Livro 30 Histórias Insólitas que Fizeram a Medicina por Jean-Noël Fabiani

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O impensável, o acaso e a genialidade por trás dos maiores avanços médicos desde a Antiguidade

Os cirurgiões muitas vezes se esquecem de que devem sua profissão a um certo Félix de Tassy, um barbeiro que, em 1686, conseguiu curar finalmente a fístula anal do rei Luís XIV. A seu pedido, o soberano instituiu a cirurgia como profissão de direito. Quem não sabe hoje que lavar as mãos é a maneira mais fácil de evitar contaminações? No entanto, em 1850, Inácio Semmelweis sofreu críticas duríssimas por ter implorado a seus colegas que observassem essa regra (hoje) básica de higiene, a fim de salvar jovens gestantes que morriam, uma após a outra, de infecções durante o puerpério. São histórias como essas que o professor Jean-Noël Fabiani nos traz em 30 histórias insólitas que fizeram a medicina. Desde os tempos antigos até o primeiro transplante de coração, são apresentados figuras e acontecimentos que estão muitas vezes na origem das maiores descobertas médicas…

Páginas: 352 páginas; Editora: Vestígio; Edição: 1 (29 de outubro de 2019); ISBN-10: 8554126394; ISBN-13: 978-8554126391; ASIN: B07YNZ727Y

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Biografia do autor: Jean-Noël Fabiani é chefe do departamento do Hospital Europeu Georges-Pompidou em Paris, onde dirige o departamento de cirurgia cardiovascular. É também professor na Universidade de Paris-Descartes e foi responsável pelo ensino da História da Medicina naquela instituição durante dez anos. Autor de muitos livros, foi também um dos primeiros cirurgiões do programa Médicos Sem Fronteiras.

Leia trecho do livro

A ciência da medicina, se não quiser ser
rebaixada à categoria de emprego, deve cuidar
de sua história e tomar conta dos velhos
monumentos que os tempos pretéritos lhe
deixaram como legado.
Émile Littré, 1829

Prefácio

O anfiteatro farabeuf da “velha” faculdade de medicina estava cheio como o metrô em horário de pico. Pelo menos trezentos estudantes. Alunos do primeiro ano. A atmosfera estava bastante tórrida. Em meio ao burburinho das conversas, ouviam-se gritos agudos e irracionais, como de aves de rapina . Os aviõezinhos de papel começavam a decolar dos assentos mais elevados para planar suavemente até o púlpito do professor…

Para um docente, esse é o teste! Essas crianças, que saíam do ensino médio como de um ovo, estavam empolgadas pelo ambiente competitivo desse primeiro ano de estudo, em que só uma baixa porcentagem de calouros tinha chance de chegar ao segundo ano de medicina. Ambiente terrível em que vale tudo!

Cabia a mim dar o primeiro curso de uma nova disciplina que seria considerada nas notas do concurso : a História da Medicina. O ministério da Educação decretara no ano anterior que um ensino de interesse geral deveria ser oferecido em meio à infinidade de matérias científicas ministrada aos estudantes. A ideia em si não era má. Mas fazer os calouros se interessarem por uma reflexão sobre as importantes evoluções da medicina enquanto lhes faltava o bê-á-bá não deixava de ser um imenso desafio.

O curso que me incumbira o reitor exibia um título rebuscado: “As condições necessárias ao desenvolvimento da cirurgia moderna”.

– Você é o cirurgião do conselho de gestão. É preciso dividir a tarefa… Tenho certeza de que você fará isso muito bem – disse-me ele num tom cordial mas que não admitia discussão.

Esse curso, que exigira de mim certo trabalho de bibliografia, supunha em toda a sua lógica uma senhora viagem no tempo, começando pelo combate dos anatomistas, a descoberta da fisiologia do sistema circulatório, o advento da anestesia e o descobrimento da infecção, os grupos sanguíneos e a transfusão, passando pela cirurgia militar, a intubação traqueal e outros fluxos extracorporais… Um verdadeiro panorama!

Além disso, eu sabia que meus slides eram um tanto densos, incluindo datas importantes, nomes de grandes homens que não podiam ser ignorados, eventos fundamentais e seus encadeamentos… O retrato de alguns barbudos do passado deveria animar a apresentação. Mas, ainda assim, ela continuava carrancuda demais para suscitar o interesse ou, ao menos, a atenção da assembleia à minha frente.

Ao entrar no anfiteatro Farabeuf para ministrar esse curso em meio àquele alvoroço, meu pressentimento não era nada bom…

No entanto, eu era o que chamam de um veterano: doze anos de conferências em residência médica, uma variedade de exposições sobre todos os tópicos de cirurgia ou anatomia durante meu período de clínica, e depois uma docência na pós-graduação dentro da minha especialidade, desde que me tornara professor. Normalmente , eu me sentia bem à vontade.

Do púlpito, eu contemplava a massa de estudantes. Vários eram aqueles que não tinham encontrado lugar e se preparavam para fazer anotações sentados nos degraus do anfiteatro. Minha presença não os incomodara sequer por um instante; os mais calmos continuavam a bater papo e outros lançavam projéteis de todos os tipos.

Eu sabia que só teria cinco minutos para me impor… Senão, seria condenado a falar alto no microfone para ser ouvido apenas pelas meninas estudiosas de sempre, sentadas à primeira fila, aquelas capazes de fazer anotações em meio a todas as tempestades.

– Vou contar uma história para vocês…

As conversas perderam a intensidade. Alguns rostos se viraram na minha direção, a expressão intrigada ao identificar aquele que ousava interrompê-los em suas ocupações.

– Ambroise Paré está num campo de batalha…

– Quem ? – urrou um espertinho, imitando o som de um pássaro a fim de fazer rir seus camaradas.

– Um hospital em Paris – retruquei sem demora.

Desta vez, os risos ficaram do meu lado. Prossegui como se nada tivesse acontecido:

– É preciso amputar um soldado cuja perna acabou de ser estraçalhada por um arcabuz. Uma amputação da coxa. Ambroise Paré sabe muito bem que isso é muito perigoso, o soldado corre risco de morrer . Imaginem só… Não existe anestesia!

Murmúrios na sala. – E por que não? – pergunta uma jovem com uma trança afro.

– Porque estamos em 1542, no cerco de Perpignan, e a anestesia só será descoberta durante a segunda metade do século XIX – eu respondi, prosseguindo. – Vários enfermeiros robustos seguram o soldado para que ele não se debata. Paré afia suas longas facas, prepara a serra e esquenta um ferro sobre a fogueira de campanha. A amputação pode começar…

Ninguém mais fala. Os aviões de papel aterrissaram. As expressões brincalhonas se tornaram circunspectas. Como iria Ambroise Paré rea-lizar sua amputação? Por que ele usaria um ferro em brasa? E a serra, para que serviria?

Eu sabia que havia vencido. Poderia agora dar minha aula, enchê-los de datas, nomes e acontecimentos sem que protestassem. Eu sabia que, ao final dessa exposição de duas horas, inúmeros estudantes viriam me fazer perguntas sobre a cirurgia, aos quais eu poderia dizer:

– Se lhes interessar, vocês poderão vir ao meu bloco e ver uma operação.

Evidentemente, essas anedotas não podiam substituir um ensino universitário sobre a história da medicina. Ela é apenas uma faceta da história geral, não pode ser resumida a uma sequência de pequenas crônicas , ainda que sejam perfeitamente exatas. Ela acompanha os grandes movimentos do pensamento, se mistura com fatos militares e políticos de seu tempo. Os médicos do Renascimento são como os homens do Renascimento , com seus defeitos, seus combates, seus questionamentos, e eles servem e obedecem àqueles que detêm o poder.

Poderá o médico moderno extrair da história da medicina algumas lições? Nem mais nem menos do que da grande história, que jamais se repete do mesmo jeito… No máximo, ela evidencia o papel do acaso, a força da observação e o peso de personalidades excepcionais para o progresso e para as descobertas. Ela permiti também estigmatizar as forças dentro do desenvolvimento de uma nova técnica, forças ainda mais exacerbadas quando se trata do ser humano, portanto, para muitos, uma expressão divina.

A história da medicina moderna nos oferece diversos exemplos: a doação de órgãos é debatida em diversos países, a utilização de células embrionárias humanas para clonagem terapêutica está longe de ser consensual, mesmo a transfusão sanguínea é reprovada por alguns… Certas mulheres preferem “dar à luz com dor”, ao passo que a anestesia peridural é autorizada em todos os países industrializados. A circuncisão feminina ainda mutila inúmeras mulheres, inclusive na França…

Nunca se refletiu tanto sobre a ética médica: tornou-se até mesmo uma ciência ensinada nas faculdades de todo o mundo, com professores, assistentes e doutorandos.

Conservemos a modéstia. Certamente, a história da medicina deve analisar os grandes movimentos do pensamento médico e os recolocar em seu contexto, mas, se ela só tivesse sucesso em classificar ligeiramente certas datas dentro da cabeça dos futuros médicos, isso já seria uma vitória. Perguntei certa vez a um estudante que realizava sua prova final de clínica:

– Quem foi Hipócrates?

Ele me olhou de soslaio, procurando a pegadinha, refletiu um instante e depois, repentinamente, lembrando-se da minha própria especialização, lançou, cheio de confiança:

– Um cirurgião cardiovascular, como o senhor!

Então, finalmente, minhas pequenas histórias podiam também achar seu lugar…

1

“Devemos um galo a Esculápio: pague-lhe, não se esqueça”

Presido a banca de uma tese de doutorado praguejando contra o primeiro cônsul Bonaparte e sonhando com o juramento que fazem todos os futuros médicos • Seguimos o grande Hipócrates sob seu plátano da Ilha de Cós, imerso em suas reflexões que lhe sugerem as últimas palavras de Sócrates • Ele decide inventar a deontologia, que será, em sua imensa obra, a única parte que atravessará realmente os séculos.

Era uma defesa de tese na faculdade. Eu era presidente da banca e estava ligeiramente atrasado. Uma operação durara mais que o previsto.

Era preciso ainda me dirigir ao vestiário dos professores para vestir minha toga! Só faltava esse último contratempo. Amaldiçoando Bonaparte e seu espírito organizador de todas as coisas, que decidira e impusera um traje para os membros da universidade, como fizera com o uniforme dos cavaleiros ou a indumentária dos prefeitos: os professores de medicina usariam togas vermelho-carmim, enquanto os doutores em Direito ostentariam a toga escarlate. A epítoga pendurada ao ombro traria uma pata de arminho para os bacharéis, uma outra para os licenciados e a terceira para os doutores. Para que tanto babado?

Impaciente, fechei os 25 botões da toga (nem um a menos, o número era regulamentar!), praguejando contra o Consulado,¹ e coloquei a aba de cambraia branca no colarinho. Os outros membros do júri me aguardavam na sala de teses da faculdade. A candidata estava pronta. O público, na verdade a família e os amigos da aspirante a doutora, já estavam em seus lugares. A defesa poderia enfim começar.

Ao entrarmos, todos se levantaram. Na condição de presidente do júri, sentei-me primeiro e convidei todos a fazerem o mesmo. Em princípio, esta defesa não passava de uma formalidade. A candidata era brilhante. Tinha concluído seu período de residência nos principais centros hospitalares de Paris e seu tema de tese se encontrava na ponta do progresso tecnológico médico. Uma moça alta e morena, os cabelos presos atrás num coque impecável, os olhos discretamente sublinhados pelo delineador , ela estava vestida com um terninho preto e recatado, sapatos de salto alto apropriados à ocasião, nem altos demais nem baixos demais… Estava perfeita no visual “defesa de tese”. Com certa emoção na voz, ela começou sua exposição, ganhando confiança e ritmo rapidamente sobre um assunto que conhecia como a palma da mão. Exprimindo-se num francês perfeito, sem hesitações supérfluas, sem abusar de abreviações e siglas, frequentes nesse tipo de apresentação.

Eu me virei na direção d a plateia , tomado de uma empatia generalizada pela heroína. Vi expressões tensas de angústia. Esperando que ela não tropeçasse! Na primeira fila, seu pai, argelino vindo para a França nos anos 1960 para trabalhar nas linhas de montagem da Renault em Île Seguin. Uma carreira de trabalho e sacrifícios pelos filhos. Ele transbordava de orgulho por essa filha, que contava à sua frente coisas que ele não podia entender, mas que esses senhores importantes, vestidos de vermelho atrás de seu púlpito, pareciam apreciar, pois assentiam com a cabeça às palavras de Fatima. A mãe estava vestida com os véus tradicionais. Ela mal falava francês. E não entendia muito bem o que estava acontecendo, exceto que sua filha se tornava alguém na terra dos franceses, capazes de fazer tanto bem e tanto mal ao mesmo tempo!

Ao terminar sua apresentação, Fatima respondeu às perguntas dos relatores. Algumas um tanto maldosas. Como uma gazela, ela salt ou sobre os obstáculos, de modo brilhante e apurado, sem perder a modéstia. Estivera perfeita. O júri se retirou para deliberação:

– Medalha de prata!

– Claro, concordo plenamente, medalha de prata. Os veteranos das teses tomavam decisão com poucas palavras e já se precipitavam para rubricar os papéis oficiais que faziam de Fatima uma nova doutora em medicina.

– E por que não uma medalha de ouro? – perguntou o mais jovem dos membros do júri, ainda assistente de relator da tese.

– Porque a medalha de ouro faz parte de um concurso particular que se realiza uma vez por ano, e que permite ao médico residente que o obtiver efetuar um ano suplementar nos serviços hospitalares de sua escolha.

O júri retornou à sala das teses da faculdade. Todos se levantaram. Eu comecei:

– Senhorita, o júri a considerou digna de se tornar doutora em medicina com a menção muito honorável e a medalha de prata de nossa faculdade. Você só se tornará médica após o juramento. Trata-se de um dos atos mais importantes de sua nova carreira, ele a compromete junto a seus pares, sua família e toda a comunidade que nós representamos. Queira vestir a toga preta dos médicos, erguer a mão direita e, diante do busto de Hipócrates, nosso mestre…

Palavras consagradas, perpetuando o velho mito, repetidas ao longo dos séculos para sacralizar a profissão de médico:

– Na presença dos mestres desta escola, de meus caros condiscípulos e diante da efígie de Hipócrates, eu juro ser fiel às leis de honra e de probidade no exercício da medicina…

Com a mão direita erguida, Fatima leu com a voz límpida o texto moderno de um juramento, escrito à sombra de um plátano da Ilha de Cós havia mais de 2.500 anos…

Ilha de Cós, 399 antes de Cristo

Bem-disposto aos 60 anos… Hipócrates, médico responsável inconteste da Escola de Cós, crânio calvo, cabelos cortados curtos nas laterais e a barba branca e farta, se encontrava sob seu plátano preferido, cercado por seus alunos e seus assistentes. Eram pelo menos trinta a escutar todos os dias, na hora mais quente, o discurso do velho professor, quando as consultas matinais se encerravam. Depois, quando o sol de Apolo começa sse a descer na direção do mar, eles iriam visitar juntos os pacientes hospitalizados no Esculapião. ²

– Mestre, acabamos de terminar, segundo suas instruções, o terceiro livro sobre as Epidemias, e Políbio quase concluiu o volume Sobre os partos. Ele descreveu, conforme o senhor o instruiu, a teoria dos humores para o volume Sobre a natureza do homem. Quando tivermos terminado o conjunto, teremos completado seus escritos Da medicina antiga, a de nossos pais, os Esculápios…

O mestre não respondeu. Téssalo, o “filho” mais velho, retomou:

– Assim, o conjunto de seus ensinamentos poderá ser conhecido por todos. E nossa escola demonstrará sua superioridade sobre todos os outros, inclusive sobre aqueles de Cnido, que dizem horrores de nossos métodos…

Diante do mutismo persistente de Hipócrates, Políbio vem ao socorro de seu cunhado:

– É seu combate, mestre, que escrevemos. É o combate daqueles que observam o doente e seus sintomas para extrair um diagnóstico e predizer o resultado do mal. É seu combate contra os feiticeiros e charlatães que só curam sob a pretensa influência dos deuses, procurando a previsão no voo dos pássaros ou na configuração de pedrinhas espalhadas no chão!

Hipócrates reergueu a cabeça, que mantivera virada para o chão desde o início da conversa. Por um instante, ele contemplou Políbio. Políbio, o dogmático. Políbio, o melhor dentre todos os seus alunos, aquele que um dia o sucederia no comando da escola. Ele lhe dera sua filha em casamento. Amava-os como seus filhos, Téssalo e Drácon. Um verdadeiro médico, até a alma. Eles tinham escrito juntos os textos sobre o parto e tudo o que dizia respeito aos cuidados devidos às crianças. Era ele que se encarregava de toda a pediatria e a obstetrícia de Cós. E, além disso, um talento excepcional para realizar um parto que havia começado mal. O rei das apresentações do lugar… Ao mesmo tempo firme e compassivo, intelectual e prático, original e fiel! Um verdadeiro médico, seu melhor aluno.³ Virando-se então para ele, disse:

– Não se esqueça, Políbio, o que eu já lhe disse: a vida é curta, a arte é longa; a experiência, enganosa; o empirismo, perigoso; o julgamento, difícil. Não basta você fazer aquilo que convém, é preciso também contar com o auxílio do enfermo, daqueles que o assistem e dos elementos exteriores… A medicina que realizamos é a dos phainomenon, daquilo que aparece, e busco desde sempre investigar , associar e compreender à luz do sistema que nos foi transmitido pelos antigos. Mas, segundo a comparação do grande Sócrates, são apenas as sombras projetadas sobre a parede da caverna que nós interpretamos. A realidade nos é inapreensível; talvez, depois de nós, outros poderão fazer melhor, compreenderão o que acontece realmente no interior do corpo, e nossas teorias lhes parecerão ultrapassadas. O que eu lhes transmito é de fato um método e um estado de espírito, mas, infelizmente, poucos conhecimentos…

A luta contra a magia, o pretenso divino… Para Políbio e muitos outros discípulos, este havia sido o verdadeiro combate do mestre. Todos o viram agir quando ele era chamado à cabeceira do leito de um doente: ele chegava à casa, cumprimentava a família e o paciente e, praticamente no instante em que entrava, percebia se este tinha ou não o rosto da morte. Se tivesse esse famoso “aspecto hipocrático”, tal como o descreveu no segundo capítulo dos Prognósticos, ele já sabia que estava diante de um agonizante. Ele nunca abandonaria esse paciente, mas, prudente, logo avisava à família a fim de evitar críticas posteriores.

Quando esse ponto essencial tivesse sido elucidado, ele podia passar ao exame propriamente dito. Aproximava-se lentamente do doente e tentava, de início a certa distância, avaliar seu estado geral. Estava calmo, deitado e relaxado, bem coberto ou, ao contrário, agitado, gesticulando e divagando, banhado de suores? Suas mãos estavam imóveis ou se mexiam no vazio, como se quisessem pegar alguma coisa imaginária?

Após essa observação, Hipócrates se instalava ao lado do leito e interrogava o paciente. Era a anamnese. Nenhuma referência aos deuses. Somente perguntas sobre como ele se sentia: havia comido demais? Sentia-se cansado? Desde quando? Tinha feito esforços incomuns? Hipócrates procurava sempre essa “prófase” que considerava ser a responsável pela doença, e estava convencido de que os deuses não tinham nada a ver com aquilo, que não se tratava de um castigo e muito menos de uma vingança!

Em seguida, o doente era totalmente despido. Ele o examinava pesquisando todos os detalhes de seu corpo dos pés à cabeça. Depois, apalpava todas as partes do corpo, insistindo sobre regiões que parecessem mais sensíveis. Finalmente, o médico escrutava as fezes, a urina, o vômito e a expectoração. Sempre o mesmo procedimento, sempre os mesmos gestos. Hipócrates tinha introduzido a sistematização do exame clínico. Depois, ele impôs que fossem feitas anotações! Era a função do assistente, que registrava tudo sobre tabuletas. Estas eram meticulosamente classificadas e conservadas dentro do Esculapião, um progresso considerável que iria permitir a redação dos Escritos. O assistente então anotava tudo o que via, até mesmo as coisas que parecessem sem importância, pois tal era a instrução do mestre. Era preciso alcançar o grande princípio da “congruência”, ou seja, a reunião de sinais dentro de uma síndrome, para conseguir definir uma doença. Por exemplo, Drácon anotou a seguinte observação, que ele relatara em Epidemias I:

– Entre os doentes que morrem: principalmente os adolescentes, os jovens, os homens na flor da idade, os calvos, as gentes de pele clara, aqueles de cabelos negros e lisos, aqueles de tom moreno, aqueles de costumes levianos, aqueles com a voz seca ou rouca, os de língua presa , os homens de temperamento irritável…

Tudo podia ser importante: a idade, a voz dos pacientes, seus hábitos, seu temperamento. Um dia, talvez outros seriam capazes de extrair conclusões e confirmar sua prognose.

– Um médico deve dizer o que foi, reconhecer o que é e anunciar o que será. Tal era o ensinamento do mestre!

E agora, diante deles, o mestre voltava a pôr tudo em questão. Os discípulos se sentiam decepcionados, quase horrorizados.

Nesse momento, Apuleio, um dos assistentes em Esculapião, entrou, ofegante, diante do areópago e exclamou:

– Rápido, mestre! Um doente acabou de entrar em coma, precisamos do senhor!

Hipócrates, sentado na grama, ergueu-se como se impulsionado por uma mola e, acompanhado de Políbio, precipitou-se para o pavilhão onde os enfermos estavam hospitalizados. Era um jovem paciente, gentil e fleumático, que chegara havia pouco tempo, a pedido de seu pai, para ser consultado pelo mestre. Ele estava estendido, inconsciente, o rosto inerte, os olhos revirados e imóveis, o corpo com espasmos opistótonos, estático em sua extensão, os braços tensos e os dedos crispados. Ao vê-lo assim, diria-se que morreria imediatamente. – Mestre, mestre, o que se pode fazer? – perguntavam Apuleio e os outros enfermeiros que seguravam firmemente o paciente.

Hipócrates acalmou a todos :

– Afastem-se e não o perturbem, ele vai iniciar a fase clônica… E, de fato, o corpo do rapaz foi tomado de tremores violentíssimos, que duraram alguns minutos.

– Olhem bem. As convulsões vão parar, depois ele vai começar a respirar novamente de maneira bem profunda, fazendo um bocado de ruído. Ele ficará então bem flácido e sua urina vai escorrer sem que ele pense em retê- la , pois ainda está em coma. Em seguida, acordará sem se lembrar do que aconteceu. É a amnésia. Vocês o deixarão se recuperar devagar e lavarão sua boca, pois creio que ele mordeu a língua, o que ocorre com frequência. – Um fio de sangue escorria sobre seus lábios.

Drácon, que registrava sobre a tabuleta, discretamente cuspiu no chão.

– O que acaba de fazer não serve a nada, Drácon. Esta doença não é contagiosa. É o mal sagrado. Acho que você o reconheceu. E esse hábito de cuspir quando encontramos esses doentes não faz sentido! Não mais do que o de utilizar fumigações nauseabundas para afastar este mal pretensamente vindo dos deuses. Parece-me que não é mais divino, nem mais sagrado que outras doenças, mas que ele tenha uma causa natural, como outras afecções. O homem considera sua natureza e a crê divina por conta de sua ignorância e de sua credulidade… Aliás, essa doença só aflige os fleumáticos. Na verdade, se preferir assim: todas as doenças são divinas e todas são humanas!

Todos estavam muito impressionados com a prognose do mestre, pois as coisas aconteceram exatamente como ele tinha previsto.

Enquanto iniciava sua visita aos outros doentes do Esculapião, Políbio aproveitou para retomar suas questões:

– Você está vendo, Hipócrates, que toda essa ciência que você acumulou deve ser conhecida pelo maior número de pessoas. Sei que você redigiu um texto sobre a doença sagrada. É fundamental que o incluamos em nossos Escritos

– Eu o farei, Políbio, o dogmático, eu o farei. Mas isso não é o essencial!

Ele prosseguiu sua visita sem mais nada dizer, deixando Políbio na expectativa daquilo que, para o mestre, se tornara essencial…

Ele o saberia.

*

fim da amostra…


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