Livro ‘Recursão’ por Blake Crouch

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Em novo livro, autor do best-seller Matéria escura investiga o poder da memória em trama que costura ficção científica, ação e mistério. E se um dia memórias vívidas de coisas que nunca aconteceram se infiltrassem em sua mente, pintando em tons de cinza todas as suas certezas? É dessa premissa que Blake Crouch parte em Recursão, uma obra tão impactante que teve os direitos de adaptação audiovisual adquiridos pela Netflix, que produzirá um filme e uma série baseados no livro, ambos a cargo de Shonda Rhimes. Barry Sutton é policial em Nova York e convive com a tristeza da morte da filha. Ao ser acionado para intervir em uma tentativa de suicídio, ele se depara com uma mulher que sofre da Síndrome da Falsa Memória, uma doença misteriosa que planta na cabeça de suas vítimas lembranças de vidas que elas nunca tiveram. A neurocientista Helena Smith está desenvolvendo uma tecnologia para a cura do Alzheimer…

Páginas: 320 páginas; Editora: Intrínseca; Edição: 1 (9 de janeiro de 2020); ISBN-10: 8551005367; ISBN-13: 978-8551005361; ASIN: B082BB9N4Q

Leia trecho do livro

Para Jacque

'Recursão' por Blake Crouch

BARRY

2 de novembro de 2018

Barry Sutton para o carro na faixa exclusiva para veículos de emergência na entrada principal do Poe Building, uma torre em estilo art déco que reluz sob a iluminação intensa das arandelas. Ele sai de seu Crown Victoria, cruza depressa a calçada e passa pela porta giratória que leva ao saguão.

O vigia noturno o aguarda junto aos elevadores, segurando a porta de um deles enquanto Barry avança quase correndo, os sapatos ecoando no piso de mármore.

— Qual é o andar? — pergunta Barry.

— Quarenta e um. Saindo do elevador, o senhor vai para a direita e segue até o fim do corredor.

— Mais policiais estão a caminho. Peça que aguardem aqui até que eu dê o sinal.

Em contraste com o edifício que o abriga, o elevador moderno sobe em disparada, e depois de alguns segundos Barry sente a pressão nos ouvidos. Quando as portas enfim se abrem, ele sai diante da placa de um escritório de advocacia. Uma ou outra sala ainda está com as luzes acesas, mas no geral o andar está às escuras. Ele corre pelo piso acarpetado, passando por escritórios silenciosos, uma sala de conferências, uma sala de descanso, uma biblioteca, até que o corredor termina finalmente em uma vasta área de recepção, anexa à maior das salas.

Na penumbra, os detalhes se revelam em tons de cinza: há uma ampla mesa de mogno soterrada por arquivos e papéis; uma mesa circular cheia de blocos de anotação e xícaras de café frio com cheiro amargo; uma pequena bancada apenas com garrafas de uísque Macallan Rare; e, do outro lado da sala, um aquário iluminado que zumbe e abriga um pequeno tubarão e vários peixes tropicais.

Ao se dirigir às portas duplas, Barry silencia o celular e tira os sapatos. Leva a mão à maçaneta e, abrindo a porta devagar, esgueira-se para o terraço.

Ao redor, os arranha-céus do Upper West Side têm uma aparência mística em meio aos luminosos véus de neblina urbana. O ruído da cidade soa alto e próximo — buzinas ricocheteando entre edifícios, e ambulâncias distantes correndo até alguma tragédia. O pináculo do Poe Building está menos de quinze metros acima: uma obra de arte gótica em vidro e aço que coroa o prédio.

A mulher está sentada a cinco metros de distância, ao lado de uma gárgula deteriorada, de costas para Barry. Suas pernas pendem da beirada.

Ele avança um passo, as meias absorvendo a umidade do piso de pedra. Se conseguir se aproximar sem ser notado, poderá puxá-la antes que ela se dê conta do…

— Sinto o cheiro do seu perfume daqui — diz a mulher, sem se virar.

Barry para.

Ela olha para trás.

— Mais um passo e eu me jogo.

É difícil dizer ao certo na penumbra, mas ela parece ter em torno de quarenta anos. Usa um conjunto escuro de saia e blazer, e deve estar ali faz algum tempo, a julgar pelo cabelo já meio mirrado pelo sereno.

— Quem é você? — pergunta ela.

— Investigador Barry Sutton, da Divisão Central de Roubos, da Polícia de Nova York.

— Por que a de Roubos…?

— Mandaram quem estava mais perto. Qual é o seu nome?

— Ann Voss Peters.

— Posso chamá-la de Ann?

— À vontade.

— Tem alguém para quem eu possa ligar?

Ela apenas balança a cabeça.

— Vou vir um pouco mais para cá — avisa ele —, para você não precisar ficar virada para mim.

Ele se afasta e avança num ângulo que o deixa próximo do parapeito, ficando agora a apenas três metros dela. Arrisca um rápido olhar para baixo e sente o corpo inteiro se retesar.

— Vamos lá, sou toda ouvidos — diz a mulher.

— O quê?

— Você não vai tentar me convencer a desistir de pular? Dê o seu melhor.

Enquanto subia de elevador, ele tentou recapitular o treinamento para casos como esse, mas agora, diante da situação real, já não se sente mais tão seguro do que planejou dizer. Sua única certeza é a de que seus pés estão congelando.

— Sei que você não vê uma saída no momento, mas saiba que é só um momento, e momentos passam.

De cabeça baixa, Ann encara fixamente a lateral do prédio de cento e vinte metros de altura, com as mãos espalmadas na pedra desgastada por décadas de chuva ácida. Bastaria um impulso. Ele suspeita de que ela esteja encenando mentalmente como vai ser, acostumando-se aos poucos com a ideia de realmente se jogar. Reunindo aquele restinho de coragem que falta.

Barry nota que ela está tremendo de frio.

— Quer meu casaco? — oferece ele.

— Tenho certeza de que você não vai querer chegar muito perto.

— E por que não?

— Eu tenho SFM.

Barry tem que conter o impulso de sair correndo. É claro que já ouviu falar da Síndrome da Falsa Memória, mas nunca conheceu ninguém que tivesse o problema. Nunca nem respirou o mesmo ar que uma pessoa infectada. Já não tem mais tanta certeza de que deve tocá-la. Preferia nem estar assim tão próximo… Não, que se dane. Se ela tentar pular, ele vai tentar salvá-la, e se com isso acabar contaminado, fazer o quê? É o risco que se assume ao se tornar policial.

— Há quanto tempo? — pergunta ele.

— Numa manhã, mais ou menos um mês atrás, em vez de estar na minha casa em Middlebury, Vermont, de repente me vi num apartamento aqui em Nova York, com uma dor de cabeça excruciante e meu nariz sangrando muito. A princípio, não soube onde estava. Mas então me lembrei… me lembrei desta vida. Aqui, hoje, sou uma agente de investimentos, solteira. Mas tenho… — ela visivelmente engasga com a emoção — … lembranças da minha outra vida, em Vermont. Eu tinha um filho de nove anos chamado Sam. Tinha uma empresa de paisagismo com meu marido, Joe Behrman. Meu nome era Ann Behrman. Éramos muito felizes.

— Qual é a sensação? — pergunta Barry, avançando em um passo furtivo.

— Sensação de quê?

— Das falsas lembranças dessa vida em Vermont.

— Não é só do casamento que eu me lembro. Eu me lembro de discutirmos que tipo de bolo encomendar. Eu me lembro de cada detalhe da nossa casa. Do nosso filho. Cada segundo do nascimento dele. A risada, a marca de nascença na bochecha esquerda. O primeiro dia na escola, e como ele implorava que eu não fosse embora. Mas quando tento pensar em Sam, ele aparece em preto e branco. São olhos sem cor. Sei que ele tinha olhos azuis, mas só vejo preto.

Ela faz uma pausa.

— Todas as minhas lembranças daquela vida são em tons de cinza, como cenas de um filme noir . Parecem reais, mas são assombradas, lembranças-fantasma. — Ela para de tentar conter a emoção. — Todo mundo pensa que a SFM são só lembranças falsas de grandes momentos da sua vida, mas o que dói mais, muito mais, são as pequenas coisas. Não é que eu simplesmente me lembre do meu marido. Eu me lembro do hálito dele pela manhã, quando ele se virava na cama. Sabia que toda vez que ele se levantava antes de mim para escovar os dentes era porque queria transar. É esse tipo de coisa que acaba comigo. Os detalhes minúsculos, tão perfeitos, que me fazem saber que aconteceu de verdade.

— E quanto a esta vida? — pergunta Barry. — Não vale nada para você?

— Talvez aconteça com algumas pessoas com SFM, de preferirem as lembranças atuais às falsas, mas não tem nada nesta vida que eu queira. Eu tentei, por quatro longas semanas. Mas não aguento mais fingir. — As lágrimas abrem caminho por seus olhos pintados de preto. — Meu filho nunca existiu. Você entende o que é isso? Ele não passa de uma linda falha no meu cérebro.

Barry arrisca mais um passo, mas dessa vez ela percebe.

— Não se aproxime.

— Você não está sozinha.

— Estou totalmente sozinha neste mundo de merda.

— Eu conheço você faz apenas alguns minutos e vou ficar arrasado se você morrer. Pense nas pessoas que a amam. Pense como vai ser terrível para elas.

— Eu encontrei Joe — diz Ann.

— Quem?

— Meu marido. Ele mora numa mansão em Long Island. Falou que não sabia quem eu era, mas sei que estava fingindo. Ele tem uma vida completamente diferente. É casado… não sei com quem. Não sei se tem filhos. Agiu como se eu fosse louca.

— Sinto muito, Ann.

— Dói tanto…

— Olha, eu já passei por isso. Já quis dar um fim a tudo. E aqui, na sua frente, posso dizer que hoje fico feliz por não ter feito isso. Por ter tido a força de enfrentar aquilo tudo. Esse momento difícil não é a história completa da sua vida, é apenas um capítulo.

— O que aconteceu com você?

— A vida também me deu uma rasteira. Perdi minha filha.

Ann volta o olhar para o contorno luminoso dos prédios ao longe.

— Você tem fotos dela? Ainda fala sobre ela com as pessoas?

— Sim — responde Barry.

— Pelo menos ela existiu de verdade.

Depois faz o mesmo com o outro pé, que mergulha atrás do primeiro.

— Por favor, Ann…

— Na minha outra vida, na minha vida de mentira, a primeira esposa de Joe, Franny, se jogou do alto deste prédio, quinze anos atrás. Daqui mesmo, onde estou agora. Tinha depressão. Sei que ele se culpava pela morte dela. Antes de ir embora da casa de Joe, em Long Island, falei que ia me jogar do Poe Building hoje à noite, igual a Franny. Sei que soa ridículo e desesperado, mas tinha a esperança de que ele fosse aparecer para me salvar. De que fizesse o que não fez por ela. Quando você chegou, pensei que poderia ser ele. Mas Joe nunca usou colônia. — Ela sorri, um sorriso melancólico. Então diz: — Estou com sede.

Barry olha de relance para o escritório às escuras do outro lado das portas duplas e vê dois policiais de prontidão junto à mesa da recepção. Depois se vira novamente para Ann.

— Que tal você descer daí, então? Podemos entrar e pegar um pouco de água. — Pode trazer um copo para mim?

— Não posso deixar você sozinha.

As mãos dela estão tremendo, e ele nota um brilho súbito de determinação nos olhos dela.

Ela olha para Barry.

— Não é culpa sua — diz. — Iria terminar assim de qualquer jeito.

— Ann, não…

— Meu filho foi apagado.

E, com uma graciosidade casual, ela se joga do parapeito.

HELENA


22 de outubro de 2007

fim da amostra…


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