Livro ‘Corra para ser feliz’ por Bella Mackie

Livro 'Corra Para Ser Feliz' por Bella Mackie
Bella Mackie nunca foi de praticar esportes. Sua agorafobia e ansiedade praticamente a impossibilitavam de visitar outros bairros de Londres, cidade em que mora. Mas seus transtornos atingiram novos patamares quando seu casamento acabou depois de apenas alguns meses. Com quase trinta anos, um coração partido e chorando em posição fetal no chão da sala, ela decidiu fazer algo que nunca tinha cogitado antes: calçar um par de tênis e começar a correr. A princípio, corria por um beco perto de casa (para se manter escondida e também para ter uma “rota de fuga”), e a primeira corrida durou três minutos — no entanto, foram três minutos em que ela não chorou e não sentiu pena de si mesma...
Editora: HarperCollins; 1ª edição (15 maio 2019)  Capa comum: 304 páginas  ISBN-10: 8595085242  ISBN-13: 978-8595085244  Dimensões: 20.6 x 13.6 x 2 cm

Leia trecho do livro

Para George,
a pessoa mais corajosa que já conheci,
e a quem devo quase tudo.

Livro 'Corra para ser feliz' por Bella Mackie

Corri por três minutos hoje. No escuro e devagar. Precisei dar umas paradas. São três minutos a mais do que já corri na vida. Estou sem fôlego, dolorida e já me sinto melhor do que me sinto há anos. É o bastante para uma primeira tentativa. Agora, posso ir para casa chorar. Ou beber um vinho.

Mesmo deitada no chão da minha sala, vendo os pés do meu marido indo para a porta, eu já pensava no que estava por vir. Quando um casamento entra em crise, sempre há aquela tristeza insuportável, aquelas perguntas desconfortáveis e, às vezes, constrangimento. Olhando para o tapete, minha mente se adiantou, montando um enredo embaçado do futuro. Comecei até a compilar a inevitável playlist de músicas tristes que eu sabia que estaria cantando a plenos pulmões às quatro da manhã, sofrendo por semanas a fio.

Hoje, aprendi que o momento da desilusão amorosa pode ser muito breve. Não é sempre aquela desintegração arrastada que a gente imagina ser comum na vida adulta, pedacinhos de amor e conforto se soltando aos poucos durante anos até que não exista nada mais a ser dito. Pode acontecer num piscar de olhos, pegar a gente de surpresa, sem tempo de se preparar antes. Alguém para na sua frente, cara a cara, e diz que está indo embora, que já não te ama mais, que encontrou outra pessoa, que você não é suficiente, e você pensa: “Ah, então é assim que eu vou morrer. Não tem a menor chance de eu superar isso.” Alguma coisa em algum lugar do seu corpo se rompeu violentamente e você só consegue se deitar no chão e esperar ser convidada para seguir pelo inevitável túnel com uma luz no fim.

Não sei que jeito é pior. Os dois são horrorosos, como a maioria dos términos. Certa vez, ouvi uma história sobre um casal comendo num restaurante em silêncio total por mais de uma hora. Quando o café chegou, o marido sussurrou algo para a esposa, que respondeu em tom agressivo: “Não é o café, são os últimos vinte e cinco anos.” Um desmoronamento devagar como esse seria terrível. Mas quando você recebe a abordagem surpresa, o momento do impacto é brutal, como um ataque físico. Apesar do choque, é também, por mais estranho que pareça, a parte fácil. Porque, cedo ou tarde, você percebe que não vai morrer. Que não pode ficar olhando para o carpete por muito tempo, pois precisa ir buscar as crianças na escola, ou passear com o cachorro, ou ir trabalhar. Talvez, precise, somente, fazer xixi. Sua dor é incapaz de se sobrepor até mesmo às demandas mais mundanas de uma segunda-feira. E, após essa percepção indesejável, o futuro se apresenta de forma bem clara: você vai passar por esse momento aos trancos e barrancos. Isso vai levar um tempo. A desilusão amorosa é breve, mas o caminho de saída é interminável e, às vezes, você se ressente de sequer precisar tentar.

Eu sabia que logo precisaria me levantar do chão. Sabia que, com as habilidades certas para enfrentar aquilo, podia ficar bem no final. Mas também sabia de outra coisa. Sabia que, ao contrário da maior parte dos adultos, eu não conhecia nenhum mecanismo de enfrentamento.

A gente aprende a sentir muito antes de aprender a entender os sentimentos. Bebês riem, choram e ficam irritados, mas não conseguem dizer por quê. Porém, à medida que crescemos, desenvolvemos métodos para aprender a lidar com acontecimentos estressantes ou traumáticos. Diversas vezes passamos a adolescência nos sentindo frustrados e confusos, mas, eventualmente, aprendemos coisas sobre nós mesmos e a lidar melhor com emoções maduras. Levamos essas ferramentas para a vida adulta, quando elas vão sendo refinadas, e então desenvolvemos uma compreensão mais clara de como enfrentar os desafios pessoais. Ou, ao menos, a maioria das pessoas faz isso. Até o momento em que me vi deitada no chão da sala, eu havia passado a vida inteira fugindo dos problemas. Mesmo na infância eu já era ansiosa e deixei as preocupações que sentia se inflamarem e dominarem a minha vida. Esses aspectos psicológicos atrapalharam o meu crescimento, me deixando assustada demais para enfrentar desafios e me tornando uma pessoa altamente controladora apenas para evitar qualquer possibilidade de sofrimento. Eu desisto das coisas quando elas ficam difíceis. Recuso oportunidades que seriam vantajosas para mim ou que me dariam independência. Eu me menosprezo.

Já estou acostumada, desde muito nova, a me esquivar e a usar o meu pensamento mágico para afastar as coisas ruins. Em vez de reconhecer que eu estava doente, inventava maneiras de lidar com as preocupações e os pensamentos irracionais (nenhuma delas bem-sucedida). Diante de algum medo, eu apenas cuspia ou piscava forte para expulsá-lo. Evitava certos números, letras, cores, músicas e lugares. Tudo como forma de “fazer um acordo” com o meu cérebro, na esperança de que os pensamentos ruins se afastariam se eu me apegasse a esses pequenos mecanismos. Nada funcionou, e a minha ansiedade logo cresceu. Meus mecanismos de enfrentamento eram todos falsos e, como consequência, eu me tornei agorafóbica, dada a ter ataques de pânico, pensamentos obsessivos, histeria e depressão. Quando o meu marido me abandonou, eu lidava com essas coisas havia anos. Não conseguia nem chegar sozinha ao supermercado (juro, de verdade), quanto mais passar por um fim de relacionamento daquela magnitude. Eu sabia que precisava me levantar, mas não sabia o que fazer depois. Tudo estava coberto de medo.

A ansiedade é uma coisa escorregadia e sorrateira. É uma doença que se manifesta de tantas formas que muitas vezes só é diagnosticada quando o paciente está absolutamente desesperado. Você pode passar anos tendo ataques de pânico sem sequer saber do que se trata. Pode achar que está muito doente, tendo um derrame ou um ataque cardíaco (como eu pensei numa boate aos dezoito anos, para a diversão dos meus amigos bêbados), ou pesquisar obsessivamente sintomas de hipertensão. Talvez sinta tanta vergonha desses pensamentos obsessivos que nunca nem se atreveu a contar alguma coisa para alguém, quanto mais se permitir pensar que possui sinais de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Em vez de lidar com as imagens e as ideias horríveis que aparecem na sua cabeça, de reconhecer que são apenas pensamentos e, portanto, inofensivos, você passa anos tentando neutralizá-los e silenciá-los. Tudo isso pode provocar um quadro depressivo grave (como se você já não tivesse problemas suficientes). Isso me fazia chorar sem parar, me fazia ficar na cama por horas. Me fazia perder dias dormindo. Me fazia assistir à TV durante o dia mais do que uma pessoa feliz devia ou gostaria. Me fez perder toda a esperança mesmo sendo jovem.

Quando chega nesse estágio, uma pessoa com transtorno de ansiedade provavelmente vai criar as próprias maneiras de lidar com pensamentos e sensações tão assustadores. Esses mecanismos de enfrentamento vão ser rígidos e difíceis de mudar, quanto mais romper. Quase nenhum deles será útil a longo prazo. O mais comum é que ofereçam algum alívio na hora, mas, no fundo, vão servir apenas para apertar os laços da preocupação.

Comigo, essas táticas incluíam nunca mais voltar a um lugar onde eu tivera um ataque de pânico. Um plano sensato, pensei, para evitar que aquela mesma situação horrível se repetisse. A não ser pelo fato de que acabei colocando um cordão de isolamento em torno da maior parte de Londres, incluindo a principal rua de comércio do meu bairro, o parque e a maioria das lojas. Depois, isso se ampliou para aviões, elevadores, estradas, qualquer lugar longe demais de um hospital e o metrô (imagine como eu era divertida em festas). O conforto imediato que isso me dava era enganoso, já que, em pouco tempo, via-me presa — incapaz de ir a qualquer lugar que a minha mente classificasse como “inseguro”. Embora hoje esteja claro para mim que fui refém da ansiedade por muitos anos, eu estava tão acostumada com esses métodos de barganha fajutos que não busquei ajuda até que essas táticas tivessem se apoderado de mim como um vício e eu estivesse paralisada.

Se existe um gatilho para tentar mudar alguma coisa na sua vida é o choque do casamento entrando em colapso antes do primeiro ano. Em média, as pessoas que se divorciam no Reino Unido conseguem chegar à marca dos onze anos e meio, então jogar fora os votos de forma tão espetacular como eu fiz pareceu um feito e tanto. Se o casamento tivesse durado um pouco mais, talvez o divórcio fosse visto apenas como algo triste, inevitável ou digno de um “os jovens de hoje não se comprometem com nada”. Mas oito meses? Seria insensato não questionar a minha vida ao menos um pouquinho depois disso.

Mesmo sem o inconveniente extra de um rompimento matrimonial, eu já sabia que tinha chegado ao fundo do poço. Evitei tudo que achava assustador por tanto tempo que o meu mundo encolheu a ponto de eu me sentir sufocada. Apesar de toda a minha cuidadosa administração de problemas e precauções (leia-se: controlar tudo e ter pensamentos loucos e irracionais — como eu disse, uma diversão em festas), o pior tinha acontecido. O modelo que eu vinha construindo desde criança não me protegeu do dano nem da humilhação. Aliás, ele contribuiu muito para isso.

Quando o meu marido foi embora, passei vários dias chorando e bebendo depois que a minha irmã me tirou da posição fetal no chão. Peço desculpas por omitir os detalhes aqui —não consigo me lembrar de nada sobre aqueles momentos. Sou grata ao meu cérebro por isso, uma das poucas vezes em que ele me foi útil. Provavelmente deve ter havido muita conversa, sono e comida, mas só me lembro de assistir a uma temporada inteira de Game of Thrones e de a minha irmã ficar brava comigo por eu ter maratonado a série sem ela. Tirei um dia de folga e depois voltei ao trabalho, alternando entre chorar no banheiro (o meu marido trabalhava na mesma empresa, foi bem legal) e me sentar muda à minha mesa, ouvindo música escocesa nos fones de ouvido, numa estranha tentativa de encontrar algum entusiasmo sempre que eu o via passando. (Um comentário à parte: por incrível que pareça, isso foi estranhamente eficaz e recomendo a qualquer pessoa que precise se sentir forte. Comece com “Highland Laddie”.)

Eu me sentia estagnada, ciente de que precisava suportar aquelas emoções dolorosas e difíceis, mas também preocupada de que talvez nunca fosse me sentir bem de novo. A vida continua, não importa o quanto o seu mundo tenha sido arrasado. Podia ver a normalidade no horizonte, mas não era isso que eu queria. Estava de volta ao trabalho, e suspeitava que, em alguns meses, conseguiria superar o término. O problema era que ainda estaria fechada no meu cubículo, tendo a ansiedade e a depressão como únicas companheiras.

É fácil se comportar como se nada estivesse errado, até quando você tem uma doença mental e sente que ela está consumindo você. Mesmo no auge da minha infelicidade, eu era boa no meu emprego, em fazer piadas, em sair apenas o suficiente para não ser vista como uma ermitã. Muita gente se torna especialista nesse tipo de coisa, conseguindo enganar até a si mesma. Provavelmente eu poderia ter continuado assim para sempre, vivendo uma vida pela metade, fingindo que estava tudo bem. Mas algo tinha se quebrado dentro de mim e eu não conseguia mais. Depois de tantos anos, eu estava exausta.

Foi quando me vi como uma fraude — uma criança covarde brincando de ser adulta, que não tinha que estar ali. Certa vez, J.K. Rowling falou que o fundo do poço virou a base sobre a qual ela construiu a sua vida — segundo ela, como os seus piores medos dela já tinham se realizado, ela só podia melhorar. Como se trata da J.K. Rowling, posso permitir o clichê e até admitir a contragosto que ele faz sentido. Ela acabou criando o mundo mágico dos bruxos que a transformou numa das mulheres mais ricas do mundo. No meu caso, o fundo do poço me estimulou a sair para correr.

Com uma semana da nova vida de solteira, essa ideia me veio à cabeça. Num dado momento em O apanhador no campo de centeio, Holden Caufield corre pelos campos da escola e explica isso, dizendo: “Nem sei por que eu estava correndo — acho que só me deu vontade.” Talvez eu só estivesse cansada de me sentir tão infeliz ou talvez soubesse que precisava fazer alguma coisa diferente, mas naquele dia, simplesmente me deu vontade de correr.

Ainda não sei por que essa foi a ferramenta que escolhi no meio da infelicidade. Nunca praticara qualquer exercício pesado antes. Mas passei a vida segurando uma vontade enorme de sair correndo e fugir — da minha mente, dos pensamentos negativos, das preocupações que cresciam e se calcificavam, camada após camada, até ficarem duras demais para quebrar. Talvez aquela urgência repentina de correr fosse uma manifestação fisica do desejo de escapar do meu próprio cérebro. Acho que eu queria colocar isso num plano tangível.

Além do mais, eu estava impaciente para superar o estereótipo da pessoa que termina e fica se empanturrando de sorvete — sempre fui do tipo que opta pelas soluções rápidas. E, nossa, como eu queria que os sentimentos ruins e a dor fossem logo embora. Além disso, todo término de relacionamento sempre é um bom momento para tentar algo novo. Para mim, havia o beneficio extra de me libertar de alguns medos que eu vinha carregando por toda a vida. Eu realmente sentia que o tempo para fazer aquilo estava quase chegando ao fim. Eu estava perto de completar trinta anos e fiquei apavorada de usar o término como mais uma desculpa para me isolar, para me fechar ainda mais, ficar assustada com a vida como um todo.

Só que de forma alguma eu estava pronta para correr por um campo. Uma pessoa que tem medo de ir ao supermercado não consegue nem pensar numa ideia tão grandiosa quanto essa. Então não houve nenhum clímax cinematográfico, como eu correndo por uma pradaria ou disparando no meio da chuva. Na verdade, eu não tinha ideia do que estava fazendo e, por um momento, me perguntei se estava louca. Parecia uma coisa muito estranha, sair para correr, mas, mesmo enquanto discutia comigo mesma, eu peguei as minhas chaves e amarrei o tênis.

Coloquei uma legging velha e uma camiseta e caminhei até um beco escuro a trinta segundos do meu apartamento. Ele atendia a dois critérios importantes: era perto da segurança do meu lar e tranquilo o suficiente para ninguém rir de mim. Eu me sentia ridícula e um pouco envergonhada — como se estivesse fazendo alguma coisa errada que não podia ser testemunhada por ninguém. Por sorte, o único sinal de vida era um gato que me olhou com desdém enquanto eu reunia energia para me mexer. Fiquei grata quando ele desapareceu; e qualquer sinal de um ser humano se aproximando me fazia parar na mesma hora. Era um castigo privado honesto demais para ser visto por estranhos.

Coloquei os fones e procurei por uma música boa; acabei escolhendo “She Fucking Hates Me”, de uma banda chamada Puddle of Mudd. Não faz muito o meu estilo, mas a letra era sutilmente raivosa e eu não queria ouvir nada que pudesse me fazer chorar (tudo me fazia chorar). A música tem três minutos e trinta e um segundos, e a frase “she ficking hates me” [“ela me odeia pra cacete”] é dita tantas vezes quanto você pode imaginar. Acho que consegui correr por trinta segundos antes de ser obrigada a parar por causa da minha panturrilha gritando e da ardência nos pulmões. Mas a música estimulava a minha adrenalina, então, descansei por um minuto e comecei de novo. Não sei como, mas consegui manter o ritmo do cantor berrando, enquanto eu murmurava a música, fazia caretas e me arrastava pelo beco.

Consegui completar incríveis três minutos intercalados (quase a música inteira!) antes de desistir e voltar para casa. Eu estava me sentindo melhor? Não. Eu tinha gostado? Também não, mas não tinha chorado por pelo menos quinze minutos e isso era bom o suficiente para mim.

Para a minha própria surpresa, não parou por aí. Eu queria parar, porque era muito desagradável, mas algo em mim superou todas as desculpas. Voltei para o beco no dia seguinte. E no dia depois. As primeiras tentativas foram bem patéticas. Correr alguns segundos, arrastar os pés, parar. Esperar. Repetir. Congelar se alguém aparecer. Me sentir ridícula. Repetir mesmo assim. Sempre no escuro, sempre em segredo, como se eu estivesse cometendo um crime.

Eu não sabia o que estava fazendo ou o que queria tirar dessas corridas. O resultado foi que fui ambiciosa demais nas semanas seguintes e pequenos desastres eram frequentes. Tive uma canelite que doeu pra caramba. Depois corri rápido demais e precisei parar porque estava ofegando feito louca. Então tentei subir uma ladeira. Quando ficou claro que a ladeira tinha vencido, admiti a derrota e peguei um ônibus. Outro dia tive um ataque de pânico no parque do bairro porque calculei errado o horário do pôr do sol e de repente me vi sozinha numa área escura. Correr parecia um idioma que eu não sabia falar, não só porque eu estava incrivelmente fora de forma, mas porque parecia algo feito por pessoas felizes, saudáveis e animadas, não por fumantes neuróticas que tinham medo de tudo.

Eu era o tipo de pessoa que desistia quase na mesma hora se não conseguisse fazer algo direito na primeira vez. Estava vergonhosamente claro para mim que eu não corria bem nem melhorava na atividade. Mesmo assim, para a minha própria surpresa, fui em frente. Continuei me arrastando para cima e para baixo naquele beco escuro por duas semanas. E quando enfim me senti entediada em vez de só aterrorizada ou sem fôlego, decidi ir um pouco mais longe. Nos primeiros meses, me mantive em ruas próximas de casa — o meu cérebro sempre buscando uma rota de fuga —, dando voltas em trechos tranquilos e pulando de susto a cada carro que passava. Eu era uma mulher devagar, triste e com raiva. Mas duas coisas tornaram-se claras para mim. A primeira era que, quando eu corria, não me sentia tão triste. Eu ficava imediatamente mais calma — alguma coisa no meu cérebro parecia desligar, ou, pelo menos, conseguia abrir mão do controle por alguns minutos. Eu não pensava no meu casamento nem no papel que desempenhei naquele fracasso. Não conjecturava se ele estava feliz ou se tivera um ótimo encontro, e não pensava nem um pouco sobre mim. O alívio que isso me dava era imenso.

A segunda coisa, ainda melhor, é que eu não me sentia mais tão ansiosa. Em pouco tempo me vi em partes da cidade que eu não visitava há anos, ainda mais sozinha. Não me refiro ao centro do Soho e à sua multidão animada, mas, dentro de um mês, eu tinha conseguido desbravar os mercados de Camden sem sentir que ia desmaiar ou ter uma crise. Eu não teria conseguido fazer isso andando — tentei inúmeras vezes, mas a ansiedade sempre aparecia, as mãos começavam a suar e o pânico tomava o controle. Por algum motivo, porém, correndo era diferente. O meu cérebro me negou por muito tempo a chance de fazer esse tipo de passeio mundano que as pessoas fazem todos os dias. Quando consegui passar por uma barraquinha vendendo camisetas com os dizeres “Ninguém sabe que eu sou lésbica”, de repente senti que estava vivendo um dia memorável. Concentrada no ritmo dos pés batendo no asfalto, eu não ficava obcecada com a minha respiração, nem com as multidões, nem com quanto estava longe de casa. Eu era capaz de estar numa área que a minha mente tinha antes designado como “insegura” sem sentir que ia desmaiar. Era um milagre.

Certa vez, Joyce Carol Oates descreveu que correr lhe permite escrever, sugerindo que a atividade ajuda porque “a mente voa com o corpo”. Para mim, significa que é como se o corpo levasse a mente para passear. A mente já não está mais no controle e tudo que você precisa fazer é sentir a ardência nas pernas e os braços balançando. Você fica consciente dos batimentos cardíacos, do suor caindo nas orelhas, do movimento do torso com a mudança de passada. Quando alcança determinado ritmo, começa a notar os obstáculos no caminho ou as pessoas a evitar. Vê detalhes em prédios que nunca tinha notado antes. Antecipa o clima à sua frente. É claro que o cérebro tem um papel em tudo isso, mas não é o convencional. A minha mente, acostumada a me assustar com um “e se” eterno, feliz em me atormentar com flashbacks das minhas piores experiências, não conseguia se concentrar quando eu estava àquela velocidade. Eu tinha conseguido enganá-la, ou exauri-la, ou apenas dado a ela algo novo com que lidar.

fim da amostra…


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