Livro ‘Saga Brasileira’ por Míriam Leitão

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A longa luta de um povo por sua moeda

A inflação acumulada nos quinze anos que antecederam o Plano Real foi de 13,3 trilhões por cento. O país teve cinco moedas entre 1986 e 1994, o que significou instabilidade de preços, indexações, congelamentos, confisco de poupança e insegurança geral. Mas, passados vários anos, as novas gerações não têm noção do que foi o período da hiperinflação — e lembrar é preciso. Míriam Leitão presta enorme serviço ao país registrando para a posteridade a saga da luta e da vitória contra a inflação e reconstruindo os fatos com grande competência e leveza. Nesta nova edição, revista e atualizada, a autora acrescenta um novo capítulo sobre a ameaça de retorno do fantasma do descontrole inflacionário e suas consequências para a economia do país.

Editora: ‎Record; 12ª edição (23 setembro 2019) Páginas: 476 páginas ISBN-10: 8501115576; ISBN-13: 978-8501115577; ASIN: B07X4JCCNL

Biografia do autor: Míriam Leitão tem uma coluna diária no jornal O Globo desde 1991, é comentarista de economia da TV Globo, rádio CBN e tem um programa na GloboNews. Mineira de Caratinga, começou no jornalismo em Vitória e trabalhou também na Gazeta Mercantil, Veja, Abril Vídeo, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo. Ganhou vários prêmios, entre eles o prestigiado Maria Moors Cabot Prize, conferido pelo Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. É casada com o cientista político Sérgio Abranches, e tem dois filhos, Vladimir e Matheus, um enteado, Rodrigo, e os netos Mariana, Daniel, Manuela e Isabel. Em 2010, publicou Convém sonhar, uma reunião das suas colunas mais marcantes. Em 2012, Saga brasileira recebeu o prêmio máximo do 54º Jabuti: Livro do Ano de Não Ficção.

Leia trecho do livro

'Saga Brasileira: A longa luta de um povo' por sua moeda' - A inflação acumulada nos quinze anos que antecederam o Plano Real foi de 13,3 trilhões por cento. O país teve cinco moedas entre 1986 e 1994, o que significou instabilidade de preços, indexações, congelamentos, confisco de poupança e insegurança geral... Livros online, Baixar PDF, Grátis, Download, Frases de Mirian Leitão, Resenha, Resumo, Análise e Critica...

Para Vladimir e Matheus

De quem roubei tanto tempo
do nosso delicioso tempo juntos,
para seguir as histórias deste livro.

Porque há doçura e beleza
na amargura atravessada,
e eu quero a memória acesa
depois da angústia apagada.


Cecília Meireles

Nota do editor

Este Saga brasileira, de Míriam Leitão, é um raro fenômeno ao mesmo tempo comercial e de crítica. Best-seller, com dezenas de milhares de exemplares vendidos, foi vencedor do Prêmio Jabuti de livro do ano de 2012 — e nunca mais deixou de informar e influenciar o povo do Brasil sobre o valor da estabilidade monetária e do controle da inflação.

Obra de uma das mais brilhantes jornalistas do país, este livro conta a dolorida história da fixação de um valor inegociável entre nós: hoje, o brasileiro não aceita mais que se brinque com sua moeda.

Esta nova edição, contudo, vem para remediar preventivamente a fama segundo a qual teríamos a memória fraca, facilmente capazes de esquecer a dura escalada que nos trouxe até aqui. Afinal, desde 2011, quando esta obra foi lançada, não terão sido poucas as vezes em que o Real — o valor da solidez da moeda nacional — esteve sob ameaça. Daí, pois, a especial importância do novo capítulo escrito por Míriam, dedicado a destrinchar esses riscos. Título e subtítulo do acréscimo dizem tudo — notadamente acerca do futuro: “Depois da Saga: o fantasma volta a assombrar, é derrotado, mas fere a economia e atinge o governo”.

O alerta é permanente. A leitura também.

Carlos Andreazza

Nota da autora

Nenhum livro me deu mais alegrias do que este. Ao subir no palco da Sala São Paulo, em 2012, para receber o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, eu me senti completa. Realizava meu sonho de ser escritora e estava ali segurando o troféu do reconhecimento. Além disso, o lançamento do livro me permitiu andar pelo Brasil e conversar com as mais diversas plateias. Algumas palestras se transformaram em emocionantes sessões de relatos das pessoas presentes sobre o impacto dos planos e das crises em suas vidas. Elas falavam espontaneamente, levantavam-se e contavam episódios que viveram. Eram histórias pungentes, que confirmavam o que eu escrevera.

Quando a Editora Record me procurou com a proposta de relançar o livro na sua 12ª edição, o país acabara de viver mais um surto inflacionário. Não havia atingido, claro, os níveis de antigamente, mas fora suficiente para desorganizar a economia. A taxa anual tinha chegado de novo a dois dígitos, provocando distúrbios políticos e econômicos. Que reflexões se podia fazer a partir disso? Muitas. Os eventos que se seguiram confirmaram a tese de que o país não tolera mais a inflação alta. Ficou claro também que os erros de política econômica têm um preço alto, mesmo quando aparentam ser, num primeiro momento, a fórmula da prosperidade.

Essas reflexões sobre o novo momento de alta da inflação constam do capítulo inédito para o qual tive a ajuda dos jornalistas Álvaro Gribel e Valéria Maniero na procura por pessoas e dados desse passado recente. Foram feitas pouquíssimas alterações no texto original, apenas para atualizações inescapáveis. A história do caminho que o Brasil percorreu em busca de uma moeda estável contém lições permanentes. O episódio inflacionário do governo Dilma foi a prova dos nove de que qualquer que seja o projeto para a economia brasileira, ele só prosperará sobre a base da estabilidade monetária. Ela jamais será um fim em si mesma, mas o ponto a partir do qual o país constrói seu futuro.

A travessia

O que é uma moeda? Quase nada. Um valor que oscila. Uma abstração. Os economistas têm resposta pronta: é reserva de valor, unidade de conta, meio de pagamento. No mundo em que vários países europeus abriram mão das suas moedas para criar o euro, um padrão monetário de laboratório, pode-se dizer que a moeda já perdeu o papel de símbolo nacional que dividia com a bandeira e o hino.

Não foi assim no Brasil. Este livro quer contar a história em que um povo passou por ansiedades e dores, suportou agressões aos seus direitos, velou de madrugada, viveu sobressaltos, fiscalizou, reagiu; acreditou uma vez, duas, seis, quantas vezes foram necessárias; sofreu e torceu por uma moeda. Para alcançá-la foi preciso desmontar armadilhas, quebrar rotinas, reorganizar o país, ousar. Tem sido ainda necessário persistir e não esquecer o destino desejado.

Dentro dos gabinetes dos governos e nas salas das famílias, uma grande história foi vivida. Milhões de pessoas participaram da construção coletiva que não teve figurantes. Foram, todos, peças centrais de uma grande saga.

A moeda de que se fala neste livro vai além das suas funções clássicas. Ela habita o terreno mítico. E é concreta. É o alvo e o caminho. Ao persegui-la, o Brasil encontrou uma trilha que modernizou o país. Por ser tão desejada, foi conduzindo o país na direção de grandiosas tarefas. Fomos removendo obstáculos, superando velhos vícios, corrigindo erros para ter, um dia, uma moeda estável. Seu valor real foi ser o fio condutor de uma travessia.

Como jornalista vi, dia após dia, por longos anos, esta história, épica e dolorosa, sendo contada aos pedaços nas páginas de jornais. Os milhões de brasileiros que sofreram, choraram, perderam bens, tiveram esperança, vigiaram, persistiram têm histórias tocantes e impressionantes para contar. E eles contarão aos seus filhos e netos. Os que tiveram poder de decisão nos momentos críticos são como todos os outros protagonistas da história: tiveram dúvidas e medos; ousaram, erraram, acertaram.

Não é história econômica; é história. No caminho conhecemos a hiperinflação desmoralizante, o ultraje do confisco do dinheiro poupado, tivemos a paciência de aprender e reaprender as regras e manuais dos padrões monetários mutantes. Enquanto isso, criamos nossos filhos, fizemos carreiras, abrimos empresas, planejamos o futuro, pagamos impostos, poupamos, levamos as crianças para a escola, reduzimos a mortalidade infantil, melhoramos o Brasil.

Parece simples, querer ter uma moeda que permaneça e na qual os preços subam e desçam de forma moderada, mas ela foi conquistada depois de muitas batalhas travadas em várias frentes. Nos tempos que aqui se conta, a moeda mudou de nome cinco vezes, perdeu nove zeros, foi dividida por 2.750 no meio de incontáveis intervenções governamentais na vida privada. Temos a tendência de desmerecer o conquistado; subestimar aflições e dores passadas, depois de tudo superado. Mas o que vivemos no Brasil foi maior do que nos damos conta. Escrever este livro foi um persistente sonho que eu carreguei por muito tempo. Ano após ano guardei material, conversas, bastidores e personagens. Foi preciso revisitar velhos jornais e revistas, tentar reencontrar pessoas, entrevistar protagonistas. Fui ajudada nessa busca do passado por dois jovens. Eduardo Mulder dedicou tempo vasculhando revistas e jornais antigos, na Biblioteca Nacional e na Agência Globo, me ajudando no trabalho de capturar flagrantes de um tempo que eu tinha de memória, mas que essa nossa viagem reavivou. Fátima Baptista saiu atrás de pessoas que pudessem nos contar o que ainda se lembram dos tumultos vividos. Agradeço muito aos dois. No túnel do tempo fui atrás de algumas das autoridades que tomaram as decisões ou funcionários que viram os planos sendo produzidos e aplicados. Agradeço a todos eles o tempo que ocupei em suas agendas. A Sérgio Abranches, companheiro de tantas aventuras, há muito a agradecer, mas escolho o mais relevante, que foi o aviso repetido de que desistir do livro não era a opção aceitável. Mais do que um evento em si, o que me apaixonou foi a ideia de mostrar que todos os eventos juntos descrevem o processo de amadurecimento institucional do país feito em condições difíceis. Pela dimensão de outras tarefas que nos aguardam, entendo que olhar o bem-feito pode ser de grande valia. Esta é a história da travessia que vi, orgulhosa, o povo brasileiro fazer no meio de sobressaltos, ao longo de mais de duas décadas. O mestre Guimarães Rosa, conhecedor de sertões e veredas, ensinou que não é no fim, nem no começo, que se sabe a verdade. “O real se dispõe para a gente é no meio da travessia.” Foi no caminho que eu entendi o Brasil.

Nosso vício, desde o início

Durante quase todo o século XX a inflação subiu. Como o vírus traiçoeiro que se infiltra e se esconde e confunde para melhor crescer e dominar. Às vezes, parecia ceder: pequenas quedas e depois novas escaladas. Alguns combatiam, outros desfaziam. O país teve várias atitudes diante desse desconforto. Até que ele deixou de ser apenas um desconforto para ser a mais perigosa ameaça econômica enfrentada pelo país em sua história republicana.

Se recuarmos mais na história a tendência será concluir que a inflação é velha como o Brasil. D. João VI cunhando moedas para financiar o gasto da Corte que desembarcou em crise; D. Pedro fabricando dinheiro para financiar a Independência proclamada na penúria foram fatos fundadores da velha sina do tormento monetário.

A República produziu ao nascer uma crise inflacionária que o país jamais esqueceria: o encilhamento. O primeiro ministro da Fazenda, Rui Barbosa, permitiu o aumento descontrolado da emissão da moeda. O trabalho assalariado exigia mais dinheiro em circulação. Chegavam imigrantes. A nova ordem política tinha pressa. A convicção era de que melhor seria soltar os cavalos de corrida para o sucesso republicano. Uma proposta que já tinha sido considerada no Império foi adotada com radicalismo que o momento incentivava: vários bancos ganharam o direito de emissão monetária. Muito dinheiro circulando produziu euforia na Bolsa, fortunas instantâneas se formaram, explodiu a especulação financeira. Nas ruas da Alfândega e Candelária, no Rio de Janeiro, todos negociavam freneticamente. Parecia maravilhoso até que a bolha estourou em crise, falências e altíssima inflação. Isso marcaria os primeiros anos do novo regime.

“Pululavam os bancos de emissão e quase diariamente se viam na circulação monetária notas de todos os tipos, algumas novinhas, faceiras, artísticas com figuras de bonitas mulheres e símbolos elegantes, outras sarapintadas às pressas, emplastradas de largos e nojentos borrões. (…) Travava-se a responsabilidade do país em somas pavorosas e brincava-se com o crédito, o nome e o porvir da Nação”, escreveu Visconde de Taunay no seu O encilhamento. É um romance contemporâneo dos fatos, cujo pano de fundo é o cenário real da euforia e do colapso provocados pelo erro de que basta imprimir dinheiro que está feita a riqueza no novo regime.

Quando a República fez 100 anos, em 1989, economistas da PUC escreveram o livro A Ordem do Progresso. Marcelo de Paiva Abreu, o organizador da obra, registra: “O centenário da República está sendo comemorado em meio ao que é provavelmente a maior crise da história econômica do Brasil independente.”

A República começou produzindo uma crise inflacionária e completou 100 anos, no alvorecer da redemocratização, na pior crise inflacionária de sua história. No meio houve tréguas, soluções temporárias, e depois descuidos que nos levaram às velhas armadilhas. Nesses cem anos do encilhamento à hiperinflação o país aprendeu, dolorosamente, a lição de que a ordem monetária é a única base do progresso duradouro.

O século XX começou com a inflação aparentemente morta pelo rigoroso combate a ela no governo Campos Salles, o quarto presidente da República. O ministro Joaquim Murtinho cortou o déficit orçamentário e reduziu o direito do governo de emitir moeda. Deu certo. Ao final do ajuste veio o primeiro período de milagre econômico. Houve forte crescimento e a inflação ficou ainda dentro do aceitável até a década de 1930. Nesses primeiros trinta anos o país viveu altos e baixos, crises de dívida, e períodos de crescimento, sempre ao sabor das oscilações de preços do café e da borracha. Houve choques externos provocados pelas duas guerras. Quem olhar a série estatística da inflação com olhos de hoje nada entenderá. A inflação tem altas e quedas abruptas, como –10,4% em 1903 para 21,9% em 1904. Em parte a explicação é que a medição dos índices de preços era muito tosca naquela época.

A primeira fase do regime republicano alterna políticas econômicas de controle e descontrole e termina naufragando nos conflitos internos e os efeitos da pior crise financeira mundial, a de 1929. Nos 41 anos da Primeira República, 25 homens ocuparam o cargo de ministro da Fazenda, alguns mais de uma vez. Por aí se vê que a instabilidade se manteve durante todo o período e foi, na visão de Winston Fritsch, essa sucessão de crises que esgarçou o tecido político além da sua possibilidade de resistência.

A Revolução de 1930 constrói um novo país sobre as cinzas econômicas da crise externa e do café. E a inflação começa a se infiltrar lenta e sorrateiramente. Na década de 1940, quando a taxa dobrou pela primeira vez em relação à média das décadas anteriores, o país nem viu. Displicente, criou o cruzeiro, abandonando o mil-réis quase ao fim da ditadura de Getúlio Vargas. A nova moeda foi implantada em 1942, quando a inflação estava em 20%. Na década de 1950 surgiu a ideia perigosa de que ela era uma espécie de combustível para o crescimento. Era considerada quase boa. De novo, ministros que queriam controlar as causas dos problemas eram trocados por outros que propunham política de expansão do gasto e do risco. Nos anos 1960 a inflação alimentou em parte a instabilidade política e o combate a ela foi incorporado ao discurso autoritário dos militares.

Depois do golpe militar de 1964, veio a contradição que mudou a natureza do processo: o governo criou a correção monetária, que reajustava os preços pela inflação passada. E fez mudanças cosméticas: cortou três zeros e chamou a moeda de cruzeiro novo. Depois abandonou o “novo” e a moeda voltou a ser só cruzeiro, sem que nada houvesse de novo exceto a correção monetária que mais tarde se tornaria ardilosa armadilha.

As taxas de inflação caíram de 80% ao ano para patamares de 20%. Uma das razões foi que a correção monetária garantia os proprietários, mas não os trabalhadores. Elevava preços, aluguéis, impostos, mas não os salários. O dinheiro dos trabalhadores era corrigido por uma projeção de inflação — que era sempre superada. Pior para os salários. À custa deles foi feito o ajuste que derrubou os índices no começo do governo militar. As taxas caíram, mas não muito: ficaram sempre em dois dígitos e voltaram a subir na segunda metade dos anos 1970 realimentadas pela contradição de fingir enfrentar a inflação adaptando-se a ela.

Em meados dos anos 1970 começaram a aparecer nas artes os primeiros reclamos da perda de valor do dinheiro, e o país cantou com Paulinho da Viola a música Pecado capital, tema da novela de 1975-6 — cujo verso mais famoso era “Dinheiro na mão é vendaval”.

Em 1977, fez sucesso a música “Saco de feijão” de Francisco Santana. “De que me serve um saco cheio de dinheiro pra comprar um quilo de feijão?/ No tempo dos dérreis e do vintém se vivia muito bem, sem haver reclamação/ Eu ia no armazém do seu Manoel com um tostão trazia um quilo de feijão./ Depois que inventaram o tal cruzeiro eu trago um embrulhinho na mão e deixo um saco de dinheiro.”

As músicas foram premonitórias. Os anos seguintes testemunhariam exatamente o drama de levar cada vez mais dinheiro aos supermercados para trazer cada vez menos produtos, porque um vendaval tirava o dinheiro da mão. Nos últimos anos daquela década a inflação subiu ainda mais, e no ano de 1980 chegou a 100%.

Na década de 1980, o Brasil viu, então, a força destruidora do inimigo. Resistente a tudo, a inflação cresceu sem parar, com voracidade. A terapia tradicional adotada em 1981 criou recessão e desemprego, mas ela não caiu. Em 1983 estava em 230%. Esses pulos de patamar foram provocados por duas maxidesvalorizações do cruzeiro de 1979 e de 1983 e a falta de eficácia dos remédios usados. Seu poder e persistência transformaram a década num grande campo de batalha.

No dia 28 de fevereiro do ano de 1986, o Brasil acordou com dois ministros do novo governo civil, na televisão, avisando que não haveria mais inflação. Falavam de um mundo que o país desconhecia: de preços estáveis, de planejamento do orçamento doméstico. Um deles, João Sayad, apertava os olhos atrás de grossos óculos de grau, como quem duvidava do que prometia; o outro, Dílson Funaro, parecia nunca duvidar.

Foi nesse tempo que se viu pela primeira vez a dimensão do compromisso do povo brasileiro em derrotar o inimigo. O Cruzado foi o primeiro da nova safra de planos contra a inflação, e a sociedade vibrou, se entusiasmou, foi para as ruas. O episódio em que um homem declara fechado um supermercado “em nome do povo”, em Curitiba, caricaturado em tantos artigos, teve enorme carga simbólica e contundente informação. A inflação era a nossa Bastilha. O povo brasileiro queria derrotá-la, tomar o que parecia ser a cidadela do inimigo, derrubar seu muro, ocupar sua fortaleza, fechar o local onde ela mostrava suas garras. Na longa caminhada até ter uma moeda, o povo brasileiro provou que estava disposto a tudo e tudo suportaria. A cada nova tentativa, a esperança tomava conta dos cidadãos. A cada derrota, voltava-se ao ponto de partida. As famílias sofreram nos planos e no avesso dos planos. A convivência com preços que subiam diariamente era tão intolerável e empobrecedora, tão cansativa e ameaçadora, que os brasileiros se empolgavam a cada nova chance de vitória. Acreditavam que daria certo e se armavam de máquinas de calcular e blocos de anotação para registrar os preços, vigiar seus passos, denunciar suas manobras, defender o orçamento doméstico.

Os jornais eram parte da resistência. A cada manhã de mudança econômica, os telefones tocavam insistentemente nas redações, e as ligações eram transferidas para as editorias de economia. Os jornalistas atendiam primeiro com displicência, depois com irritação e, por fim, com entendimento de que aquela era também uma frente do próprio trabalho. Os leitores levantavam questões reais da economia que os jornalistas precisavam responder: como pagar a prestação da casa própria, quanto descontar de inflação futura em uma dívida feita há seis meses, o que fazer com um contrato assinado na véspera, como pagar uma dívida que vencia naquele dia, quanto aceitar de mensalidade escolar e, sempre, o que fazer com o dinheiro; esse bem volátil, frágil, vulnerável, ameaçado pelo arbítrio dos governantes, pelas artimanhas dos bancos e pela inflação. Naquele tempo era fácil encontrar uma dona de casa que tivesse tido a preocupação de anotar os preços dos principais itens vendidos nos supermercados, na iminência de um novo plano. Com a ajuda da memória das pessoas, os jornalistas flagravam os abusos das remarcações.

O desafio era acabar com a correção monetária que, pensada no começo do regime militar como remédio, tinha virado veneno. A correção monetária entrou no organismo brasileiro, mudou a natureza da economia e construiu mecanismos adaptativos que tornavam ainda mais rígida a inflação brasileira, invulnerável aos remédios convencionais. Nas empresas criou vícios; na contabilidade, mentiras; nos cidadãos, distorções quase genéticas. Certa vez o cientista político Sérgio Abranches resumiu esse estranho efeito definindo o brasileiro como sendo o Homo indexadus. Para viver com os preços corrigidos automaticamente em prazos cada vez mais curtos, o brasileiro produziu em si mesmo mutações que ao mesmo tempo permitiam sua sobrevivência e o tornavam dependente da distorção.

A virada dos anos 1980 para os 1990 foi assustadora. Depois de três planos fracassados, a inflação ganhou força inimaginável. Ela se fortaleceu a cada falha, como as infecções avançam sobre os corpos mal defendidos. O sofrimento que provocou nas famílias, o empobrecimento dos mais pobres, a desordem na contabilidade das empresas, a incapacidade absoluta de fazer qualquer previsão e planejamento, tudo ficou insuportável. A inflação inflacionou a vida brasileira. Ocupou todos os espaços. Era o único assunto das editorias de economia, era a manchete mais frequente dos jornais, era a obsessão do cidadão, a derrota dos governantes.

Entre o início de 1986, ano do Cruzado, até o fim de 1994, ano do Real, passaram-se quase nove anos. Nesse período, o país teve onze ministros da Fazenda. * Uma média de um a cada dez meses. Nos oito anos seguintes, o país teve apenas um ministro da economia: Pedro Malan. Até a escrivaninha do gabinete principal do Ministério da Fazenda soube da passagem do período da desordem para a estabilidade que a queda dos índices permitiu.

Não era apenas um campo de batalhas. Havia vários. Um deles, de árida compreensão e aguda repercussão, é o das finanças públicas. Há muito a fazer ainda para que haja mais transparência nos gastos públicos, mas quem não viveu aquele tempo não tem ideia de como as contas públicas do Brasil eram toscas.

Os brasileiros, nos poucos anos dessa nossa ainda jovem democracia, já fizeram muito. Saíram da mais completa desordem nas contas públicas para a Lei de Responsabilidade Fiscal. Sanearam bancos, criaram instituições modernas, abriram a economia, conquistaram uma moeda estável, fizeram um pacto político em torno da estabilidade que tem atravessado governos, superaram crises que pareciam insuperáveis.

Contados como eventos diários pelos jornalistas, analisados em fragmentos nas teses acadêmicas, os fatos que marcaram a vida econômica do Brasil nas últimas décadas estão relacionados entre si. Fazem parte do mesmo processo de aceleração e queda da inflação. Episódios do mesmo enredo. Enredo incomum, história inquieta e nervosa, de momentos dramáticos, encruzilhadas e escolhas.

Nada ocorreu por acaso nessa longa história vivida pelo Brasil, seu povo, seus acadêmicos, políticos, burocratas e empresários. Cada passo se somava a outro, dado no momento anterior. Cada evento, cada crise, cada solução e plano era nova etapa da história de um país em busca da moeda estável. Na era das moedas multinacionais, parece até primitivo que o Brasil lute tanto para ter a sua própria, sua única e exclusiva moeda, que atravesse décadas perseguindo o mesmo sonho e a instale no mesmo panteão dos símbolos nacionais. O que vale um real de tão curta história perto de um marco alemão arquivado no auge de sua solidez e glória?

Foi preciso viver, na trincheira do jornalismo econômico, os últimos trinta anos de aflições e sustos, de lutas e golpes, de mudanças, de planos e assombrações, para entender que a moeda é o resumo do processo em que o Brasil encontra o Brasil. Na busca da estabilidade, o país teve de enfrentar seus mais agudos defeitos, o erro de suas elites, a vastidão da exclusão, a apropriação do Estado pelos grupos de interesse, a hipocrisia das instituições. É preciso revisitar o debate que levou ao real e persistiu depois dele. Seguir a linha da História para entender os desvios nos quais o país entrou para perpetuar um sistema de privilégios que tinha na inflação uma aliada poderosa. O debate foi costurando consensos preciosos, que produziram novos avanços, mas a cada avanço surgiam novos dilemas. É preciso encontrar o fio condutor entre fatos que parecem não estar relacionados entre si. É preciso acompanhar o consumidor em seus movimentos, entender suas angústias e dúvidas, aprender com a lucidez das suas escolhas, para ver a extensão do que foi vivido. Nada ficou restrito ao que se passou nos gabinetes das autoridades, nas salas de estudo das universidades, nas mesas dos burocratas, nas diretorias das empresas. Não foi uma disputa descarnada. Foi uma grande luta de um grande povo querendo entender e derrotar a essência de sua infelicidade.

Por isso, esta não é apenas uma história de determinado plano econômico. É a história do trajeto de um povo por pedregoso caminho. O Brasil avançou de forma extraordinária, mas essa jornada ainda está incompleta. Entender o que foi feito talvez nos ajude a mapear o caminho para outras vitórias.

De todos os momentos econômicos dramáticos, ficará para sempre na memória de quem viveu o terror dos últimos meses do governo José Sarney e o começo do governo Collor, no final de 1989 e começo de 1990. A violência da remarcação dos preços não tornava a inflação apenas mais alta, ela mudou de natureza: virou hiperinflação. Para supostamente enfrentá-la, o governo Collor impôs ao país a mais absurda das invasões na vida privada. A história daqueles dias precisa ser resgatada para que as novas gerações não a esqueçam. Conheçam suas causas, para que não repitam os mesmos erros. Saibam as consequências para que se protejam. E assim, informados da tragédia da hiperinflação, jamais permitam que um inimigo desses se instale, novamente, no coração da pátria.

Se alguém achar que é exagero deve ver esse número que o professor Salomão Quadros, da FGV, calculou. De julho de 1964 a julho de 1994, data do Plano Real, a inflação acumulada, medida pelo IGP-DI, foi de 1.302.442.989.947.180,00%. Para simplificar: 1 quatrilhão e 302 trilhões. Por isso o nome deste livro é Saga. O Brasil superou o que parecia insuperável.

Fim da amostra…


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