Livro ‘Quem diria que viver ia dar nisso’ por Martha Medeiros

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Viver deu nisso. Em roteiros: os de cinema, os de viagem, o que são guiados ou desviados pelo destino. Também em paixões: por pessoas, por espaços, por ideias. Deu ainda em tropeços e recomeços, em idas e vindas, em pé no chão e cabeça na lua. Viver, como mostra Martha Medeiros, deu nisso, em mais este livro, espécie de diário poético (ou seria profético?), com suas crônicas que misturam memórias e histórias – as reais e as ficcionais. São textos que escancaram e são descarados. Dão a cara para bater ao falarem de aborto, de arte, de assédio. Mas que, por mais despudorados que sejam, são repletos de amor, humor, calor humano. Porque Martha respira cada palavra que escreve, fazendo delas a matéria viva de sua existência.

Editora: L± Edição: 1 (12 de março de 2018) ISBN-10: 8525437352 ISBN-13: 978-8525437358 Pages: 234 páginas ASIN: B07BJMCVXM

Biografia do autor: Martha Medeiros é uma escritora, jornalista e poeta brasileira, nascida em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em 20 de agosto de 1961. Ela é conhecida por sua prosa poética e pela abordagem intimista de temas como amor, relacionamentos, solidão e autoconhecimento. Formada em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Martha Medeiros começou sua carreira como jornalista em 1985, trabalhando em diversos veículos de comunicação, como a Rádio Gaúcha, o jornal Zero Hora e a revista Claudia. Em 1991, ela publicou seu primeiro livro de crônicas, “Strip-tease”, que foi muito bem recebido pela crítica e pelo público. Desde então, ela publicou diversos outros livros, como “Feliz por Nada”, “Doidas e Santas”, “Trem-Bala”, entre outros. Martha Medeiros é considerada uma das principais escritoras contemporâneas do Brasil, com uma linguagem simples e direta, mas que consegue transmitir uma profunda reflexão sobre a vida e as relações humanas. Suas obras são muito populares entre o público feminino, mas também são apreciadas por homens e pessoas de todas as idades.

Leia trecho do livro

NEM TODO MUNDO

Acreditamos que existe um senso comum regendo nossos gostos e opiniões, porém somos sete bilhões pensando e vivendo de forma muito distinta uns dos outros.

Nem todo mundo é regido pelo dinheiro, por exemplo. Dinheiro é bom, é necessário, e quanto mais, melhor — mas esse “mais” não obceca a todos. Há quem troque o “mais dinheiro” por “mais sossego” e “mais tempo ocioso”. Qual o sentido de trabalhar insanamente se já se tem o suficiente para viver com dignidade?

Nem todo mundo gostaria de morar numa mansão com uma dezena de quartos e espaço de sobra para se perder: tenho uma amiga que desistiu do apartamento cinematográfico onde morava, pois ela não conseguia enxergar os filhos nem conversar com eles — eram longos os corredores e muitas as portas. Parecia que a família vivia num hotel, e não num lar. Trocou por um apartamento menor e aproximaram-se todos.

Nem todo mundo prefere mulheres com cara de boneca e corpo de modelo, ou homens com rosto de galã e corpo de fisiculturista. Imperfeições, exotismo, autenticidade, um look de verdade, natural, sem render-se a uma busca sacrificada pela beleza, ah, o valor que isso ainda tem.

Nem todo mundo gosta de bicho, de doce, de praia, de ler, de criança, de festa, de esportes, e nem por isso merece ser expulso do planeta por inadequação crônica. Seus prazeres estão fora do catálogo da normalidade e ainda assim são criaturas especiais a seu modo, assim como algumas pessoas podem cumprir todas as obviedades consagradas e isso não adiantar nada na hora da convivência: são ruins no trato, fracas de humor e voltadas para o próprio umbigo, apesar de seu exemplar enquadramento social.

Nem todo mundo veio ao mundo para brigar, para reclamar, para agredir, para difamar, para fofocar, para magoar, para se vingar, para atrapalhar — hábitos de muitos, arrisco dizer que da maioria, já que é mais fácil chamar atenção através do nosso pior do que do nosso melhor. O pior faz barulho, o pior ganha as manchetes, o pior gera comentários, o pior recebe os holofotes, o pior causa embaraço. Porém, há os que vieram em missão de paz e não se afligem pela discreta repercussão de seus atos.

Nem todo mundo quer casar, quer filhos, quer fazer faculdade. Nem todo mundo quer ser campeão, presidente, celebridade. Há quem queira apenas viver de um jeito que não seja julgado por ninguém, há quem queira apenas se expressar de um modo menos exuberante e mais íntimo, há quem queira apenas passar pela vida nutrindo a própria identidade, sem se preocupar em colecionar seguidores, admiradores e afetos de ocasião.

Em vez de jogar para a torcida, há quem queira somente estar bem consigo mesmo.

21 de junho de 2015

BELEZA

A palavra beleza, assim, solitária, virou gíria. Vou te buscar às nove. Beleza. Semana que vem estarei em São Paulo. Beleza. Entrou em cartaz o novo filme do Jorge Furtado. Beleza.

Real beleza, quase acertou.

Poderia comentar as ótimas atuações do elenco, com destaque para a expressiva participação de Francisco Cuoco. Ou salientar a relevância da trilha sonora, que ficou a cargo de Leo Henkin. Ou registrar os ares de As pontes de Madison que o filme evoca. Ou ainda celebrar as pausas e a economia dos diálogos sempre precisos do Jorge. Enfim, é mais um produto da grife Casa de Cinema, mas me deu vontade mesmo é de tentar definir o que é beleza, que está muito além de uma simples gíria.

Alguns consideram que o encantamento pelo belo é prova irrefutável da nossa superficialidade, seria uma declaração de esnobismo. Ora, é justamente o contrário. A apreciação da beleza está intimamente ligada à nossa compreensão do quanto viver é difícil, ou seja, é prova da nossa profundidade. Quanto mais sintonizados com as dificuldades da existência, mais desfrutamos o belo.

O valor da beleza está na consciência do que é trágico.

A beleza de um quadro, de uma música, de um jardim, de um poema, de uma paisagem, do perfil de uma moça ou da postura de um rapaz é apreciada justamente pelo contraste com a decrepitude que há em torno, com a decadência das formas, com a frieza dos costumes, com o apodrecimento das intenções, com o feio em nossas vidas. A beleza é o alívio para a desesperança.

Percebê-la é um consolo, uma confirmação de que não fomos sepultados, não capitulamos, não fomos engolidos pela descrença.

Admiro quem reconhece o belo em todas as suas variadas manifestações, em quem se sensibiliza com ele em vez de criticá-lo como se fosse algo dispensável. A beleza é sempre uma homenagem. Contemplá-la é um gesto de grandeza. Pobres daqueles que a desprezam, que não percebem que a crueza da humanidade é uma desordem a ser combatida, que julgam natural permanecer em constante estado de dor e não alcançam jamais o êxtase, o enlevo, o deleite que resgata nossa essência.

A beleza de uma pessoa está em tudo que ela é. Tanto em sua aparência física (quando se tem a sorte de nascer com ela), como — e principalmente — na beleza buscada pelo espírito como forma de resistir à hostilidade que nos cerca, à escuridão e sua opressiva nuvem negra. Escapamos do breu através de olhares, silêncios, gestos, sorrisos, sutilezas, delicadezas, instantes, sintonias.

É apenas um filme e não trata de nada disso. Ou trata. Vai depender do seu olhar, do que você enxerga, do quão terna e bela é sua mirada pra vida.

5 de agosto de 2015

GAMBÁ COM GAMBÁ

Que os opostos se atraem, não tenho dúvida, mas compensa essa teimosia? Semanas atrás, conversei com uma mulher inteligente, divertida, com mais de sessenta anos e três casamentos nas costas. Ela me disse que até hoje sente falta do primeiro marido, com quem tinha afinidades infinitas e com quem viveu uma relação sólida e longeva. Lamenta ter abandonado esse casamento para sair atrás de aventuras, pois, segundo ela, não adianta querer inventar: “gambá gosta de gambá, elefante gosta de elefante, é assim que os pares funcionam”.

Tenho visto muito gambá com coelho, gaivota com jacaré, urso com leopardo, e o resultado dessas parcerias é um misto de excitação com frustração. O diferente nos desafia, mas também nos cansa. É comum nos abrirmos para esse tipo de arranjo quando somos jovens inclinados a viver no fio da navalha, mas vamos combinar que, depois de tanta batalha para encontrar o amor ideal (supondo que ele exista), melhor encurtar o caminho e aceitar o óbvio: girafa com girafa, morcego com morcego.

Acredito que alguém que gosta de ler pode se entender com aquele que não gosta, que quem acorda cedo pode se dar bem com quem dorme até o meio-dia, que quem é viciado em esportes pode se encantar por um sedentário — mas um desacordo a cada vez, por favor. Reunir todos esses antagonismos num único casal é provocar o destino. É difícil ele sorrir para uma dupla de desajustados.

Eu já arranquei o adesivo “vive la différence” do vidro do meu carro. Agora quero seguir viagem com quem celebra as semelhanças.

Em se tratando de amigos, colegas e outros que compõem o elenco das minhas relações, a diversidade de ideias e de gostos me atrai. Mas para dividir comigo o volante, intimamente, melhor evitar duelos. Que nós dois gostemos de estrada. Que nós dois gostemos de dormir à noite. Que nós dois gostemos de sexo. Que nós dois tenhamos uma visão desestressada da vida. Que nós dois gostemos de rock. Que nós dois não gostemos de ver filmes dublados. Que nós dois não precisemos de muito luxo para ser feliz. Que nós dois gostemos de conversar um com o outro. Que nós dois gostemos de praia. Que nós dois gostemos de natureza. Que nós dois gostemos de Londres. Que nós dois gostemos de rir. Que nós dois não sejamos preconceituosos. Que nós dois tenhamos consciência de que estamos aqui de passagem e que é preciso aproveitar este instante. Que nós dois não sejamos evangélicos. Que nós dois sejamos cuidadosos um com o outro, amorosos um com o outro. Que nós dois sejamos honestos. Que nós dois saibamos fazer uso moderado das redes sociais. Que nós dois não sejamos reféns de grifes, mas tenhamos bom gosto. Que nós dois gostemos muito de vinho. Gambá com gambá.


16 de agosto de 2015

ESCUTA

Eu estava diante de um cenário deslumbrante que poucas vezes vi igual. O lugar chama-se Tonnara di Scopello, uma baía minúscula no noite da Sicília, na Itália. A beleza era de deixar qualquer um sem palavras, mas ao meu lado estava uma mulher que tinha palavras de sobra e provavelmente já estivera naquele recanto uma centena de vezes a ponto de não se deixar embasbacar pela vista. A única coisa que ela queria — precisava! — era falar. Quando cheguei, ela já estava ao telefone. Quando fui embora, ela ainda não havia desligado. Parecia longe de ter esgotado o assunto.

Italianos falam muito, reza a lenda. Mas ela abusava do estereótipo. Não parou de falar nem quando uma menininha de uns quatro anos, que imaginei ser sua filha, veio solicitar sua atenção. Ela passou a mão na cabecinha da criança, enxotando-a com suavidade, e com a outra continuava segurando o celular junto ao ouvido. Em pé, de biquíni, caminhava dois passos para frente e voltava os mesmos dois passos, ininterruptamente. E falava. E falava. Meu conhecimento do idioma é limitado, mas suficiente para perceber que ela não estava ditando um discurso e tampouco estava apresentando a defesa da sua dissertação de mestrado. Ela estava simplesmente conversando sobre a vida, contando casos.

Por um instante, supus que no outro lado da linha haveria um excelente ouvinte. Mas não me surpreenderia se fosse outra pessoa que também não parasse de falar. Porque nesse ponto chegamos: escutar, hoje em dia, é o de menos. A parte desimportante da convivência.

Aprecio a concisão, logo, fico meio impressionada com quem dá voltas sobre o mesmo tema, com quem reproduz diálogos inteiros (“então ela disse isso, e ele respondeu aquilo, e ela retrucou assim, e ele então falou que…”), com quem entra em detalhes desnecessários a fim de espichar a conversa, com quem não finaliza o pensamento, e sim emenda um no outro até que se perde: “Onde é que eu estava mesmo?”. Ora, estava encantado com o som da própria voz. Encantado por ainda existir comunicação verbal nesse mundo de tantas abreviações digitais. Encantado por ser o narrador, o protagonista da cena. Quem não? Somos todos meio italianos, principalmente em mesas de bar, onde todos falam, ninguém escuta ninguém e voltam todos para casa embriagados de afeto e amizade.

Mas escute: se alguém ainda silencia e presta atenção no que você diz (não vale o analista), leve em conta o romantismo dessa atitude, a declaração muda que está sendo oferecida carinhosamente a você. Como diz um amigo meu, amar nada mais é do que ouvir com prazer histórias que não nos interessam.

Do outro lado da linha daquela mulher siciliana talvez houvesse um homem apaixonado. Prefiro essa ilusão a imaginar que era outra matraca que também não escutava nada.


20 de setembro de 2015

NANDO

Com o celular na mão, percorro a timeline de pessoas que conheço e ali vejo de tudo, desde bailes de debutantes até manifestações políticas raivosas, desde homenagens a animais de estimação até piadas cruéis. Passo batido pela maioria das postagens, mas curto as indicações culturais, as viagens, o bom humor, as alegrias alheias. Ainda assim, me pergunto: onde me situo em meio a tantas ideias, tanta informação, tantos perfis?

Off-line. Foi onde me reencontrei. Com o celular mudo dentro da bolsa, dei atenção plena somente a ele, no palco, seduzindo e capturando a todos, música após música. Cada pedacinho de letra cantado com a alma fazia me sentir privilegiada por assisti-lo ao vivo pela primeira vez, domingo passado. Estou falando do show de Nando Reis, ex-Titãs, ex-namorado de Mansa Monte, ex-melhor amigo de Cássia Eller e ex-feio — porque até bonitinho se tornou depois de tanto sucesso.

Nando Reis, que eu só conhecia desses estereótipos, desses resumos, recuperou minha inocência, me fez sorrir por dentro, acho que até meio ruborizada fiquei.

Quem tem projeção hoje em dia? Aquela criatura sinistra que preside a Câmara, os ladrões que se apoderam do dinheiro público, os protagonistas de conchavos e alianças vexatórias. Logo, é questão de sobrevivência fugir para um território neutro a fim de escutar um branquela ruivo, às vezes desafinado, que canta e celebra o amor. Soa como petulância evocar esse assunto em meio às turbulências políticas, mas é disso que se trata a coluna de hoje: o amor.

Nando Reis, acompanhado apenas por dois violões, fez um espetáculo doce. Roqueiro em seu DNA, mas doce, cálido, poético. Não só pela poesia de suas canções, mas também por ter lido, entre uma música e outra, poemas de Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, Paulo Mendes Campos. Naquele teatro escuro, eu pensava: o que vale na vida, afinal? Aquilo que acontece lá fora ou o que acontece aqui? Como equalizar essas divergências?

A resposta estava dentro de mim. Sempre está dentro de nós. A realidade é a narrativa que contamos a nós mesmos. A minha poderia começar assim: “Estranho seria se eu não me apaixonasse por você…”, que é o primeiro verso da música All Star, composta por ele e eternizada por Cássia anos atrás.

Nando, estranho seria se eu não me apaixonasse por você, se eu não me comovesse, se eu não passasse aquelas duas horas do show recordando meus ex-amores e sonhando com os amores que virão, estranho seria se não me arrepiasse com a possibilidade de um novo encantamento, estranho seria se eu não me enternecesse ao ver alguém tão entregue à própria verdade e ao sentimento, estranho seria se todos nós, na plateia, não nos rendêssemos à raridade da emoção, essa que tanto apanha da razão, mas que ainda insiste, valentemente insiste em manter sua voz.


7 de outubro de 2015

NEWS


Alain de Botton aterrissa nas livrarias com mais uma obra dedicada à filosofia do cotidiano, dessa vez abordando um tema que interessa aos jornalistas em particular e a todos em geral. Notícias — Manual do usuário nos estimula a pensar mais profundamente sobre nossa relação com a imprensa.

Precisamos saber de tudo o que está sendo noticiado? Esse “tudo” é suficiente ou é excessivo? Qual o critério para decidir que um fato merece ser noticiado e outro não?

Há um princípio clássico do jornalismo que diz que notícia não é quando um cachorro morde um homem, e sim quando um homem morde um cachorro. O incomum pauta os veículos de comunicação. Porém, comum e incomum têm se confundido. Assassinatos, estupros, desastres: não estaria na hora dessas desgraças recorrentes dividirem a atenção com as banalidades que ficam de fora das manchetes?

Por vezes, Alain de Botton soa idealista e até um pouco ingênuo, mas é um homem que traz questionamentos relevantes. Diz ele que o noticiário não transcreve a realidade, ele molda a realidade conforme as histórias que publica. Para cada pedófilo, há milhares de pessoas que respeitam as crianças. Para cada agressor de mulheres, há milhares de homens que não reagem com violência. Sem dúvida que é importante revelar os podres da sociedade, mas não se deve esquecer que as notícias que chegam sobre a nação não são a nação, e sim uma parte dela. Imprensa responsável é aquela que também abre espaço para notícias que possibilitem a criação de uma imagem de comunidade que nos pareça boa e sadia, fazendo com que tenhamos vontade de contribuir para que ela se desenvolva.

Não à toa, muitos sites começam a ser criados a fim de alavancar as boas notícias. O problema é que a divulgação de tragédias tem sua serventia. Quando um maluco esquarteja o corpo da própria mulher e o despacha numa mala, suspiramos aliviados por manter controladas nossas fantasias insanas. Quando um adolescente descarrega um fuzil dentro de um cinema, nosso espanto se mistura com a certeza reconfortante de que loucos são os outros.

Sobre os refugiados: todos se sensibilizam com sua situação, mas por quantos minutos? Três, quatro? Enquanto durar a matéria na tevê? Não sabemos como é a vida corriqueira de quem vive em países com uma cultura tão diversa. O que comem no café da manhã, como namoram, o que fazem no fim de semana, como criam os filhos, que músicas escutam. Não há o olhar microscópico sobre seu universo, são apenas estranhos com o qual não nos identificamos, e essa falta de empatia mantém o drama deles longe das nossas preocupações imediatas.

Amanhã haverá novas más notícias nos jornais. Elas fazem parte do cotidiano, mas não contam a história toda. Que procuremos saber mais da vida através de documentários, filmes, livros. Quanto mais abrangente nossa visão das coisas, menos desumano nos parecerá esse mundo.


11 de outubro de 2015

VOCÊ, EU E NOSSOS AMIGOS

Antes da era tecnológica, a gente via os amigos de vez em quando, em encontros eventuais. Agora eles estão na palma da mão. Sabemos tudo o que eles pensam e o que fazem, as informações são atualizadas em minutos, e o resultado disso? Fé na humanidade.

Se depender de você, de mim e de nossos 3.768 amigos, ou 7.543, ou 21.544 (quantos amigos você tem?), o mundo está salvo. Porque, veja bem: somos todos bons. Somos todos justos. Somos todos inteligentes. Somos todos amorosos. Somos todos honestos. Escândalos políticos não têm nada a ver com a gente: somos todos críticos, atentos, lúcidos. E estamos todos estupefatos, lógico. Acreditávamos que a sociedade era íntegra, já que somos todos íntegros.

Todos nós amamos os animais, adotamos cachorros de rua, gatos abandonados, porquinhos-da-índia. Cuidamos deles, nos importamos com eles, temos por eles um amor que se equipara ao amor que sentimos por nossos filhos. Ah, nossos filhos. Somos todos pais espetaculares de filhos que não se drogam, não bebem, não são jovens indiferentes, não são preguiçosos, não são acomodados, não estão perdidos, não são sedentários. Foram crianças excepcionais e não poderia dar noutra coisa: hoje são adultos incríveis. É de família. Benção do DNA.

Somos todos ecologistas, amantes da natureza, adoradores de crepúsculos, mares, florestas. Não pisamos na grama, não poluímos os rios, não jogamos bituca de cigarro no chão, somos a favor da energia eólica e solar, reverentes às flores, às montanhas, às cachoeiras, às árvores. Tudo documentado em fotos, milhares delas.

Somos a favor dos refugiados, das empregadas domésticas, dos gordos, dos gays, dos pobres, das mulheres, das crianças, dos negros, dos chineses, dos sírios, dos mendigos, dos feios, dos albinos, dos transgêneros, dos haitianos, dos anões, dos favelados, dos nudistas.

Somos todos conscientes e defendemos os direitos humanos.

Somos todos bem-amados, bem-humorados e temos bom gosto. Todos nós respeitamos as regras de trânsito. E o nosso time só perdeu porque o juiz roubou.

Não temos religião, mas somos espiritualizados. Não fazemos parte de nenhuma ONG, mas vestimos a camiseta. Dirigimos carros, mas damos o maior apoio para os ciclistas. Não somos vaidosos, apenas usamos nossa imagem a fim de enaltecer boas ideias e intenções. Estamos a serviço de um mundo melhor. Somos todos messias. Todos gurus. E todos nós votamos corretamente nas últimas eleições. O inferno são os outros. Jamais você, eu e nossos amigos. Os 3.768, os 7.543, os 21.544 que estão conectados, que vivem na bolha da autorreverência e que não têm defeitos, a não ser este, que é meio suspeito: o de não ter defeito algum.


25 de outubro de 2015

ENTRO DO SEU CORPO

Quem é dono do que acontece dentro de você?

Sua história passa por dentro do seu corpo. Você é dono de seus arranhões e também das contusões conquistadas em subidas em árvores e quedas de escadas. Dono das cicatrizes externas e internas, dos enjoos de nervosismo diante das broncas paternas, do primeiro pedido de namoro e das provas do vestibular.

Você é dono do seu joelho, do seu cotovelo, do seu estômago, da sua hérnia, da sua pedra no rim. É sua a hepatite, é sua a corrente sanguínea, a adrenalina por ter escapado por pouco de um assalto ou de um acidente.

Você é dono da sua taquicardia na hora de uma entrevista de emprego, você responde pelos quilos a mais depois de passar o fim de semana pulando de um churrasco para uma feijoada. Seus dentes são seus. Sua língua. Seu beijo.

Dentro do seu corpo estão as lágrimas represadas por dores que você esconde embaixo da pele. Esse tumor desgraçado é seu. Essa alegria infinita é sua. Você pensa porque tem um cérebro aí dentro que não é de ninguém mais. Você resolve para onde olhar com seus olhos, o que segurar com suas mãos, com quem compartilhar seu sexo. Você pode vender seu corpo, mas nunca precisou comprá-lo, tem a posse gratuita, legítima, vitalícia e intransferível.

Intransferível.

Através do corpo, você exerce as duas coisas que movem sua vida: o querer e o não querer. Se você deseja, se você resolve, se você pretende, é com o corpo que alcançará seu destino. E você também é dono da sua paralisia, se assim preferir. Tudo o que você sente, tudo o que você é, vem aí de dentro. O que você quer expelir e o que você quer cuidar. Músculos e sentimentos na mesma caixa forte.

Você aborta se quiser. Ou gera se quiser. O corpo é seu. O útero é seu. A história de vida é sua.

Políticos são eleitos para garantir às pessoas (a partir do nascimento, quando se tornam seres sociais) segurança, habitação, transporte, educação, saúde e trabalho. O querer e o não querer de cada um são privados. O que cada mulher traz dentro do próprio corpo é dela, não do Estado.

Não bastasse o aborto ser proibido, agora querem transformá-lo em crime hediondo. Um político, que é um cidadão qualquer, tem o poder de decidir sobre o corpo da minha filha e o corpo da sua. Não importa a vontade delas próprias, suas questões emocionais, psicológicas, íntimas. Não interessa a idade que elas têm, se são religiosas ou ateias, se estão empregadas ou desempregadas, se já são mães de sete ou se jamais quiseram ser mães. Não lhes dão o direito ao medo, nenhum privilégio por terem chegado ao mundo antes, adeus ao livre-arbítrio. Engravidaram, e a partir de então não são mais elas que escolhem.

O querer e o não querer mais pessoal do mundo, administrados por quem não tem absolutamente nada a ver com o assunto.


28 de outubro de 2015

NA REAL

Quando falo sobre minha atividade como escritora, alguns me julgam modesta, mas de modesta não tenho nada. O que tenho é uma maneira muito própria de encarar meu trabalho. É uma aventura, uma sorte, uma oportunidade, nada mais.

Como o estrelismo anda em alta, acabo passando por humilde, mas lendo o livro Grande magia, de Elizabeth Gilbert, encontrei alguém que também tem uma ideia pé no chão sobre o que é ser um artista.

Elizabeth é autora de vários livros, entre eles o best-seller Comer, rezar, amar. Está lançando agora Grande magia — vida criativa sem medo, em que relata sua trajetória profissional e dá uma situada sobre como a coisa funciona.

Assumidamente autoajuda, ela incentiva o iniciante a não ter medo de ser rejeitado, medo de parecer um narcisista, medo de que todo mundo já tenha feito melhor que ele, medo de não ter talento, medo de magoar os parentes, medo de não fazer sucesso. Comece logo, ordena ela. Criar é para os corajosos.

E faz um lembrete importante: não busque a originalidade. Pois é, tenho batido nessa tecla nos eventos literários em que participo, mas Elizabeth Gilbert é mais famosa que eu, então ouça o que ela diz: “A maioria das coisas já foi realizada — mas ainda não foram realizadas por você“. Ou seja, troque originalidade por autenticidade. Faça do seu jeito e veremos o que acontece.

Pode não acontecer nada. Sua arte provavelmente não será importante para os outros. Assim é. Você não veio ao mundo para salvar ninguém. Apenas faça aquilo que sabe e que lhe dá prazer. Se for bom, o resto virá por consequência. Se não for bom, ao menos você apostou. É o que somos todos: apostadores.

A certa altura, ela reproduz no livro uma resposta que Werner Herzog deu a um cineasta independente que se dizia incompreendido, esnobado, preterido, injustiçado e pobre. “O mundo não tem culpa de você ter decidido ser artista. Não é tarefa do mundo gostar dos filmes que você faz, e sem dúvida, ele não tem nenhuma obrigação de financiar seus sonhos. Ninguém está interessado. Se precisar, roube uma câmera, mas pare de reclamar e volte ao trabalho.”

O problema é que ninguém quer ser reconhecido apenas como um criador disciplinado e meia-boca. As pessoas sonham em se transformar em ícones. Ou um Walter Sanes, ou nada. Ou uma Clarice Lispector, ou nem vale iniciar. Se os Titãs conseguiram, por que não eu?

Melhor reduzir as expectativas. O sucesso é um acidente. Simplesmente entre no jogo e pratique muito. Utilize seus momentos de ócio, pois durante o horário comercial será preciso dedicar-se a uma profissão que lhe sustente. Ser artista não é sua profissão. Provavelmente nunca será. E daí? Você não quer se divertir?

Se esse for o real propósito, aí sim, a tal magia pode acontecer.


4 de novembro de 2015

VIDA RESOLVIDA

Eu conversava com alguém sobre um amigo nosso que ainda reluta sobre o que gostaria de ser quando crescer, mas uma velha senhora que nos escutava liquidou o assunto: “Pouca vergonha. No meu tempo, aos 35 anos, as pessoas já estavam com a vida resolvida”.

O jovem rapaz, em questão, tem exatamente 35 anos, casou e separou, não tem filhos e está pensando em fazer outro curso na universidade, já que não se adaptou à primeira profissão que escolheu. De fato, ele não está com a vida resolvida.

Até pouco tempo atrás era assim, tínhamos um norte a seguir: escolhíamos um par e um trabalho, e dali por diante seríamos sensatos se não trocássemos mais de rumo, gozando a aposentadoria dos desejos. Nunca mais se preocupar com nada, apenas aproveitar a tal vida resolvida.

Havia quem simulasse direitinho a acomodação, mas se já naquela época o apaziguamento não era tão bem resolvido assim, imagine hoje.

Hoje, minha senhora, a vida resolvida fica para depois que o vivente bater as botas. Aí sim, estará tudo resolvido, bem resolvido, três palmos abaixo da terra. Antes, tem nada resolvido. Nada.

No fluir dos dias deste século XXI, deixamos de ser adolescentes indecisos para nos tornarmos adultos indecisos, mas vamos tateando, vamos experimentando, que a palavra experiência é que tem justificado todas as atitudes: a experiência de um hobby, de uma viagem, de um amor, de outro amor, e de outro mais. A experiência de trabalhar com fotografia e depois trocar pela experiência de trabalhar como professor de violoncelo, e então dirigir um documentário sobre uma orquestra mirim. E depois abrir um restaurante vietnamita, que logo fechará porque surgiu a oportunidade de viver uma experiência botânica num parque no interior de Goiás. Sonhos prestes a se realizarem, até que outros sonhos chamem e novas experiências se descortinem: a palavra movimento também está muito em uso, vale lembrar.

Experiência e movimento, dupla dinâmica — dinâmica mesmo — que veio substituir casamento, família e profissão, o trio que amarrava o cristão numa vida resolvida.

Bem vertiginosos esses novos tempos, em que é permitido querer tudo e querer mais, em que ser considerado uma pessoa de confiança não implica criar raízes numa única cidade, e tampouco em ter uma única mulher ou um único marido para sempre, mas alguns ao longo de uma vida longa. Filhos do primeiro casamento, do segundo — e no terceiro, aleluia, a lua de mel merecida, com os netos visitando de vez em quando. Inventam-se atividades conforme a demanda: ainda haverá cursos profissionalizantes daqui a alguns anos? A conclusão de uma faculdade será requisito fundamental para garantir um futuro? Ainda existirá futuro, ou o tempo se resumirá a um eterno presente, renovável a cada segunda-feira?

Experiência, movimento.

A vida resolvida era segura, mas muito parada.


15 de novembro de 2015

PORTAS ABERTAS


Nesses últimos dias, diante de um mundo ameaçado pelo terror, deu pra extrair algo de bom. Na sexta-feira, poucas horas depois dos primeiros tiroteios na boate Bataclan, em Paris, ninguém ainda sabia se os atentados haviam cessado, onde estavam os terroristas e qual era a soma das vítimas, mas já havia cartazes nos prédios comunicando: Porte ouverte, que em português significa “porta aberta”. Os moradores da capital francesa, sabendo que muitas ruas estavam sendo fechadas e que não haveria como turistas e transeuntes voltarem a seus hotéis e moradias, colocavam-se à disposição para hospedar desconhecidos naquela noite fatídica.

Diante disso, importa quem é ateu, quem é católico, quem é muçulmano?

Religião serve para confortar diante da finitude e para atenuar angústias, culpas e faltas. Precisam de religião os que não se contentam em recorrer unicamente à razão e que se sentem menos inseguros quando compartilham seu destino com alguma entidade superior, ainda que etérea. Muitos precisam de religião e não há nada de errado em se amparar nela emocionalmente. Mas o sagrado se apresenta de várias outras maneiras.

Generosidade é uma atitude laica. Solidariedade, idem. Boa vontade, amizade, sensibilidade, ternura, comoção. Nada disso está relacionado à conversão a uma doutrina. Não precisamos de líderes, de mártires, de messias para sermos gente direita. Pais, mães, tios, avós e professores geralmente dão bons guias no início da nossa jornada e nem precisam ser santos.

A religião começa a dar defeito quando deixa de ser um consolo pessoal para ser usada politicamente — como a história demonstra. Gire o globo e para onde seu dedo apontar haverá conflitos religiosos insuflados pelo poder que certos grupos radicais se outorgam. Conflito: o revés da paz e da bondade que deveriam ser intrínsecos à vida espiritual.

Morremos todos os dias por bala perdida, negligência, delinquência — terror também —, mas morrer por divergências religiosas nos deixa ainda mais em choque por sua contradição: o divino nunca deveria se atrelar à covardia e à brutalidade.

Enfim, porta aberta para aqueles que não consideram profanos o prazer e a alegria. Porta aberta para quem reza para o Deus que quiser, sem tentar subjugar a vida alheia a seus preceitos particulares. Porta aberta a quem faz o bem, com ou sem religião. Porta aberta para quem precisa de um copo d’água, um abraço, um sofá — e não de discurso, sermão.


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