Livro ‘Cartas a um jovem terapeuta’ por Contardo Calligaris

Contardo Calligaris, renomado psicanalista, apresenta uma nova edição ampliada de "Cartas a um Jovem Terapeuta", abordando temas essenciais da profissão.

Italiano de nascimento, ele conquistou os brasileiros com seu jeito lúcido, claro e provocativo de abordar questões comuns a homens e mulheres, não importando a idade e convicções políticas, filosóficas e religiosas. Há pouco mais de dez anos publicou a primeira edição de Cartas a um jovem terapeuta. Fez tanto sucesso que, agora, Calligaris lança uma nova edição ampliada com mais conteúdo para os temas já abordados, como a vocação profissional, o primeiro paciente, amores terapêuticos, o dilema “curar ou não curar” e até questões práticas e o que fazer para ter mais pacientes. Mas Calligaris introduz outros pontos também fundamentais na formação do psicoterapeuta, como as condições necessárias para seguir a profissão, quanto custa e o que é preciso ler. Aborda também, de uma forma muito sincera, a sempre conflitante e contraditória relação com a família. E responde uma pergunta muito frequente: por que os terapeutas enxergam tudo pelo prisma da sexualidade?

Páginas: 216 páginas; Editora: Planeta; Edição: 1 (30 de junho de 2019); ISBN-10: 854221658X; ISBN-13: 978-8542216585; ASIN: B08Y2G2KPH

Leia trecho do livro

APRESENTAÇÃO À
NOVA EDIÇÃO

O terapeuta a quem estas cartas se dirigem é, obviamente, um psicoterapeuta, ou seja, um profissional que tenta aliviar as dores do viver à força de escuta e de diálogo, interrogando as motivações conscientes ou inconscientes dos sujeitos que lhe pedem ajuda.

Não deve estranhar que as cartas sejam escritas por um psicanalista. Embora alguns psicanalistas considerem a psicoterapia com arrogância, como uma espécie de aplicação utilitária de sua disciplina, a psicanálise continua sendo, antes de mais nada, uma forma de psicoterapia.

Um detalhe: as trocas que seguem aconteceram inicialmente com dois terapeutas, uma jovem e um jovem.

Ambos recebiam minhas cartas e reagiam, dando-me a chance de uma tréplica.

Mas as Cartas a um jovem terapeuta, desde que foram publicadas, foram objetos de e-mails: comentários e perguntas. A maioria solicitava esclarecimentos e complementos, dialogando com as cartas que já existiam. Alguns me pediam para tratar assuntos que eu não tinha abordado.

Quem me escreveu? Havia jovens que, na hora de escolher uma faculdade ou uma pós-graduação, eram tentados pela profissão de psicoterapeuta. Havia menos jovens que consideravam abandonar uma carreira em curso para se tornarem psicoterapeutas. Havia psicoterapeutas estabelecidos pensando no caminho que os levara até exercer sua profissão, e outros, lutando para se afirmar. E havia pacientes, mulheres, homens, jovens e idosos, perguntando-se quem são e o que fazem as estranhas figuras em quem eles confiam dia após dia, às vezes por anos.

(São Paulo, 2019)¹

DEDICATÓRIA

Este livro, escrito em São Paulo e Nova York entre junho e julho de 2004 e ampliado em São Paulo em 2018-2019, continua dedicado a todas e todos que, no decorrer dos últimos quarenta anos, depositaram sua confiança (e alguma esperança) em mim como terapeuta.

Mais particularmente, ele é dedicado àqueles que passaram pela experiência, ganharam certa vontade de morder a vida com mais gosto e, enfim, como acontece nos melhores casos, esqueceram que a experiência aconteceu, esqueceram meu nome e minha cara.

SUMÁRIO

1. VOCAÇÃO PROFISSIONAL
2. QUATRO BILHETES
3. HÁ CONDIÇÕES PRÉVIAS?
4. QUANTO CUSTA?
5. O QUE DIZ A FAMÍLIA?
6. O PRIMEIRO PACIENTE
7. AMORES TERAPÊUTICOS
8. FORMAÇÃO
9. AS LEITURAS
10. CURAR OU NÃO CURAR
11. O QUE FAZER PARA TER MAIS PACIENTES?
12. QUESTÕES PRÁTICAS
13. CONFLITOS INÚTEIS
14. A SEXUALIDADE PARA A PSICANÁLISE
15. INFÂNCIA E ATUALIDADE, CAUSAS INTERNAS E CAUSAS EXTERNAS
16. QUE MAIS?

1. VOCAÇAO
PROFISSIONAL


Meu jovem amigo,
Imagino que você ainda não tenha decidido qual será sua profissão. Você estaria procurando neste livro alguma indicação para descobrir se quer mesmo se tornar psicoterapeuta. E estaria perguntando: antes de começar uma formação que vai durar no mínimo uma década e custar uma nota preta, será que há como saber se tenho o que é preciso para dar certo?

É uma ótima pergunta. Para ser um bom psicoterapeuta, é útil que a gente possua alguns traços de caráter ou de personalidade que, dito aqui entre nós, dificilmente podem ser adquiridos no decorrer da formação: melhor mesmo que eles estejam com você desde o começo.

Um exemplo, só para começar.

Meu pai era médico, internista e cardiologista, mas funcionava, para muitos de seus pacientes, como o médico da família. A cada ano, no Natal, na Páscoa e no dia de São José (ele se chamava Giuseppe), nossa casa se enchia de presentes. Mas enchia mesmo: a sala era abarrotada de caixas de vinhos e licores, panetones, doces, cestas de frutas exóticas, sem contar a prataria e os objetos variados de decoração, as canetas, as agendas e os conjuntos para escrivaninha. Nos dias que antecediam a festa, a campainha não parava de tocar. Nós, crianças, tínhamos a função e o privilégio de abrir os pacotes, reservando cuidadosamente os cartões que os acompanhavam, para que meu pai pudesse responder agradecendo.

Pois é, se eu tivesse escolhido a profissão de psicanalista e psicoterapeuta para receber a mesma variedade e fartura de presentes, minha vida teria sido um fracasso.

Você pode querer ser médico ou coisa que o valha porque considera essencial ser olhado com gratidão e respeito por seus pacientes e pelos outros em geral. Claro, todo mundo gosta disso, não é? Mas há sujeitos que precisam de muito mais, para quem é crucial ser constantemente objeto de uma veneração amorosa. Quer saber por quê? Pense, por exemplo, no olhar de uma mãe para um caçula que teria nascido depois da morte do pai. Desde seu primeiro vagido, esse filho seria, para a mãe, ao mesmo tempo uma compensação e um memorial do marido que ela perdeu; ele seria objeto de veneração e de eterna gratidão a Deus.

Escolho esse exemplo porque foi o caso, justamente, de meu pai: ele nasceu quatro meses depois da morte do pai (meu avô). Obviamente, não foi isso que fez dele um grande médico. Mas, na escolha de sua profissão, deve ter contado a necessidade de repetir a experiência inicial do olhar adorador de sua mãe. Essa necessidade também deve ter contado na sua capacidade de receber uma gratidão que não se resolvia no pagamento dos honorários e, portanto, se expressava naquelas verdadeiras orgias festivas de presentes.

Pois bem, se, por alguma razão (que não precisa ser a mesma do meu pai), é importante para você se alimentar no reconhecimento e no agradecimento infinitos dos outros, então não escolha a profissão de psicoterapeuta. Por duas razões.

Primeiro, na vida social, o psicoterapeuta não encontra nada parecido com a espécie de gratidão que, em geral, é reservada ao médico (como um agradecimento preventivo, caso acabemos em suas mãos). O psicoterapeuta encontra uma atitude (nem sempre escondida por trás da polidez dos costumes) que é uma mistura de temor com escárnio. Funciona assim, ao redor das mesas de jantar: “Puxa, este cara, aqui ao meu lado, é psicocoiso; vai ver que ele sabe ou entende sobre mim e minhas motivações mais do que eu mesmo sei e certamente mais do que eu gostaria que os outros soubessem”. A medida protetora mais banal é o ataque: “Ah, você é psicanalista? Justamente acabo de ler uma matéria, onde é que era?… sabe, daqueles americanos que provam que a psicanálise é uma baboseira, você leu?”.

Segundo, o psicoterapeuta não deve esperar a gratidão de seus pacientes. Nada de presentes no Natal, na Páscoa ou nenhuma outra festa. Nas curas que proporciona, o psicoterapeuta é, por assim dizer, ele mesmo o remédio. E, nos melhores casos, quando tudo dá certo, ele acaba exatamente como um remédio que a gente usou e que fez efeito: uma caixinha aberta, com as poucas pílulas que sobraram, no fundo do armário do banheiro. A caixinha é guardada durante um tempo, porque nunca se sabe; um dia a gente a encontra, não se lembra mais qual era seu uso, constata que, de qualquer forma, o remédio está vencido e joga fora. E é bom que seja assim.

Tento explicar por quê.

Em regra, idealizamos nossos profissionais da saúde (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, acupuntores, dentistas, eutonistas, psicoterapeutas, a lista é longa). Quando os consultamos, levando-lhes nossas dores, depositamos neles toda nossa confiança, porque imaginamos, supomos que eles saibam sobre nós e nossos males exatamente o que é preciso para que possam nos curar. É bem possível que essa confiança seja excessiva, mas, mesmo em seu excesso, ela é útil para que aconteça uma cura.

Acreditar no médico que nos prescreve um remédio não é tudo, claro; ainda é preciso que ele prescreva o remédio certo. Mas é bem provável que, para quem acredita em seu médico, aumentem as chances de que o remédio prescrito seja eficaz, de que o paciente não caia na percentagem estatística dos que (sempre existem) não obtêm efeito algum com o remédio.

A importância da confiança para que as curas aconteçam vale provavelmente para todas as profissões da saúde. E vale mais ainda no caso da psicoterapia.

Então, por que o psicoterapeuta não poderia esperar o tipo de vínculo duradouro e afetuoso que garante panetones, vinhos e outros presentes nas festas?

Voltarei a isso em outras cartas, mas, desde já, deixo aqui registrado: nenhuma psicoterapia, seja ela qual for, deveria almejar a dependência do paciente. Como disse antes, na psicoterapia, o terapeuta funciona um pouco como o remédio. Ora, transformar a confiança inicial numa eterna admiração e gratidão seria como substituir uma doença por uma toxicomania: você não tem mais pneumonia, mas tem uma necessidade visceral de tomar e venerar antibióticos. Ou, ainda, seria como curar um alcoolista tornando-o heroinômano.

Na verdade, se a psicoterapia faz seu efeito, o paciente para de idealizar o terapeuta.

Tudo isso apenas para dizer que, se você gosta da ideia de ser um notável na cidade e de sentir-se amado, a psicoterapia talvez não seja a melhor escolha profissional para você.

Só uma nota à margem, para ser sincero. Há terapeutas que, aparentemente, cultivam o amor, a admiração e a gratidão de seus pacientes acima de tudo. Eles parecem se importar mais com isso do que com a eficácia dos tratamentos. Ou seja, há terapeutas que escolheram a profissão com uma boa dose daquela vontade de ser amado e admirado, a mesma que, como acabo de dizer, talvez seja uma contraindicação para o exercício da profissão.

Pois bem, devo lhe confessar que alguns desses terapeutas podem ter o maior sucesso: eles se tornam frequentemente, aliás, diretores de escola e (talvez empurrados pela necessidade de serem admirados) podem vir a ser teóricos brilhantes e inventivos. Seus consultórios podem ser, eventualmente, abarrotados, mas eles devem seu sucesso profissional ao amor e à admiração que nunca se esquecem de alimentar em seus pacientes. De fato, pela experiência acumulada, pelo talento e pela capacidade de inspirar confiança, eles são, em geral, ótimos terapeutas no começo das curas. Mas os tratamentos que dirigem duram para sempre, transformam-se em dependência química. Não é raro que esse tipo de terapeuta considere e vivencie mesmo o fim ou a interrupção de uma terapia como uma espécie de traição amorosa de seu paciente. Essa perpetuação de terapias não é o único problema.

É fácil reparar que, em quase todas as orientações da psicoterapia, a história da disciplina não é feita de discussões, confrontação de ideias e resultados, interrogações e pesquisas, mas se apresenta como um vaudeville (nem sempre engraçado), em que se alternam fiéis e infiéis, lugares-tenentes e traidores. Ou seja, é uma história de amores, desamores e ódios pessoais. Nisso, aliás, a psicanálise ganha o prêmio. Pois é, tudo isso tem uma origem comum: os diretores de escola vieram à psicoterapia como crianças decididas a viver para sempre com a agradável sensação de serem objetos insubstituíveis de amores e gratidões maternas. E delegaram a tarefa de manter essa ilusão a alunos e pacientes.

Por isso, insisto. As psicoterapias, em geral, se beneficiariam muito com algumas décadas futuras de menos brilho, menos neurose de seus chefes e mais cuidado com os pacientes. Portanto, por favor, se sua personalidade pede amor e admiração ao mundo, invente uma crença, torne-se médico, mas, pelo bem das psicoterapias, desista da psicoterapia como profissão. Ou então (mas este é um caminho longo), antes de se autorizar a ser psicoterapeuta, faça o necessário para mudar a si mesmo.

Mas deixemos as razões de desistir e vamos ao que importa. Esta carta deveria tratar dos traços de caráter que eu procuraria em quem quisesse se tornar psicoterapeuta. Não sei decidir em qual ordem de importância, mas todos estes eu gostaria de encontrar:

1) Um gosto pronunciado pela palavra e um carinho espontâneo pelas pessoas, por mais diferentes que sejam de você. Proponho-lhe um teste um pouco difícil, mas, afinal, você deve tomar uma decisão importante: bata um papo com dois ou três moradores de rua, aproxime-se, deixe-os falar o que, em geral, ninguém escuta (salvo justamente os psicoterapeutas dos Centros de Atenção Psicossocial). Se você conseguir escutar, digamos, uma hora, sem que o discurso (quase sempre desconexo) abale sua atenção, e se não recuou instintivamente quando eles passaram a mão encardida na sua camisa ou direto no seu braço, passou no teste. Repita, se possível, com outros perfis: pacientes psiquiátricos numa enfermaria ou num hospício, pacientes terminais num hospital geral e pessoas assoladas por um luto.

2) Uma extrema curiosidade pela variedade da experiência humana com o mínimo possível de preconceito. Você pode ter crenças e convicções. Alias, e otimo que as tenha, mas, essas convicções acarretam aprovação ou desaprovação morais preconcebidas das condutas humanas, sua chance de ser um bom psicoterapeuta é muito reduzida, para não dizer nula.

Explico melhor. Você pode ser religioso, acreditar em Deus, numa revelação e mesmo numa ordem do mundo. No entanto, se essa fé comportar para você uma noção do bem e do mal que lhe permite saber de antemão quais condutas humanas são louváveis e quais condenáveis, por favor, abstenha-se: seu trabalho de psicoterapeuta será desastroso. A preocupação moral não é estrangeira ao trabalho psicoterápico, mas, para o terapeuta, o bem e o mal de uma vida não se decidem a partir de princípios preestabelecidos; eles se decidem na complexidade da própria vida da qual se trata.

Um mesmo sintoma pode ser a razão do sucesso ou do fracasso de uma existência. Se você sofre de insônia porque, por exemplo, sua história o condena a ser para sempre a sentinela da casa, pode acontecer que você se torne o responsável noturno mais confiável de uma central nuclear ou, ao contrário, que você atravesse a vida de café em café, numa luta extenuante contra o sono que, obviamente, sobra para o dia. Em suma, a insônia não é nem boa nem ruim. Agora aplique a mesma ideia ao caso de uma preferência ou de uma fantasia sexual e entenderá que um terapeuta que tivesse um juízo moral preconcebido sobre a tal fantasia ou preferência não teria condição de respeitar a singularidade de seu paciente.

Você poderia perguntar: mas será que não há condutas que eu posso julgar desprezíveis, seja qual for seu lugar, origem e função na vida de meu paciente? O que devo fazer, se meu trisavô era Zumbi dos Palmares, e alguém se apresenta, me conta que odeia negros e orientais, acredita na supremacia da raça branca e quer ajuda porque (o exemplo é real) só consegue desejar corpos dessas outras raças?

Pois bem, de duas uma: ou você pode escutar esse paciente sem juízo moral preconcebido (mas sem nenhum, mesmo) ou, então, é um limite, um caso do qual você não pode se ocupar. Encaminhe para outro terapeuta que talvez tenha limites diferentes.

É fácil entender que, se você tiver opiniões morais prontas sobre a metade dos atos possíveis nesta terra, é melhor deixar a profissão de terapeuta para quem tem mais indulgência pela variedade da experiência humana.

3) Este ponto é controvertido: além de uma grande e indulgente curiosidade pela variedade da experiência humana, eu gostaria que o futuro terapeuta já tivesse, nessa variedade, uma certa quilometragem rodada. Claro, sei que Freud era, ao que parece, bem certinho, e isso não impediu que ele se tornasse capaz de lidar como terapeuta (e não como moralista) com sintomas e fantasias sexuais que sua época condenava radicalmente. Também não impediu a “descoberta” da existência da sexualidade infantil, da qual ninguém queria sequer ouvir falar. Como ele conseguiu? É que, na sua própria análise (ou autoanálise que fosse), ele soube encontrar fantasias e desejos que não eram muito distantes dos que animam vidas estranhas e reprovadas socialmente. Ele aprendeu, em suma, que é difícil, senão impossível, encontrar “desvios” pelos quais ao menos uma parte de nossa mente não se tenha engajado em algum momento.

Por que qualquer terapeuta não faria o mesmo?

Acontece que duvido que a coragem analítica de Freud possa ser compartilhada por muitos. Por isso, prefiro contar com a experiência efetiva, ou seja, gostaria que a capacidade de considerar a variedade das vidas e das condutas com carinho e indulgência viesse ao terapeuta da variedade “animada” de sua própria vida. No caso de Freud, essa exigência teria sido inútil e enganosa. Mas, como considero Freud uma exceção, na hora de escolher um terapeuta, minha preferência iria para alguém que não fosse um cartão-postal do conformismo.

Portanto, se você estiver hesitando em escolher a profissão de psicoterapeuta só porque, por uma razão qualquer, você não é um modelo de normalidade, esqueça essa preocupação. Claro, é possível que você ainda encontre no seu caminho instituições de formação muito preocupadas em não comprometer sua aura de respeitabilidade social. Até pouco tempo atrás, por exemplo, havia institutos de formação de psicanalistas que consideravam que um ou uma psicanalista não poderiam ser homossexuais. A justificativa era que os tais sujeitos não teriam chegado à suposta “maturidade genital”, ou seja, àquele estágio (mas seria melhor dizer àquele estado) da sexualidade em que as pessoas transariam só para fazer filhos, direitinho. Provavelmente, tratava-se sobretudo de fazer bonito aos olhos da sociedade bem-pensante, cujos membros são, afinal, os “melhores” pacientes (ou seja, neste caso, aqueles que podem pagar mais). A prova disso é que os mesmos institutos, durante anos, recusaram dar formação a candidatos que tivessem algum tipo de deformidade física. Diziam que os defeitos visíveis impediriam que os pacientes idealizassem seu terapeuta, como é necessário que aconteça, inicialmente, para que a terapia funcione.

Os psicanalistas eram, no começo da história da psicanálise, um bando de tipos excêntricos, marginais da medicina e das ciências sociais. Entende-se que alguns ficassem ansiosos em ganhar cartas de recomendação para os clubes dos notáveis, normais e bonitos. Mas não se entende que essa fachada de normalidade possa ser, hoje, um critério na hora de selecionar candidatos para formação. Enfim, se sua vida sexual for um pouco colorida e você esbarrar numa instituição que condene seu desejo, não hesite, passe longe, siga em frente e procure outra instituição. Lembre-se de duas coisas. Primeiro, um psicoterapeuta (e ainda mais um psicanalista) que define uma conduta como “desvio” não fala em nome da psicoterapia e menos ainda em nome da psicanálise. Ele fala quer seja em nome de seu anseio de normalidade social, quer seja em nome de seu esforço para reprimir nele mesmo o desejo que parece condenar. Segundo, e de modo mais geral, quem estigmatiza categorias universais, como “os homossexuais”, “os sadomasoquistas”, “os exibicionistas” etc., é um atacadista, enquanto a psicanálise trabalha no varejo: a fantasia e o desejo só encontram seu sentido nas vidas singulares.

4) O quarto e último traço que gostaria de encontrar no futuro psicoterapeuta é uma boa dose de sofrimento psíquico. Desaconselho a profissão a quem está “muito bem, obrigado”, por duas razões.

Primeiro, uma parte essencial da formação de um terapeuta que trabalhará com as motivações conscientes ou inconscientes de seus pacientes consiste no seguinte: o futuro terapeuta deve, ele mesmo, ser paciente durante um bom tempo. Certo, é possível, aparentemente, submeter-se a uma terapia ou a uma psicanálise só por razões didáticas, para aprender o método ou, como dizem alguns, para se conhecer melhor. Mas insisto no “aparentemente”, pois, de fato, é improvável que uma psicanálise aconteça sem que um sofrimento reconhecido motive o paciente. O processo não é necessariamente desagradável, mas pede uma determinação e uma coragem que podem falhar mais facilmente em quem não precisa de tratamento. Por que diabos me aventurarei a explorar os porões de minha cabeça, lugares malcheirosos e arriscados, se eu não for empurrado pela vontade de resolver um conflito, acalmar um sintoma e conseguir viver melhor? Uma terapia puramente didática é geralmente uma simulação de terapia.

E eis uma segunda razão para preferir que o futuro psicoterapeuta traga consigo uma boa dose de sofrimento psíquico e precise se curar. Durante os anos de sua prática clínica, no futuro, muitas vezes você duvidará da eficácia de seu trabalho. Encontrará pacientes que não melhoram, agarrados a seus sintomas mais dolorosos como um náufrago a um salva-vidas; viverá momentos consternados em que as palavras que lhe ocorrerão parecerão alfinetes de brinquedo, agitados em vão contra forças imensamente superiores. Nesses momentos (que, acredite, serão frequentes) será bom lembrar que você sabe mesmo (e não só pelos livros) que sua prática adianta. Sabe porque a prática que você propõe a seus pacientes já curou ao menos um: você.

Resumindo, meu jovem amigo que pensa em ser terapeuta, se você sofre, se seus desejos são um pouco (ou mesmo muito) estranhos, se (graças à sua estranheza) você contempla com carinho e sem julgar (ou quase) a variedade das condutas humanas, se gosta da palavra e se não é animado pelo projeto de se tornar um notável de sua comunidade, amado e respeitado pela vida afora, então, bem-vindo ao clube: talvez a psicoterapia seja uma profissão para você.

Abç.

fim da amostra…


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