais diferente e especial. Durante todos os nossos anos de convívio ele sempre foi bastante gentil e amável, mas desde a estada no hospital há três anos ficou… bem, melhor ainda. Tornou-se uma daquelas raras pessoas que estão totalmente à vontade dentro da própria pele. E eu também me sinto mais à vontade perto dele do que de qualquer outra pessoa. Cada vez que nos separamos, tenho a sensação de ter tido a melhor conversa da minha vida, mesmo que eu tenha falado mais. E, a respeito de Deus, Mack não é mais simplesmente amplo. Ficou muito profundo. Mas o mergulho custou caro.

Os dias de hoje são muito diferentes de há sete ou oito anos, quando a Grande Tristeza entrou em sua vida e ele quase parou de falar. Mais ou menos nessa época, e por quase dois anos, nossos encontros foram interrompidos, como se por um acordo mútuo não verbalizado. Eu só via Mack de vez em quando na mercearia ou, mais raramente ainda, na igreja. E, embora em geral trocássemos um abraço educado, não falávamos de muita coisa importante. Para ele era até difícil me encarar. Talvez não quisesse entrar numa conversa capaz de arrancar a casca de seu coração ferido.

Porém tudo isso mudou depois de um acidente feio com… Mas lá vou eu outra vez botando o carro na frente dos bois. Vamos chegar lá no devido tempo. Basta dizer que estes últimos anos parecem ter devolvido a vida de Mack e tirado o fardo da Grande Tristeza. O que aconteceu há três anos mudou totalmente a melodia de sua vida e é uma canção que mal posso esperar para tocar.

Apesar de se comunicar bastante bem verbalmente, Mack não se sente seguro sobre sua capacidade de escrever – algo que ele sabe que me apaixona. Por isso, perguntou se eu escreveria esta história, a história dele “para as crianças e para a Nan”. Queria uma narrativa que o ajudasse a expressar para eles a profundidade de seu amor e que os ajudasse a entender o que havia se passado em seu mundo interior. Você conhece o lugar: é onde você está sozinho – e talvez com Deus, se acredita Nele. É claro que Deus pode estar lá, mesmo que você não acredite. Isso seria bem o jeito de Deus. Não é à toa que ele é chamado de O Grande Intrometido.

A história que você vai ler é resultado de uma luta minha e do Mack para, durante muitos meses, colocar em palavras o que ele viveu. Tem um lado um pouco… digamos, muito fantástico. Não vou julgar se algumas partes são verdadeiras ou não. Prefiro dizer que, mesmo que algumas coisas não possam ser cientificamente provadas, talvez sejam verdadeiras. Mas preciso afirmar honestamente que fazer parte desta história me afetou de modo profundo, desvendando detalhes meus que eu desconhecia. Confesso que desejo desesperadamente que tudo o que Mack me contou seja verdade. Na maioria das vezes eu me sinto próximo dele, mas em outras – quando o mundo visível de concreto e computadores parece ser o real – perco o contato e tenho dúvidas.

Algumas observações finais. Mack gostaria que eu lhe transmitisse o seguinte recado: “Se você odiar esta história, desculpe, ela não foi escrita para você.” Mas eu quero acrescentar: afinal, talvez tenha sido. O que você vai ler é o máximo que Mack consegue recordar daquilo que aconteceu. Esta é a história dele, não a minha. Por isso, nas poucas vezes em que apareço, vou me referir a mim mesmo na terceira pessoa – e do ponto de vista de Mack.

Às vezes a memória pode ser uma companheira enganosa, em especial com relação ao acidente, e eu não ficarei surpreso se, apesar de nosso esforço conjunto para contar a história com exatidão, alguns fatos e lembranças aparecerem distorcidos nestas páginas. Não é intencional. Garanto que as conversas e eventos foram registrados do modo mais fiel possível, de acordo com as lembranças de Mack. Portanto, por favor, tente não se aborrecer com ele. Como você verá, essas coisas não são fáceis de contar.

– WILLIE

Livro 'A cabana' por William P. Young

1

Uma confluência de caminhos

Duas estradas se bifurcaram no meio da minha vida,
Ouvi um sábio dizer.
Peguei a estrada menos usada.
E isso fez toda a diferença cada noite e cada dia.

Larry Norman (pedindo desculpas a Robert Frost)

Março desatou uma torrente de chuvas depois de um inverno de secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá e foi contida por rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do Leste do Oregon. Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali, depois da esquina, o deus do inverno não iria abandonar sem luta seu domínio conquistado com dificuldade. Havia um cobertor de neve recente nas Cascades, e agora a chuva congelava ao bater no chão do lado de fora da casa. Motivo suficiente para Mack se enroscar com um livro e uma sidra quente, aconchegando-se no calor do fogo que estalava na lareira.

Mas, em vez disso, ele passou a maior parte da manhã no computador. Sentado confortavelmente no escritório de casa, usando calças de pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de vendas. Parava com freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina tilintar na janela e vendo o acúmulo vagaroso mas constante do gelo lá fora. Estava se tornando inexoravelmente prisioneiro do gelo em sua própria casa – e com muito prazer.

Há algo agradável nas tempestades que interrompem a rotina. A neve ou a chuva gélida nos liberam subitamente das expectativas, das exigências de resultados e da tirania dos compromissos e dos horários. Ao contrário da doença, esta é uma experiência mais coletiva do que individual. Quase podemos ouvir um suspiro de alívio erguer-se em uníssono na cidade próxima e no campo, onde a natureza interveio para dar uma folga aos exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade são unidos por uma desculpa mútua. De súbito e inesperadamente o coração fica um pouco mais leve. Não serão necessárias desculpas por não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e compartilham a mesma justificativa, e a retirada súbita de qualquer pressão alegra a alma.

É claro que as tempestades também interrompem negócios, e, embora umas poucas empresas tenham um ganho extra, outras perdem dinheiro – o que significa que existem os que não sentem júbilo quando tudo fecha temporariamente. Mas é impossível culpar alguém pela perda de produção ou por não conseguir chegar ao escritório. Mesmo que a situação só dure um ou dois dias, de algum modo cada pessoa se sente dona do seu mundo simplesmente porque aquelas gotinhas de água congelam ao bater no chão.

Até as atividades comuns se tornam extraordinárias. Ações rotineiras se transformam em aventuras e freqüentemente são vivenciadas com maior clareza. No fim da tarde, Mack se encheu de agasalhos e saiu para lutar com os quase 100 metros da comprida entrada de veículos que vai até a caixa de correio. O gelo havia convertido magicamente essa tarefa simples do dia-a-dia numa batalha contra os elementos: levantou o punho em contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio, riu na cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria com seu gesto pouco importava para ele – só o pensamento o fez rir por dentro.

As pelotas de chuva gelada ardiam no rosto e nas mãos enquanto ele subia e descia com cuidado as pequenas ondulações do caminho. Mack se divertia pensando que parecia um marinheiro bêbado indo com cuidado para o próximo boteco. Quando você enfrenta a força de uma tempestade de gelo, não caminha exatamente com ousadia, demonstrando uma confiança incontida. Mack teve de se levantar duas vezes antes de finalmente conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse um amigo desaparecido há muito.

Parou para apreciar a beleza de um mundo engolfado em cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o brilho crescente do fim de tarde. As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com mantos translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar. Era um mundo radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio quase retirou, ainda que por apenas alguns segundos, a Grande Tristeza dos ombros de Mack.

Demorou quase um minuto para arrancar o gelo que havia lacrado a tampa da caixa de correio. A recompensa por seus esforços foi um único envelope onde havia apenas seu primeiro nome escrito à máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e sem remetente. Curioso, ele rasgou a borda do envelope, tarefa que não foi fácil, pois os dedos começavam a se enrijecer de frio. Dando as costas para o vento que lhe tirava o fôlego, finalmente conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo de papel sem dobra. A mensagem datilografada dizia simplesmente:

Mackenzie

Já faz um tempo. Senti sua falta. Estarei na cabana no fim de semana que vem, se você quiser me encontrar.

Papai

Mack se enrijeceu enquanto uma onda de náusea percorria seu corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçava-se para pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela lhe vinha à mente, seus pensamentos não eram agradáveis nem bons. Se aquilo era uma piada de mau gosto, a pessoa realmente havia se superado. E assinar “Papai” só tornava a coisa ainda mais horrenda.

– Idiota – resmungou, pensando em Tony, o carteiro: um italiano exageradamente amigável, com grande coração mas pouco tato. Por que ele entregaria um envelope tão ridículo? Nem estava selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete no bolso do casaco e virou-se para começar a deslizar na direção de casa. Os sopros fortes do vento, que a princípio haviam diminuído de intensidade, agora o empurravam, encurtando o tempo necessário para atravessar a minigeleira que engrossava sob seus pés.

Estava se saindo bem, obrigado, até chegar à entrada de veículos, que se inclinava um pouco para baixo e à esquerda. Sem qualquer esforço ou intenção, começou a aumentar a velocidade, deslizando com sapatos que tinham praticamente tanta firmeza quanto um pato pousando num lago gelado. Com os braços balançando loucamente na esperança de, não sabia como, manter o equilíbrio, Mack se viu adernando de encontro à única árvore de tamanho substancial que ladeava a entrada de veículos – a única cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns poucos meses antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua e aparentemente desejosa de uma pequena retribuição. Numa fração de segundo, ele escolheu o caminho da covardia e tentou despencar no chão, permitindo que os pés escorregassem – o que eles de qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida do que arrancar lascas do rosto.

Mas a descarga de adrenalina o fez compensar exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à sua frente, como se puxados para cima por alguma armadilha da selva. Bateu com força, primeiro com a nuca, e escorregou até um monte na base da árvore brilhosa, que pareceu se erguer acima dele com uma expressão de presunção e nojo, além de uma certa decepção.

O mundo pareceu ficar escuro por um instante. Ele permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu, franzindo os olhos enquanto a precipitação gelada esfriava rapidamente seu rosto vermelho. Durante uma pausa ligeira, tudo pareceu estranhamente quente e pacífico, com sua cólera momentaneamente nocauteada pelo impacto.

– Agora, quem é o idiota? – murmurou consigo mesmo, esperando que ninguém estivesse olhando.

O frio se entranhava rapidamente pelo casaco e pelo suéter, e Mack soube que a chuva gelada que estava ao mesmo tempo se derretendo e se congelando embaixo dele iria logo se tornar um enorme desconforto. Gemendo e sentindo-se muito velho, rolou apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Foi então que viu a marca de um vermelho forte traçando sua jornada desde o ponto de impacto até o destino final. Como se gerado pela súbita percepção do ferimento, um martelar surdo começou a subir pela nuca. Instintivamente ele procurou a fonte das batidas de tambor e trouxe de volta a mão ensanguentada.

Com o gelo áspero e o cascalho afiado cortando as mãos e os joelhos, Mack meio engatinhou, meio escorregou, até conseguir chegar a uma parte plana da entrada de veículos. Com um esforço considerável, finalmente pôde ficar de pé e avançar cautelosamente, centímetro a centímetro, em direção à casa, humilhado pelos poderes do gelo e da gravidade.

Assim que entrou, Mack se livrou metodicamente e do melhor modo que pôde das camadas de roupa de frio, com os dedos meio congelados reagindo com quase tanta destreza quanto se fossem porretes enormes na ponta dos braços. Decidiu largar aquela bagunça molhada e manchada de sangue ali mesmo na entrada, onde a deixara cair, e avançou dolorosamente até o banheiro para examinar os ferimentos. Não existia dúvida de que o caminho gelado havia vencido. Do talho na nuca escorria sangue ao redor de algumas pedrinhas ainda encravadas no couro cabeludo. Como havia temido, um galo significativo tinha se formado, emergindo como uma baleia-corcunda rompendo as ondas de seu cabelo ralo.

Enquanto tentava ver a nuca com um pequeno espelho de mão que refletia uma imagem invertida do espelho do banheiro, Mack achou difícil fazer um curativo. Depois de uma curta frustração, desistiu, incapaz de obrigar as mãos a irem na direção certa e sem saber qual dos dois espelhos mentia para ele. Tateando com cuidado ao redor do talho encharcado, conseguiu tirar os pedaços maiores de cascalho, até que a dor ficou forte demais para continuar. Pegou um pouco de pomada de primeiros socorros e tapou o ferimento do melhor modo que pôde. Em seguida amarrou uma toalha de rosto na nuca usando um pouco de gaze que encontrou numa gaveta do banheiro. Olhando-se no espelho, pensou que se parecia um pouco com um marinheiro rude saído do romance Moby Dick. Isso o fez rir, depois se encolher.

Teria de esperar até que Nan chegasse em casa para receber qualquer atendimento médico verdadeiro, uma das muitas vantagens de ser casado com uma enfermeira. De qualquer modo, sabia que quanto pior fosse a aparência, mais solidariedade iria receber. Se prestarmos bastante atenção, sempre conseguiremos descobrir alguma compensação no sofrimento. Engoliu dois analgésicos para diminuir a dor e mancou até a porta da frente.

Nem por um instante Mack se esqueceu do bilhete. Remexendo na pilha de roupas molhadas e ensangüentadas, finalmente o encontrou no bolso do casaco. Olhou, voltou para o escritório, achou o número da agência de correio e ligou. Como esperava, Annie, a matronal chefe do correio e guardiã dos segredos da população local, atendeu.

– Oi, por acaso o Tony está aí?

Oi, Mack, é você? Reconheci sua voz. – Claro que reconheceu. – Desculpe, mas o Tony ainda não voltou. Na verdade, acabo de falar com ele pelo rádio. Está na metade da Wildcat, nem chegou à sua casa ainda. O que você quer que eu diga a ele, se conseguir voltar vivo?

– Na verdade você já respondeu à minha pergunta.

Houve uma pausa do outro lado.

– O que há de errado, Mack? Ainda está fumando muito bagulho, ou só faz isso nas manhãs de domingo para conseguir suportar o culto na igreja? – Ela começou a rir, encantada com o brilho de seu próprio senso de humor.

– Bom, Annie, você sabe que eu não fumo bagulho. Nunca fumei e nem quero. – Claro que Annie sabia disso, mas Mack não podia se arriscar. Não seria a primeira vez em que o senso de humor de Annie se transformaria numa boa história que logo se tornaria um “fato”. Ele podia ver seu nome sendo acrescentado à corrente de orações da igreja. – Tudo bem, eu falo com o Tony outra hora, não é importante.

– Então está certo, e fique dentro de casa, que é mais seguro. Você sabe, um cara velho como você pode perder o senso de equilíbrio com passar dos anos. Do jeito que as coisas andam, talvez Tony não consiga chegar à sua casa.

– Obrigado, Annie. Tentarei lembrar do seu conselho. Falo com você mais tarde. Tchau. – Sua cabeça latejava cada vez mais, pequenos martelos de forja batendo no ritmo do coração. “Estranho”, pensou, “quem ousaria colocar algo assim na nossa caixa de correio?” Os analgésicos ainda não haviam surtido o efeito desejado, mas eram suficientes para embotar o início de preocupação que ele estava sentindo, e de repente Mack ficou muito cansado. Pousou a cabeça na mesa e pensou que havia acabado de cair no sono quando o telefone o acordou com um susto.

– Ah… alô?

– Oi, amor. Parece que você estava dormindo. – Ele sentiu na voz de Nan uma animação incomum, mesmo percebendo a tristeza encoberta que espreitava logo abaixo da superfície de cada conversa. Mack ligou a luminária da mesa e olhou o relógio, surpreso ao constatar que dormira por cerca de duas horas

– Ah, desculpe. Acho que cochilei um pouco.

– É, você parece meio grogue. Tudo bem?

– Tudo. – Mesmo estando quase escuro lá fora, Mack podia ver que a tempestade não havia amainado. Tinha até depositado mais uns 5 centímetros de gelo. Os galhos das árvores pendiam baixos e ele sabia que alguns acabariam se partindo com o peso, principalmente se o vento aumentasse. – Tive um pequeno entrevero na entrada de veículos quando fui pegar a correspondência. Mas, fora isso, tudo bem. E você?

Ainda estou na casa da Arlene e acho que eu e as crianças vamos passar a noite aqui. É sempre bom para a Kate estar com a família… parece que isso restaura um pouco o seu equilíbrio. – Arlene era a irmã de Nan, que morava do outro lado do rio, em Washington. – De qualquer modo, está escorregadio demais para sair. Espero que melhore de manhã. Queria ter chegado em casa antes de o tempo ficar tão ruim, mas o que se há de fazer? – Houve uma pausa. – Como está tudo por aí?

– Bem, está absolutamente, espantosamente lindo e muitíssimo mais seguro de olhar do que de andar, acredite. Eu certamente não quero que você tente chegar aqui nessa situação. Nada se mexe. Acho que nem o Tony conseguiu trazer a correspondência.

– Achei que você já tinha pegado a correspondência.

– Não, achei que o Tony tinha passado e fui pegar. E – Mack hesitou, olhando o bilhete sobre a mesa – não havia nenhuma correspondência. Liguei para Annie e ela disse que o Tony provavelmente não ia conseguir subir a ladeira. De qualquer modo – ele mudou rapidamente de assunto para evitar mais perguntas –, como está a Kate?

Houve uma pausa e depois um longo suspiro. Quando Nan falou, sua voz saiu num sussurro, e Mack percebeu que ela estava tapando o bocal do outro lado.

– Mack, eu gostaria de saber. Por mais que eu tente, não consigo. É como se eu falasse com uma pedra. Quando tem gente da família por perto, ela parece sair um pouco da casca, mas depois some de novo. Simplesmente não sei o que fazer. Rezei e rezei para que Papai nos auxiliasse a encontrar um modo de ajudá-la, mas… – Nan parou de novo – parece que ele não está ouvindo.

Era assim. Papai era o nome com que Nan se referia a Deus e expressava o deleite que lhe provocava sua amizade íntima com ele.

– Querida, tenho certeza de que Deus sabe o que está fazendo. Tudo vai dar certo. – Essas palavras não lhe trouxeram conforto, mas ele esperava que pudessem aliviar a preocupação que sentia na voz dela.

Eu sei – Nan suspirou. – Só gostaria que ele andasse mais depressa.

– Eu também – foi tudo o que Mack conseguiu dizer. – Bom, você e as crianças fiquem aí, onde é seguro. Dê lembranças à Arlene e ao Jimmy e agradeça a eles por mim. Espero ver você amanhã.

Mack sentou-se e olhou o bilhete. Era confuso e doloroso tentar evitar a cacofonia de emoções perturbadoras e de imagens sombrias que nublava sua mente – um milhão de pensamentos viajando a um milhão de quilômetros por hora. Por fim desistiu, dobrou o bilhete, enfiou-o numa pequena lata que ficava sobre a mesa e apagou a luz.

Conseguiu encontrar algo para aquecer no microondas, depois pegou alguns cobertores e travesseiros e foi para a sala de estar. Ao olhar rapidamente para o relógio, viu que o programa de Bill Moyer tinha acabado de começar; era seu programa predileto, que ele tentava não perder nunca. Moyer era uma das pouquíssimas pessoas que Mack adoraria conhecer: um homem brilhante e franco, capaz de exprimir com clareza incomum uma compaixão intensa pelas pessoas e pela verdade.

Quase sem pensar e sem afastar os olhos da televisão, Mack estendeu a mão para a mesinha de canto, pegou um porta-retrato com a imagem de uma menininha e o apertou contra o peito. Com a outra mão puxou os cobertores até o queixo e se aninhou mais fundo no sofá.

Logo o som de roncos suaves encheu o ar, enquanto o aparelho exibia um estudante no Zimbábue, que fora espancado por falar contra o governo. Mas Mack já havia saído da sala para lutar com seus sonhos. Talvez essa noite não houvesse pesadelos, só visões, quem sabe, de gelo, árvores e gravidade.


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