Livro ‘Zanoni’ por Edward Bulwer-Lytton

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Zanoni é o romance ocultista mais famoso do escritor inglês Edward Bulwer-Lytton. Ainda na juventude, movido por um desejo de saber mais a respeito da Ordem Rosacruz, o autor sai em busca desse conhecimento e acaba chegando às suas mãos um manuscrito em uma linguagem críptica quase ininteligível, bem como a chave para decifrá-lo. O que ele encontra nesses escritos é a impressionante história de um mago que alcança a imortalidade ainda na juventude, obtendo-a por meio do Elixir da Vida. De beleza extraordinária, vasto conhecimento e enorme compaixão pela raça humana, Zanoni transita pelo mundo agregando ainda mais sabedoria e ajudando as pessoas como pode. Até que conhece Viola Pisani, uma cantora de ópera de Nápoles…

Editora: ‎Editora do Conhecimento (1 outubro 2017) Páginas: ‎484 páginas ISBN-10: ‎8576184184 ISBN-13: ‎978-8576184188 ASIN: ‎B07WGQJCLL

Sobre o autor: Um dos escritores mais conhecidos no meio ocultista e esoterista, em especial devido ao conteúdo rosacruz de sua famosa obra Zanoni, o inglês Edward George Earle Bulwer-Lytton foi também poeta e político, atuando durante muitos anos como Membro do Parlamento inglês e conservando uma estreita e longa amizade com o Primeiro-Ministro britânico Benjamin Disraeli. O jovem Edward nasceu em maio de 1803, numa família de razoáveis condições sociais e financeiras. Perdeu seu pai ainda cedo, fato que estreitou seus laços com a mãe, o que o marcaria para o resto de sua vida.

Leia trecho do livro

Zanoni

O livro que vemos a seguir é o título do mais famoso romance ocultista do escritor inglês Edward Bulwer-Lytton (1803-1873).

A narrativa se passa em Nápoles e tem por protagonistas o Conde Zanoni, a cantora de ópera Viola Pisani, o aprendiz de pintor Clarêncio Glyndon e Mejnour. O livro tem como pano de fundo os princípios da Ordem Rosa-cruz, tratando metaforicamente da alma e da busca pelo ideal.

Zanoni, um homem com elevado grau de consciência por ser imortal, cai e perde seus poderes por se apaixonar pela cantora de ópera Viola Pisani. O livro foi traduzido pela primeira vez para o português por volta de 1930 (Editora Pensamento), por Francisco Valdomiro Lorenz, ilustre estudioso de Esperanto e poliglota que nasceu na República Tcheca em 1872 e radicou-se no Brasil, na pequena cidade de São Feliciano, RS, agora chamada Dom Feliciano . Em 1997, o livro já havia sido impresso em  edições, podendo ser encontrado ainda hoje nas livrarias, especialmente aquelas dedicadas a literatura espírita ou esotérica. Curiosamente, é um dos raros exemplos em que o tradutor, não se conformando com o final trágico da estória, resolve dar-lhe continuidade, escrevendo “O Filho de Zanoni”, também publicado pela mesma editora, procurando preservar o estilo do original, com grande sucesso e que também pode ser encontrado nas livrarias, mesmo depois de 55 anos da morte do autor/tradutor.

INTRODUÇÃO

É possível que entre os meus leitores haja alguns poucos que ainda se recordem de uma antiga livraria, que existia, há alguns anos, nas imediações de COVENT GARDEN; digo poucos, porque certamente, para a grande maioria da gente, muito escasso atrativo possuíam aqueles preciosos volumes que toda uma vida de contínuo labor havia acumulado nas empoadas estantes do meu velho amigo D.

Ali não se encontravam tratados populares, nem romances interessantes, nem histórias, nem descrições de viagens, nem “Biblioteca para o povo”, nem “Leitura recreativa para todos”. O curioso, porém, podia descobrir ali uma rica coleção de obras de Alquimia, Cabala e Astrologia, que um entusiasta conseguiu reunir e que, em toda a Europa, talvez, era a mais notável em seu gênero. O seu proprietário havia despendido uma verdadeira fortuna na aquisição de tesouros que não deviam ter saída. Mas o velho D. não desejava, na realidade, vendê-las. O seu coração não se sentia bem, quando um freguês entrava em sua livraria; ele espiava os movimentos do intruso, lançando-lhe olhares vingativos; andava ao redor dele, vigiando-o atentamente; fazia carrancas e dava suspiros, quando mãos profanas tiravam de seus nichos algum dos seus ídolos. Se, por acaso, a alguém atraia uma das sultanas favoritas do seu encantador harém, e o preço dado não lhe parecia ser demasiado exorbitante, muitas vezes era duplicado esse preço. Se vacilasse um pouco, o proprietário com vivo prazer, lhe arrebatava das mãos a venerável obra que o encantava; se aceitasse suas condições, o desespero se pintava no rosto do vendedor; e não eram raros os casos que, no meio do silêncio da noite, tinha bater à porta da moradia do freguês, pedindo-lhe que lhe vendesse, nas condições que desejasse, o livro que batia com prado, pagando-lhe tão esplendidamente o preço estipulado. Um crente admirador do seu Averrois e do seu Paracelso, ele sentia a mesma repugnância, como os filósofos que havia estudado, em comunicar aos profanos o saber que tinha adquirido.

Sucedeu, pois, que, nos anos juvenis de minha existência e de minha vida literária, senti um vivo desejo de conhecer a verdadeira origem e as doutrinas da estranha seita a que se dá o nome de “Rosacruzes”. Não satisfeito com as escassas e superficiais informações que, acerca deste assunto, se pode achar nas obras comuns, opinei que talvez na coleção do Sr. D., que era rica, não só em livros impressos, como também em manuscritos, encontrasse alguns dados mais precisos e autênticos sobre aquela famosa fraternidade, escritos, quiçá, por algum dos membros da Ordem, e que confirmassem, com o valor de sua autoridade e com certas particularidades, as pretensões à sabedoria e à virtude que Bringaret atribuía aos sucessores dos Caldeus e dos Ginosofistas. De acordo com estas suposições, encaminhei os meus passos ao dito sítio, o qual era, indubitavelmente (embora eu tenha que me envergonhar disso), um dos meus passeias prediletos. Porém, não existem, acaso, nas crônicas dos nossos próprios dias, erros e enganos tão obscuros, como os dos alquimistas dos tempos antigos? E possível que até os nossos periódicos vão parecer à nossa posteridade tão cheios de ilusões, como aos nossos olhos parecem os livros dos alquimistas; e, talvez, achem até estranho que a imprensa é o ar que respiramos, quando este ar é tão nebuloso!

Ao entrar na livraria, notei num freguês de venerável aspecto, a quem nunca dantes ali havia encontrado, e cuja presença chamou a minha atenção. Surpreendeu-me também o respeito com que era tratado pelo colecionador, de ordinário desdenhoso.

– Senhor, – exclamou este, com ênfase, enquanto eu estava folheando o catálogo, – nos quarenta e cinco anos que levo dedicado a esta classe de investigações, é você o único homem que tenho encontrado digno de ser meu freguês. Como pode nestes tempos tão frívolos, adquirir um saber tão profundo? E quanto a esta augusta fraternidade, cujas doutrinas, vislumbradas pelos primeiros filósofos, lhes ficaram sendo misteriosas, diga-me se existe realmente, na terra, um livro, um manuscrito, em que se possam aprender as descobertas e os ensinos dessa sociedade?

Ao ouvir as palavras “augusta fraternidade”, excitou-se muito a minha curiosidade e atenção, e escutei com avidez a resposta do desconhecido.

– Eu não julgo – disse o velho cavalheiro – que os mestres da dita escola tenham revelado ao mundo as “suas verdadeiras doutrinas, a não ser por meio de obscuras insinuações e parábolas místicas”, e não os censuro por sua discrição.

Depois de ter dito estas palavras, calou-se e parecia que ia retirarse, quando eu me dirigi ao colecionador, dizendo-lhe, de um modo algo brusco:

– Não vejo em seu catálogo, Sr. D., nada que tenha referência aos Rosacruzes.

–  Os Rosacruzes! – repetiu o velho cavalheiro, olhando-me fixamente, com certa surpresa. – Quem, a não ser um Rosacruz, poderia explicar os mistérios Rosacruzes? E o Sr. poderá imaginar que um membro dessa seita, a mais zelosa de todas as sociedades secretas, tenha querido levantar o véu que oculta ao mundo a Isis de sua sabedoria?

– Bem, – disse o ancião, com um amável sorriso; – se nos virmos outra vez, poderei talvez, ao menos, dirigir as investigações do senhor à fonte mesma do saber.

E, ditas estas palavras, abotoou o, sobretudo, chamou com um assobio o seu cão, e saiu.

Quatro dias depois da nossa breve conversação na livraria do Sr. D., encontrei-me de novo com o velho cavalheiro. Eu ia tranqüilamente a cavalo em direção a Highgate, quando, ao pé da sua clássica colina, distingui o desconhecido, que ia montado num cavalo preto, e diante dele marchava o seu cão, preto também.

Se você encontrar, prezado leitor, o homem que desejas conhecer, cavalgando ao pé de uma longa subida, de onde não pôde se afastar muito, por certa consideração de humanidade à espécie animal, a não ser que ande no cavalo de estimação de algum amigo que lho emprestou, julgo que seria sua a culpa, se não o alcançasse antes dele chegar em cima da colina. Em suma, favoreceu-me tanta a sorte que, ao chegar a Highgate, o velho cavalheiro me convidou a descansar um pouco em sua casa, que estava a curta distância da povoação; e era uma casa excelente, pequena, porém confortável, com um vasto jardim, e das suas janelas gozava-se de uma vista tão bela que seguramente Lucrécio a recomendaria aos filósofos. Num dia claro, podia-se distinguir perfeitamente as torres e sé pulas de Londres; aqui estava o tranqüilo retiro do eremita, e lá longe o “mare-magnum” do mundo.

As paredes dos principais aposentos estavam decoradas com pinturas de um mérito extraordinário, pertencentes àquela alta escola de arte que é tão mal compreendida fora da Itália. Eu fiquei admirado ao saber que essas pinturas haviam sido feitas pela mão do mesmo proprietário. As demonstrações da minha admiração pareceram agradar ao meu novo amigo, e levaram-no a falar sobre este ponto, e notei que ele não era menos inteligente no que se referia às teorias da arte, do que consumado na prática da mesma. Sem querer molestar o leitor com juízos críticos desnecessários, não posso deixar, entretanto, de observar, a fim de elucidar em grande parte o desígnio e o caráter da obra, à qual estas páginas servem de introdução, digo, não posso deixar de observar em poucas palavras, que ele insistia muito sobre a relação que existe entre as diferentes artes, de igual modo como um eminente autor o tem feito com respeito às ciências; e que também opinava que, em toda a classe de obras de imaginação, sejam estas expressas por meio de palavras ou por meio de cores, o artista, pertencente às escolas mais elevadas, deve fazer a mais ampla distinção entre o real e o verdadeiro, – ou, em outras palavras, entre a imitação da vida real e a exaltação da Natureza até o Ideal.

– O primeiro – disse ele – é o que caracteriza a escola holandesa; o segundo, a escola grega. – Hoje, senhor, – repliquei, a escola 8 holandesa está mais com voga.- Sim, na arte de pintar, pode ser, – respondeu o meu amigo, porém na literatura…

– Foi precisamente à literatura que me referi. Os nossos poetas mais novos estão todos pela simplicidade e por Betty Foy; e o que os nossos críticos apreciam mais numa obra de imaginação, é poder-se dizer que suas personagens são exatamente como tiradas da vida comum. Até na escultura.

– Na escultura! Não, não! Ali o ideal mais elevado deve ser, pelo menos, a parte mais essencial! – Perdoe-me, senhor; parece-me que não viu Souter Johnny e Tom O’Shanter.

– Ah! – exclamou o velho cavalheiro, meneando a cabeça, – pelo que vejo, vivo muito apartado do mundo. Suponho que Shakespeare deixou de ser admirado, não é?

– Pelo contrário; a gente adora Shakespeare, porém esta adoração não é mais que um pretexto para atacar a todos os outros escritores. Mas os nossos críticos descobriram que Shakespeare é tão realista!

– Shakespeare realista! O poeta que nunca delineou uma personagem que se pudesse encontrar no mundo em que vivemos, – e que nem uma vez sequer desceu a apresentar uma paixão falsa, ou uma personagem real!

Estava eu pronto a replicar gravemente a este paradoxo, quando adverti que o meu companheiro começava a perder sua calma habitual. E aquele que desejava pescar um Rosa-Cruz, deve cuidar de não turvar a água. Assim, pois, achei que convinha mais dar outro giro à conversação.

– Revenons à nos moutons (Volvamo-nos ao nosso tema), – disselhe; – o senhor me prometeu dissipar a minha ignorância acerca dos Rosacruzes.

– Muito bem! – respondeu-me ele, em tom sério; – porém, com que propósito? Deseja talvez entrar no templo somente para ridicularizar os ritos?

– Por quem me toma o senhor? Certamente, se tal fosse o meu intento, a infeliz sorte do Abade de Vilars seria uma lição suficiente para advertir a toda a gente que não se deve tratar com frivolidade os reinos das Salamandras e dos Silfos. Todo o mundo sabe como misteriosamente foi privado da vida aquele homem de talento, em paga das satíricas burlas do seu “Conde de Gabalis”.

– Salamandras e Silfos! Vejo que incorre no erro vulgar de entender ao pé da letra a linguagem alegórica dos místicos.

Esta observação deu motivo ao velho cavalheiro para condescender a fazer-me uma relação muito interessante e, como me pareceu, muito erudita, acerca das doutrinas dos Rosacruzes, dos quais, segundo me assegurou, alguns ainda existiam, continuando ainda, em augusto mistério, suas profundas investigações no domínio das ciências naturais e da filosofia oculta.

– Porém, esta fraternidade, – disse o ancião, – se bem que respeitável e virtuosa, porque não há, no mundo, nenhuma ordem monástica que seja mais rígida na prática dos preceitos morais, nem mais ardente na fé cristã, – esta fraternidade é apenas um ramo de outras sociedades ainda mais transcendentes nos poderes que adquiriram, e ainda mais ilustres por sua origem. Conhece o senhor a filosofia platônica?

– De vez em quando me tenho perdido em seus labirintos – respondi. – A minha fé, os platônicos são cavalheiros que não se deixam compreender facilmente.

– E, contudo, os seus problemas mais intrincados nunca foram publicados. Suas obras mais sublimes conservam-se manuscritas, e constituem os ensinamentos da iniciação, não só dos Rosacruzes,  como também daquelas fraternidades mais nobres a que me referia há pouco. Porém, ainda mais solenes e sublimes são os conhecimentos que podem respigar-se de seus antecessores, os Pitagóricos, e das imortais obras mestras de Apolônio.

– Apolônio, o impostor de Tyana! Existem seus escritos?

– Impostor! – exclamou o meu amigo. – Apolônio impostor?

– Perdoe me, senhor; eu não sabia que ele era um dos seus amigos; e se o senhor me garante por sua pessoa, acreditarei com gosto que ele foi um homem muito respeitável, que dizia só pura verdade quando se gabava de poder estar em dois lugares distintos ao mesmo tempo.

E isto é tão difícil? — replicou o ancião. – Se lhe parece impossível, é por que nunca sonhou!

Aqui terminou a nossa conversação; porém, desde aquele momento, ficou formada entre nós uma verdadeira intimidade que durou até que o meu venerável amigo abandonou esta vida terrestre. Descansem em paz as suas cinzas! Ele era um homem de costumes muito originais e de opiniões excêntricas; mas a maior parte do seu tempo empregava em atos de filantropia, sem alarde e sem ostentação alguma. Era entusiasta dos deveres do Samaritano, – e assim como as suas virtudes eram realçadas pela mais doce caridade, as suas esperanças tinham por base a mais fervorosa fé. Nunca falava sobre sua própria origem e da história de sua vida, e eu nunca pude elucidar o mistério obscuro em que estava envolvida. Segundo parece, tinha viajado muito pelo mundo, e havia sido testemunha ocular da primeira Revolução Francesa, a respeito da qual se expressava de um modo tão eloqüente como instintivo. Não julgava os crimes daquela tempestuosa época com aquela filosófica indulgência com que alguns escritores ilustrados (que têm as suas cabeças bem seguias sobre os seus ombros) se sentem, atualmente, inclinados a tratar as matanças desses tempos 11 passados; ele falava não como um estudante que tinha lido e macio raciocinado, mas como um homem que tinha visto e sofrido.

O velho cavalheiro parecia estar só no mundo; e eu ignorava que ele tivesse algum parente, até que seu executor testamentário, um primo seu em grau afastado, que residia no estrangeiro, me informou do bonito legado que fizera o meu pobre amigo. Este legado consistia, em primeiro lugar, numa quantia de dinheiro, a qual, julgo que convém guardar, em previsão de um novo imposto sobre as rendas e bens imóveis; e, em segundo lugar, em certos preciosos manuscritos, aos quais este livro deve a sua existência.

Suponho que devo este último legado a uma visita que fiz àquele sábio, si se me permitem chamá-lo com tal nome, poucas semanas antes da sua morte.

Embora lesse pouco da literatura moderna, o meu amigo, com a amabilidade que o caracterizava, permitia-me afavelmente que o consultasse acerca de alguns ensaios literários, projetados pela irrefletida ambição de um estudante novo e sem experiência. Naquele tempo, procurei saber o seu parecer a respeito de uma obra de imaginação, em que eu me propunha pintar os efeitos do entusiasmo nas diversas modificações do caráter. Ele escutou, com sua paciência habitual, o argumento da minha obra, que era bastante’ vulgar e prosaica, e dirigindo-se, depois com ar pensativo, à sua coleção de livros, tirou um volume antigo, do qual me leu, primeiro em grego, e em seguida em inglês alguns trechos do teor seguinte:

“Platão fala aqui de quatro classes de mania”, palavra que, a meu entender, denota entusiasmo, a inspiração dos deuses: Primeira, a musical; segunda, a teléstica ou mística; terceira, a profética; a quarta, a pertencente ao amor”.

O autor citado pelo meu amigo, depois de sustentar que na alma há algo que está acima do intelecto, e depois de afirmar que  em nossa natureza existem distintas energias, – uma das quais nos permite descobrir e abraçar, por assim dizer, as ciências e os teoremas com uma rapidez quase intuitiva, ao passo que, mediante outras, se executam as sublimes obras de arte, tais como as estátuas de Fidias, – veio dizer que “o entusiasmo, na verdadeira acepção da palavra aparece quando aquela parte da alma, que está por cima do intelecto, se eleva, exaltada até aos deuses, de onde provém a sua inspiração”.

Prosseguindo em seus comentários sobre Platão, o autor observa que “uma destas manias” (isto é, uma das classes de entusiasmo) especialmente a que pertence ao amor, pode fazer remontar a alma à sua divindade e bem-aventurança primitivas; porém que existe uma intima união entre elas todas, e que a ordem progressiva, pela qual a alma sobe, é esta: primeiro, o entusiasmo musical; depois, o entusiasmo telético ou místico; terceiro, o profético; e, finalmente, o entusiasmo do amor”.

Escutava eu estas intrincadas sublimidades, com a cabeça aturdida e com atenção relutante, quando o meu mentor fechou o livro, dizendo-me com complacência:

– Ali tem você o mote para o seu livro, a tese para o seu tema.

– Davus sum, non OEdipus, – respondi, meneando a cabeça e com ar descontente. – Tudo pode ser muito belo, mas, perdoe-me o Céu, – eu não compreendi nem uma só palavra de tudo o que acaba de dizer-me. Os mistérios dos Rosacruzes e as fraternidades de que fala, não são mais do que brinquedos de crianças, em comparação com a geringonça dos Platônicos.

– E, contudo, enquanto o senhor não tiver compreendido bem esta passagem, não poderá entender as mais elevadas teorias dos Rosacruzes ou das fraternidades ainda mais nobres, das quais fala com tanta leviandade.

– Oh! Se assim é, então renuncio a toda esperança de consegui-lo. Porém, uma vez que está tão versado nesta classe de matérias, porque não adota o senhor mesmo, aquele mote para um de seus próprios livros?

– Mas, se eu já tivesse escrito um livro com aquela tese encarregarse-ia o meu amigo de prepará-lo para o público?

– Com o maior gosto, respondi eu, infelizmente, com bastante imprudência.

– Pois eu o tomo pela palavra, – replicou o ancião, – e quando eu tiver deixado de existir nesta terra, receberá os manuscritos. Do que diz a respeito do gosto, que hoje predomina na literatura, deduzo que não posso lisonjear-lhe com a esperança de que venha a obter grande proveito em sua empresa; e advirto-lhe de antemão que achará bastante laboriosa a tarefa.

– É a sua obra um romance?

– É romance, e não é. É uma realidade para os que são capazes de compreendê-la; e uma extravagância para os que não se acham neste caso.

Por fim, chegaram às minhas mãos os manuscritos, acompanhados de uma breve carta do meu inolvidável amigo, na qual me recordava da minha imprudente promessa.

Com o coração oprimido, e com febril impaciência, abri o embrulho, avivando a luz da lâmpada. Julguem qual foi o desalento que se apoderou de mim, quando vi que toda a obra estava escrita em caracteres que me eram desconhecidos! Apresento aqui ao leitor uma amostra deles:

e assim por diante, as novecentas e quarenta páginas de grande formato! Apenas podia dar crédito aos meus próprios olhos; comecei a pensar que a lâmpada estava luzindo com um azul singular; e assaltaram à minha desconcertada imaginação vários receios a respeito da profanada índole dos caracteres que eu, sem dar-me conta disso, havia aberto, contribuindo para isto as estranhas insinuações e a mística linguagem do ancião. Com efeito, para não dizer outra coisa pior, tudo aquilo me parecia muito misterioso, impossível!

Já estava eu querendo meter, precipitadamente, esses papéis num canto da minha escrivaninha, com a pia intenção de não me ocupar mais deles, quando a minha vista, de improviso, fixou-se num livro, primorosamente encadernado em marroquim. Com grande precaução, abri este livro, ignorando o que podia sair dali, e – com uma alegria que é impossível descrever – vi que ele continha uma chave ou um dicionário para decifrar aqueles hieróglifos. Para não fatigar o leitor com relação às minúcias do meu trabalho, me contentarei em dizer que por fim, cheguei a julgar-me capaz de interpretar aqueles caracteres, e pus mãos à obra, com verdadeiro afinco. A tarefa não era, porém, fácil; e passaram-se dois anos antes que eu fizesse um adiantamento notável. Então, desejando experimentar o gasto do público, consegui publicar alguns capítulos desconexos num periódico, em que tinha a honra de colaborar, havia alguns meses.

Estes capítulos pareceram excitar a curiosidade do público muito mais do que eu havia presumido; dediquei-me, pois, com mais ardor do que nunca, à minha laboriosa tarefa. Porém, então me sobreveio um novo contratempo: ao passo que eu ia adiantando no meu trabalho, achei que o autor tinha feita dois originais de sua obra, sendo um deles mais esmerado e mais minucioso do que o outro; infelizmente, eu tinha topado com o original defeituoso (*), e, assim, tive que reformar o meu trabalho, desde o 

princípio  até o fim, e traduzir de novo os capítulos que já escrevera. Posso dizer, pois, que, excetuando os intervalos que eu dedicava às ocupações mais peremptórias, a minha desditosa promessa me custou alguns anos de trabalhos e fadigas, antes de poder vê-la devidamente cumprida. A tarefa era tanto mais difícil, porque o original estava escrito numa espécie de prosa rítmica, como se o autor houvesse pretendido que a sua obra fosse considerada, em certo modo, como uma concepção ou um debuxo poético. Não foi possível dar uma tradução que conservasse tal forma, e onde tentei fazê-lo, é, freqüentemente, necessário pedir a indulgência do leitor. O respeito natural com que, ordinariamente, tenho aceitado os caprichos do velho cavalheiro, cuja Musa era de um caráter bastante equívoco, deve ser a minha única desculpa onde quer que a linguagem, sem entrar plenamente no campo da poesia, apareça com algumas flores emprestadas, um tanto impróprio da prosa.

Em honra da verdade, hei de confessar também que, apesar de todos os esforços que fiz, não tenho a certeza absoluta de ter dado sempre a verdadeira significação a cada um dos caracteres hieroglíficos do manuscrito; e acrescentarei que, em algumas passagens, tenho deixado em branco certos pontos da narração, e que houve ocasiões em que, encontrando um hieróglifo novo, de que não possuía a chave, vi- me obrigado a recorrer a interpolações de minha própria invenção, que, sem dúvida, se distinguem do resto, mas que com prazer reconheço, não estão em desacordo com o plano geral da obra. Esta confissão que acabo – de fazer, leva-me a formular a seguinte sentença, com a qual vou terminar: Se neste livro, o caro leitor, encontrar algo que seja de seu gosto, sabe que é, com toda a certeza, produzido por mim; porém, onde achar algo que o desagrade, dirija a sua reprovação ao endereço do velho cavalheiro, o autor dos hieróglifos manuscritos!

LIVRO PRIMEIRO

O MÚSICO

CAPITULO I

“Vergine era D’alta beltà, ma sua beltà non cura: 
Di natura, d’amor, de cieli amici Le negligenze sue sono artifici”.
Gerusal. LIb., canto II, 14-18.

“Era uma virgem de grande beleza, mas de sua beleza não fazia caso: A negligência mesma é arte nos que são favorecidos pela Natureza, pelo amor e pelos céus”.

Na segunda metade do século XVIII, vivia e florescia em Nápoles um honrado artista, cujo nome era Caetano Pisani. Era um músico de grande gênio, mas não de reputação popular; havia em todas as suas composições algo caprichoso e fantástico, que não era do gosto dos “dilettanti” de Nápoles. Era ele amante de assuntos pouco familiares, nos quais introduziam toadas e sinfonias que excitavam uma espécie de terror nos que as ouviam. Os títulos das suas composições lhes dirão, já por si mesmos de que índole era. Acho, por exemplo, entre os seus manuscritos:

“A Festa das Harpias”, “As bruxas em Benevento”, “A descida de Orfeu aos Infernos”, “O mau olhado”;

Londres, Janeiro de 1842.

“As Eumênides”, e muitos outros, que demonstram nele uma grande imaginação que se deleitava com o terrível e o sobrenatural, mas às vezes se elevava, com delicada e etérea fantasia, com passagens de esquisita beleza, até ao sublime. É verdade que, na escolha dos seus assuntos, que tomava da fábula antiga, Caetano Pisani era muito mais fiel do que seus contemporâneos à remota origem e ao primitivo gênio da Opera Italiana. Quando este descendente, embora efeminado, da antiga união do Canto e do Drama, depois de uma longa obscuridade e destronamento, tornou a aparecer empunhando o débil cetro e, coberto com mais brilhante  púrpura, nas margens do Amo, na Etrúmia, ou no meio das lagoas de Veneza, hauriu as suas primeiras inspirações das desusadas e clássicas fontes da lenda pagã; e “A Descida de Orfeu”, de Pisani, era apenas uma repetição muito mais atrevida, mais tenebrosa e mais científica da “Eurídice”, que Jacopo Peri pôs em música quando se celebraram as augustas núpcias de [1]  Henrique de Navarra com Maria de Médicis.

Todavia, como já disse, o estilo do músico napolitano não era agradável em tudo aos ouvidos delicados, acostumados às suaves melodias do dia; e os críticos, para desculparem seu desagrado, apoderavam-se das faltas e das extravagâncias do compositor, que facilmente se descobriam em suas obras, e ponderavam-nas, muitas vezes, com intenção maligna. Felizmente, – pois do contrário o pobre músico teria morrido de fome, – ele não era somente compositor, mas também um excelente tocador de vários instrumentos, e especialmente de violino, e com este instrumento ganhava uma decente subsistência, tendo encontrado uma colocação na orquestra do Grande Teatro de São Carlos. Aqui, os deveres formais e determinados, dados pela sua colocação, serviam necessariamente de tolerável barreira às suas excentricidades e fantasias, ainda que se saiba que não menos de cinco vezes deposto do seu lugar por haver desgostado os executantes e levado em confusão toda a orquestra, tocando, de repente, variações de uma natureza tão frenética e espantadiça que se podia pensar que as harpias ou as bruxas, que o inspiravam em suas composições, se haviam apoderado do seu instrumento. A impossibilidade, porém, de se encontrar um violinista de igual notabilidade (isto é, em seus momentos de maior lucidez e regularidade) era a causa de sua reinstalação, e ele, agora, quase sempre se conformava a não sair da estreita esfera dos “adágios” ou “alegros” das suas notas. Além disso, o auditório, conhecendo sua propensão percebia  imediatamente quando ele começava a desviar-se do texto; e se o músico divagava um pouco, o que se podia descobrir tanto pela vista como pelo ouvido, por alguma estranha contorção do seu semblante, ou por algum gesto fatal do seu arco, um suave murmúrio admonitório do público tornava a transportar o violinista, das regiões do Eliseu ou do Tártaro à sua modesta estante. Então parecia ele despertar, sobressaltado, de um sonho; lançava um rápido, tímido e desculpante olhar em redor de si, e com ar abatido e humilhado, fazia voltar o seu rebelde instrumento ao carril trilhado da volúvel monotonia. Em casa, porém, se recompensava desta relutante servilidade. Agarrando com dedos ferozes o infeliz violino, tocava e tocava muitas vezes até ao amanhecer, fazendo sair do instrumento sons tão estranhos e desenfreados, que enchiam de supersticioso terror os pescadores que viam nascer o dia na praia contígua à sua casa, e até ele mesmo estremecia como se alguma sereia ou algum espírito entoasse ecos extraterrestres ao seu ouvido.

O semblante deste homem oferecia um aspecto característico da gente de sua arte. As suas feições eram nobres e regulares, porem magras e um tanto pálidas; os negros cabelos descuidados formavam uma multidão de caracóis; e os seus grandes e profundos olhos costumavam permanecer fixos, contemplativos, sonhadores. Todos os seus movimentos eram particulares, repentinos e ligeiros, quando o frenético impulso dele se apoderava; e quando andava precipitadamente pelas ruas, ou ao longo da praia, costumava rir e falar consigo mesmo. Contudo, era um homem pacífico, inofensivo e amável, que partia o seu pedaço de pão com qualquer dos “lazaroni” preguiçosos, parando para contemplá-los como se estendiam ociosos, ao sol. Não obstante, esse músico era totalmente insociável. Não tinha amigos; não adulava a nenhum protetor, nem concorria a nenhum desses alegres divertimentos, de que gostam tanto os filhos da Música e do Sul. Parecia que ele e a sua arte eram feitos para viverem isolados e um para o Outro: ambos delicados e estranhos, irregulares, pertencentes aos tempos primitivos ou a um inundo desconhecido: Era impossível separar o homem da sua música; esta era ele mesmo. Sem ela, Pisani era nada, não passava de uma máquina! Com ela, era o rei dos seus mundos ideais. E isto lhe bastava, ao pobre homem! Numa cidade fabril de Inglaterra, há uma lousa sepulcral, cujo epitáfio recorda “um homem, chamado Cláudio Philips, que foi a admiração de quantos o conheceram, devido ao desprezo absoluto que manifestava pelas riquezas, e devido à sua inimitável habilidade em tocar violino”. União lógica de opostos louvores! Tua habilidade no violino, ó Gênio, será tão grande, quanto o seja o teu desprezo pelas riquezas!

O talento de Caetano Pisani, como compositor, se havia manifestado principalmente em música apropriada ao seu instrumento favorito, que é, indubitavelmente, o mais rico em recursos e o mais capaz de exercer o poder sobre as paixões. O violino de Cremona é, entre os instrumentos, o que Shakespeare é entre os poetas. Todavia, Pisani tinha composto outras peças de maior ambição e mérito, e a principal era a sua preciosa, sua incomparável, sua não publicada, sua não publicável e imortal ópera “Sereia”. Esta grande obra prima tinha sido o sonho doirado de sua infância, a dona da sua idade viril; e, à medida que ele avançava na idade, “estava a seu lado como sua juventude”. Em vão Pisani se tinha esforçado para apresentá-la ao público. Até o amável e bondoso Paisielo, mestre de capela, meneava a gentil cabeça, quando o músico o obsequiava com algum ensaio de uma das suas cenas mais marcantes. Contudo, Paisielo, ainda que essa música difira de tudo o que Durante te ensinou como regras de boa composição, pode ser que. . . Paciência Caetano Pisani! Aguarda o tempo, e afina o teu violino!

Por mais estranho que possa parecer à bela leitora, esta grotesca personagem havia contraído aqueles laços que os mortais ordinários são capazes de considerar seu especial monopólio, – tinha-se casado, e era pai de uma filha. E o que parecerá mais estranho ainda, a sua esposa era filha de um calmo, sóbrio e concentrado inglês: tinha muito menos anos de idade do que o músico; era formosa e amável, com um doce semblante inglês; havia-se casado com ele por escolha própria, e (crê-lo-eis?) amava-o ainda. Como aconteceu que ela se casou com ele, ou como este homem esquivo, intratável, impertinente se havia atrevido a propor-lhe, só posso explicá-lo, convidando-lhe a dirigir o seu olhar em redor de si, para depois explicar, primeiro a mim, como a metade dos homens e a metade das mulheres que você conhece, puderam encontrar o seu cônjuge! Entretanto, refletindo bem, esta união não era coisa tão extraordinária. A moça era filha natural de pais demasiado pobres para reconhecê-la ou reclamá-la. Foi levada à Itália para aprender a arte que devia proporcionar-lhe os meios de viver, pois a jovem tinha gosto e voz; vivia em dependência, e viase tratada com dureza. O pobre Pisani era seu mestre, e a voz dele era a única que a jovem havia ouvido desde o seu berço, e que lhe parecia não a escarnecer ou desprezar. E assim. . . o resto não é uma coisa muito natural? Natural ou não, eles se casaram. Esta jovem amava o seu marido; e, jovem e amável como era, podia dizer-se quase que era o gênio protetor dos dois. De quantas desgraças tinha-o salvo a sua ignorada mediação oficiosa contra os déspotas de São Carlos e do Conservatório! Em quantas enfermidades, – pois Pisani era de constituição delicada, – tinha-lhe assistido e dado alimentação! Muitas vezes, nas noites escuras, esperava-o à porta do teatro, com sua lanterna acesa, dando-lhe o seu robusto braço em que ele se apoiava, para ser guiado por ela; se não o fizesse, quem sabe, o músico, em seus abstratos sonhos e desvarios, não se teria arrojado ao mar, em busca da sua ”Sereia”! Por outra parte, a boa esposa escutava com tanta paciência (pois nem sempre o bom gosto é companheiro do verdadeiro amor) e com tanto prazer, aquelas tempestades de excêntrica e caprichosa melodia, até que, por meio de constantes elogios, conseguia levá-lo à cama, quando ele, no meio da noite, se punha a tocar. Eu disse que a música era uma parte desse homem, e esta gentil criatura parecia ser uma parte da música; com efeito, quando ela se sentava junto dele, tudo o que era suave e maravilhoso em sua matizada fantasia, vinha mesclar-se imperceptivelmente com a agradável harmonia. Sem dúvida, a presença dessa mulher influía sobre a música, modificando-a e suavizando-a; Pisani, porém, que nunca perguntava de onde ou como lhe vinha a inspiração, ignorava-o. Tudo o que ele sabia era que amava e abençoava a sua esposa. Ele pensava que lho dizia pelo menos vinte vezes por dia; mas, na realidade, não lho dizia nunca, pois era muito parco de palavras, até para a sua consorte. A linguagem de Pisani era a música; assim como a linguagem da sua mulher era os seus cuidados! Ele era mais comunicativo com seu bárbito, como o sábio Merseno nos ensina a chamarmos a todas as variedades da grande família da viola. Certamente, bárbito soa melhor do que “rabeca”; deixemo-lo, pois, ser bárbito. Pisani passava horas inteiras falando com este instrumento, – louvando-o, censurando-o, acariciando-o; e até (pois assim é o homem, por mais inocente que seja) já o havia ouvido jurar por seu bárbito; mas este excesso sempre lhe causava, em seguida, remorso e penitência. E o instrumento tinha a sua linguagem particular, sabia responder-lhe; e quando ele, o bárbito, ralhava, fazia-o às mil maravilhas. Era um nobre companheiro, este violino! Um tirolês, que havia saído das mãos do ilustre instrumentista Steiner. Havia algo de misterioso em sua grande idade. Quantas mãos, agora já convertidas em pó, tinham feito vibrar suas cordas, antes que passasse a ser o amigo familiar de Caetano Pisani? Até a sua caixa era venerável; tinha sido belamente pintada, segundo se dizia, por Caraci. Um inglês colecionador de antiguidades ofereceu a Pisani mais dinheiro pela caixa, do que este tinha ganhado com o violino. Porém, o músico, a quem pouco importava morar numa choupana, orgulhava-se de ter um palácio para o bárbito, ao qual considerava como seu filho primogênito. Mas ele tinha também uma filha, da qual agora nos vamos ocupar.

Como deverei fazer, ó Viola, para descrever-te? Com certeza, a Música foi, de algum modo, responsável pelo advento desta jovem desconhecida. Pois tanto em sua forma, como em seu caráter, pode-se descobrir uma semelhança familiar com essa singular e misteriosa vida do som, que, noite após noite, andava nos ares, imitando os divertimentos dos espíritos dos elementos nos mares estrelados. . . Viola era formosa, porém de uma formosura pouco comum; era urna combinação harmoniosa de atributos opostos. Os seus cabelos eram de um ouro mais rico e mais puro do que os que vêem no Norte; mas os olhos, totalmente pretos, eram de uma luz mais terna e mais encantadora do que os olhos das italianas, sendo quase de esplendor oriental. A sua fisionomia era extraordinariamente linda, mas nunca a mesma: ora rosada, ora pálida; e, com a variação da sua fisionomia, também variava a sua disposição: Ora era muito triste, ora muito alegre.

Sinto ter que dizer que esta jovem não tinha recebido dos seus pais, em grau satisfatório, o que nós chamamos, com razão, educação. Não resta dúvida que nenhum deles possuía grandes conhecimentos que pudessem ensinar; e, naquela época, a instrução não era tão espalhada entre o povo, como o é hoje. Mas o Acaso ou a Natureza favoreceram a jovem Viola. Ela aprendeu, como era natural, a falar tanto a língua materna como a paterna. Também aprendeu, em breve, a ler e a escrever; e sua mãe, que era católica romana, ensinou-lhe, já na infância, a rezar. Porém, em contraste com todas estas aquisições, os estranhos costumes de Pisani e os incessantes cuidados e ocupações que ele reclamava de sua mulher, faziam com que, muitas vezes, a menina ficasse com uma velha aia que, com certeza, amava-a ternamente, mas não estava habilitada para instruí-la.

Dona Gianetta, a aia, era uma italiana e napolitana completa. A sua juventude era todo amor, e a sua idade madura era toda superstição. Era uma mulher loquaz e indiscreta, – uma palradora. Umas vezes falava à menina de cavalheiros e príncipes prosternados a seus pés, outras vezes lhe gelava o sangue nas veias, aterrorizando-a com histórias e lendas, talvez tão velhas como as fábulas gregas ou etruscas, de demônios e vampiros, – das danças ao redor da grande nogueira de Benevento, e da benzedura contra a mal olhado. Todas estas coisas concorreram silenciosamente para gravar supersticiosas idéias, na imaginação de Viola, que nem a idade, nem a reflexão puderam dissipar. E tudo isso fez com que se afeiçoasse, com uma espécie de mistura de temor e alegria, à música de seu pai. Aquelas toadas visionárias, lutando sempre por traduzir em tons selvagens e desconcertados a linguagem de seres extraterrestres, rodeavam-na desde o berço. Pode-se dizer, pois, que sua imaginação, sua mente estava cheia de música; encontros amorosos, recordações, sensações de prazer ou de sofrimento, – tudo estava mesclado, inexplicavelmente, com aqueles sons que ora a deleitavam, ora a enchiam de terror; isto a afagava e saudava quando abria os olhos ao sol, e fazia-a despertar sobressaltada, quando se encontrava só em sua cama, rodeada da escuridão da noite. As lendas e os contos de Gianetta serviam somente para que a jovem compreendesse melhor o significado daqueles misteriosos tons; forneciam-lhe as palavras para a musica. Era, pois, natural que a filha de tal pai manifestasse cedo algum gosto pela sua arte. Ainda era muito criança e já cantava divinamente. Um grande cardeal – grande igualmente no Estado e no Conservatório – tendo ouvido elogiar o seu talento, mandou buscá-la. Desde aquele momento, a sua sorte ficou decidida: estava destinada a ser a futura glória de Nápoles, a “prima dona” do São Carlos. O Cardeal, insistindo em que se cumprisse sua predição, lhe deu os mais célebres mestres. Para despertar nela o espírito de emulação, Sua Eminência levou-a, numa noite, ao seu camarote, crendo que serviria de alguma coisa ver a representação e ouvir os aplausos que se prodigalizavam às deslumbrantes artistas, as quais ela devia superar um dia. Oh! Como é gloriosa a vida teatral, e como é belo o mundo de música e de canto, que começava a brilhar para ela!

Parecia ser o único que correspondia a seus estranhos e juvenis pensamentos. Afigurava-se-lhe que, tendo vivido até então em terra estrangeira, via-se, enfim, transportada a uma região onde encontrava as formas e ouvia a linguagem do seu país natal. Belo e verdadeiro entusiasmo, elevado pela promessa do gênio! Menino ou homem, nunca será poeta, se não sentiste o ideal, o romance, se não viste a ilha de Calypso diante dos teus olhos, quando, pela primeira vez, levantando-se o mágico véu, se te apresentar o mundo da poesia sobreposto ao mundo da prosa!

E agora começou a iniciação para a jovem. Ia ler, estudar, descrever com um gesto, com um olhar, as paixões que depois devia expressar no palco; lições perigosas, na verdade, para algumas pessoas, mas não para o puro entusiasmo que nasce da arte: para a mente que a concebe exatamente, a arte não é mais que o aparelho onde se reflete o que se põe sobre sua superfície, enquanto está sem mácula, Viola compreendeu a natureza e a verdade, intuitivamente. As suas audições estavam impregnadas de um poder de que ela não era consciente; a sua voz comovia os ouvintes até as lágrimas, ou inspirava-lhes uma generosa ira. Mas estas emoções eram produzidas pela simpatia que manifesta sempre o gênio, até em seus anos de infantil inocência, por tudo o que sente, aspira ou sofre. Ela não era uma mulher prematura que compreendesse o amor ou o ciúme que as palavras exprimiam; a sua arte era um daqueles estranhos segredos que os psicólogos podem explicar-nos, se lhes apraz, dizendo-nos, ao mesmo tempo, porque crianças de uma mente singela e de um coração puro sabem distinguir tão bem, nos contos que lhes são relatados ou nos cantos que ouvem, a diferença entre a arte verdadeira e a falsa, entre a linguagem apaixonada e a geringonça, entre Homero e Racine, – e porque ressoam, dos corações que não têm ainda sentido o que repetem, os melodiosos acentos, tão naturalmente patéticos.

Fora de seus estudos, Viola era uma menina singela e afetuosa, porém um tanto caprichosa, – caprichosa não em seu caráter, pois  que este era sempre afável e dócil, mas em sua disposição de ânimo, que, como já disse, passava da tristeza à alegria e vice-versa, sem uma causa aparente. Se existia alguma causa, só podia atribuir-se às precoces e misteriosas influências que já referi, ao tratar de explicar o efeito produzido em sua imaginação por aquelas estranhas e arrebatadoras correntes de som que constantemente a rodeavam; pois convém notar que aqueles que são demasiado sensíveis aos efeitos da música, se vêem incessantemente acossados, nas suas lidas mais ordinárias, por melodias e tons que os atormentam e inquietam. A música sendo uma vez admitida à alma converte-se em uma espécie de espírito, e nunca morre. Ela percorre, perturbadoramente, os recantos e as galerias da memória, e é ouvida, freqüentemente, tão viva e distinta como quando fendeu os ares pela primeira vez. De quando em quando, pois, estes fantasmas de sons vagavam pela imaginação de Viola; faziam aparecer um sorriso em seus lábios, se eram alegres; anunciavam o seu semblante, se eram tristes; e então ela abandonava de repente a sua infantil alegria e sentava-se num canto, muda e meditativa.

Com razão, pois, em sentido alegórico, podia-se chamar a esta formosa criatura, de forma tão aérea, de beleza tão harmoniosa, de pensamentos e costumes tão pouco comuns, mais justamente filha da música do que do músico; um ser do qual se podia imaginar que lhe estava reservado algum destino, menos da vida comum do que do romance, desses que, pelo que os olhos podem ver, e pelo que os corações podem sentir, deslizam sempre, junto com a vida real, de corrente em corrente, até ao Oceano Negro.

Por isso, não parecia estranho que Viola, mesmo já em sua meninice, e muito mais quando começava a florescer na doce serenidade da juventude virginal, cresse ser a sua vida destinada a participar, fosse em bem ou mal, do romance, cheio de sonhos, que formava a atmosfera da sua existência. Freqüentemente penetrava nos bosquezinhos que cercavam a gruta de Posillipo, – a grande  obra dos antigos cimerianos, – e, sentada ao lado da Tumba de Virgilio, entregava-se a essas visões, a essas sutis divagações que nenhuma poesia pode tornar palpáveis e definidas; porque o poeta que excede a todos que têm cantado, é o coração da juventude sonhadora! Muitas vezes também, sentada ali ao umbral, sobre o qual pendiam as folhas de parreira, e olhando o azulado e sereno mar, passava a jovem as horas do meio-dia outonal, ou os crepúsculos do verão, construindo seus castelos no ar. Quem é que não faz a mesma coisa, – não só na juventude, como também no meio de débeis esperanças da idade madura? Uma das prerrogativas do homem, desde o rei até ao campônio, é sonhar.

Mas esses sonhos eram em Viola mais habituais, mais distintos ou mais solenes do que a maior parte de nós desfruta. Pareciam ser como o Orama dos gregos, – fantasmas proféticos.

CAPITULO II

“Fu stupor, fu vaghezza, fu dileto!”“Foi uma admiração, foi um prazer, foi um deleite!” Gerusal. Líb, canto II, 21.

Enfim, a educação artística acha-se terminada! Viola tem perto de dezesseis anos. O Cardeal declara que chegou o tempo de inscrever um novo nome no Livro de Ouro, reservado aos filhos da Arte e do Canto, mas com que caráter? Qual o gênio a que Viola deve dar forma e vida? Ah! aqui está o segredo! Correm rumores de que o infatigável Paisielo encantado da maneira com que a jovem executou o seu “Nel cor piu non mi sento”, e o seu “Io son Lindoro”, quer produzir alguma nova obra mestra para a estréia da nova artista. Outros insistem em que Viola é mais forte no cômico, e que Cimarosa está trabalhando assiduamente para dar outro “Matrimônio Secreto”. Ao mesmo tempo, se observa que, em outras partes, reina uma reserva diplomática, e que o Cardeal está de humor pouco alegre. Ele disse publicamente estas portentosas palavras:

– Esta tola menina é tão sem juízo como seu pai; o que ela pede é absurdo!

Celebra-se uma conferência atrás de outra; o Cardeal fala muito solenemente, em seu gabinete, à pobre jovem, – tudo em vão. Nápoles se perde num mar de curiosidade e conjecturas. A leitura termina numa dissensão e Viola regressa à casa, enfadada e teimosa: não representará, – desfez o contrato!

Pisani, que não conhecia os perigos do teatro, tinha concebido a lisonjeira esperança de que ao menos uma pessoa de sua família aumentaria a celebridade da sua arte. A obstinação da filha causava-lhe grande desgosto; todavia, não disse uma só palavra de enfado. Pisani nunca ralhava com palavras, mas contentava-se em agarrar o seu fiel bárbito. O fiel bárbito, de que horrível maneira te ralhava! O instrumento crocitava, gralhava, gemia, rosnava. E os olhos de Viola enchiam-se de lágrimas, porque ela compreendia aquela linguagem. A jovem aproximou-se de sua mãe e falhou-lhe ao ouvido; e quando o pai voltou do teatro, onde fora tocar, viu que sua mãe e a filha estavam chorando. Ele as contemplou com admiração; e, em seguida, como se sentisse haver sido demasiado duro para com elas, correu outra vez a agarrar o violino. E agora, eis que se faz ouvir o arrulho melodioso de uma fada, tratando de consolar um filho impertinente que havia adotado. Sons suaves, influentes, argentinos, manavam do instrumento, tocado pelo mágico arco. O mais intenso pesar desaparecia diante daquela melodia; e, contudo, às vezes ouvia-se uma nota estranha, alegre, repicante, parecida a um riso, porém não ao riso mortal. Era um dos trechos mais excelentes da sua querida ópera, – a Sereia no ato de encantar as ondas e adormecer os ventos. O Céu sabe o que teria acontecido em seguida, se o seu braço não tivesse sido detido. Viola se lançava ao seu peito, abraçando-o e beijando-o, com os olhos radiantes de felicidade, que se refletia nos seus dourados cabelos.

Neste mesmo instante, abriu-se a porta, para dar entrada a um mensageiro do Cardeal. Viola devia apresentar-se imediatamente à casa de Sua Eminência. A mãe a acompanhou. Fez-se a reconciliação, e tudo ficou arranjado num instante; Viola foi de novo admitida, e escolheu, ela mesma, a sua ópera.

Ó sombrias nações no Norte, ocupadas com suas dissensões e seus debates, em suas trabalhosas vidas do Pnyx e do Agora! – não se pode imaginar que grande movimento e ruído produziu entre a gente musical de Nápoles o rumor de uma nova ópera e de uma nova cantora. Mas que ópera será esta? Nunca tinha sido tão secreta a intriga de gabinete, como desta vez.

Pisani voltou, uma noite, do teatro, evidentemente enfadado e irado. Pobres dos seus ouvidos, leitor, se tivessem escutado o bárbito aquela noite! Haviam-no suspenso do seu emprego, temendo que a nova ópera e a primeira representação de sua filha, como “prima dona”, afetassem demasiados os seus nervos. E, em tal noite, as suas variações, as suas endemoninhadas sereias e harpias, produziram uma algazarra que não se poderia ouvir sem terror. Separado do teatro, e isso exatamente na noite em que sua filha, cuja melodia não era senão uma emanação da sua, ia representar pela primeira vez! Estar à parte e ausente, para que ocupasse o seu posto algum novo rival: isto era demasiado para um músico de carne e osso! Pela primeira vez, o artista se expressou em palavras sobre este assunto, perguntando, com muita gravidade, – pois nesta questão o bárbito, apesar de sua eloqüência, não podia expressar-se claramente, – qual era a ópera que devia executar-se, e qual o papel que a jovem devia representar? E Viola respondeu, também com gravidade, que o Cardeal lhe tinha proibido que o revelasse. Pisani não respondeu, mas desapareceu com o seu violino; foi-se ao mais alto da casa (onde, às vezes, quando estava de péssimo humor, se refugiava), e, em seguida, a mãe e a filha ouviram o violino lamentar-se e suspirar de um modo capaz de partir o coração.

As afeições de Pisani manifestavam-se muito pouco no seu semblante. Não era um desses pais carinhosos, cujos filhos estão sempre brincando ao redor dos seus joelhos; sua mente e sua alma pertenciam tão inteiramente à sua arte, que a vida doméstica deslizava para ele como se fosse um sonho, e o coração, a forma substancial, o corpo da existência. As pessoas que cultivam um estudo abstrato, especialmente os matemáticos, costumam ser assim. Quando o criado de um célebre filósofo francês foi correndo dizer a este: – “Senhor, a casa está em chamas!” – respondeu o sábio, apenas levantando por um momento a vista dos seus problemas: – “Vai dizê-lo a minha mulher, imbecil! Tenho eu que cuidar de assuntos domésticos?“ – E que são as matemáticas para um músico, e, sobretudo para um músico que não só compõe Óperas, mas também toca o bárbito? Sabem o que respondeu o ilustre Giardini, quando um principiante lhe perguntou quanto tempo deveria empregar para aprender a tocar violino? Ouçam e desesperem os impacientes, que desejam dobrar o arco em comparação com o qual o arco de Ulysses foi apenas um brinquedo: – “Doze horas todos os dias, por espaço de vinte anos seguidos!” – Poderá, pois, um homem que toca o bárbito, estar sempre brincando com seus filhinhos?

– Não, Pisani! Muitas vezes, com a fina suscetibilidade de sua infância, a pobre Viola se tinha retirado da sua presença, para chorar, pensando que não a amava.

E, contudo, debaixo desta superficial abstração do artista, se ocultava um afetuoso carinho; e à medida que a jovem foi crescendo, um sonhador foi compreendendo o outro. E agora, não só lhe era fechado o caminho da fama, mas até não se lhe permitia saudar a glória nascente da filha! – e esta filha havia entrado numa conspiração contra ele! Tamanha ingratidão era mais cruel do que a picada de uma serpente; e mais cruéis e dolorosos foram ainda os lamentos do bárbito!

Chegou a hora decisiva. Viola dirigiu-se ao teatro, acompanhada 30 de sua mãe. O indignado músico ficou em casa. Uma hora depois, Gianetta entrou correndo no quarto e disse-lhe:

– A carruagem do senhor Cardeal está à porta; o seu protetor manda buscá-lo.

Pisani teve que deixar a um lado o seu violino; era necessário por a casaca bordada e os punhos rendados.

– Aqui estão; ligeiro, ligeiro!

E já rola a luxuosa carruagem, e o cocheiro, sentado majestosamente na boléia, açoita os briosos cavalos. O pobre Pisani, envolto numa nuvem de confusão, não sabe o que se passa. Chega ao teatro; apeia-se à porta principal; começa a olhar de um lado para outro; sente que lhe falta alguma coisa, – onde está o violino? Ai! a sua alma, a sua voz, o seu próprio ser, ficou em casa! O músico não era então outra coisa senão um autômato que os lacaios conduziam, por entre corredores, ao camarote do Cardeal. Que surpresa, ao entrar ali! Estaria sonhando? O primeiro ato havia terminado. Não quiseram mandar buscá- lo até que o sucesso estivesse assegurado. O primeiro ato decidiu o triunfo. Pisani advinha isto pela elétrica simpatia que se comunica de coração em coração numa grande reunião de pessoas. Sente-o no silêncio profundo que reina entre o auditório; compreende-o até pela atitude do Cardeal, que o recebeu com o dedo levantado. Pisani vê sua Viola no cenário, deslumbrante em seu vestido semeado de pedras preciosas, – ele ouve sua voz que extasia milhares de corações. Porém, a cena, o papel, a música! É outra sua filha, -sua imortal filha; a filha espiritual da sua alma; a sua filha predileta que ele acariciava, por muitos anos, na obscuridade; a sua obra prima; a sua opera “A Sereia!”

Este, pois, foi o mistério que tanto o atormentara, – esta a causa da sua dissensão com o Cardeal; este o segredo que não devia revelarse até que o êxito estivesse garantido; e a filha tinha unido o seu triunfo ao de seu pai!

E ela estava ali, enquanto todos os corações se inclinavam diante dela, – mais formosa do que a mesma Sereia que lhe inspirava aquelas melodias. Oh, longa e doce recompensa do trabalho! Que prazer há, na terra, igual ao que desfruta o gênio, quando, por fim, abandona a sua obscura caverna, para aparecer à luz e cercar-se de fama!?

Pisani não falava, nem se movia; estava deslumbrado, sem respirar; grossas lágrimas rolavam-lhe pelas faces; só, de quando em quando, moviam-se suas mãos, – maquinalmente procuravam o seu fiel instrumento; por que não estaria ali, para participar do seu triunfo?

Por fim, o pano caiu; mas que tempestade de aplausos! O auditório levantou-se como um só homem, – aclamando, com delírio, aquele nome querido. Viola apresentou-se, trêmula e pálida, e, em toda aquela multidão, não viu senão a face de seu pai. O auditório, seguindo a direção daquele olhar umedecido, adivinhou o impulso da filha, e compreendeu a sua significação. O bom e velho Cardeal puxou delicadamente o músico para diante.

Músico indomável você acaba de receber de sua filha uma coisa de maior valor do que a vida que lhe deu!

– Meu pobre violino! – exclamou Pisani, enxugando os olhos, – agora nunca mais tornarão a assobiá-lo!

CAPITULO III


“Fra si contrarie tempre in ghiaccio e in foco, In riso e in pianto, e fra paura e speme, L’ingannatrice Donna”
“Entre tão contrárias misturas de gelo e fogo, riso e pranto, temor e esperança, a Mulher enganadora” 
Gerusal. Lib., canto IV, 44.

Não obstante a vitória definitiva da atriz e da ópera houve um momento, no primeiro ato, e, por conseguinte, antes da chegada de Pisani, em que a queda da balança parecia mais que duvidosa. Foi num coro cheio de todas as singularidades do autor. E quando este Maelstrom de Caprichos rolava e espumava, dilacerando os ouvidos e os sentidos com toda a variedade de sons, o auditório reconheceu simultaneamente a mão de Pisani. Por precaução, havia-se dado à ópera um título que afastava toda a suspeita de sua procedência; e a introdução e o princípio dela, em que havia uma música regular e suave, fez o público crer que ouvia algo do seu favorito Paisiello. Acostumado desde muito tempo a ridicularizar e quase desprezar as pretensões artísticas de Pisani, como compositor, o auditório julgou que havia sido ilicitamente enganado e seduzido para os aplausos, com que saudara a introdução e as primeiras cenas. Um ominoso zunido circulou por todo o teatro: os atores e a orquestra, – eletricamente impressionados com o desagrado do público, – começaram a agitar-se e a desmaiar, deixando de emprestar aos respectivos papéis a necessária energia e precisão, que era o único recurso com que se podia dissimular o grotesco da música.

Em cada teatro, sempre que se trata de um novo autor e de um novo ator, são numerosos os rivais, – partido impotente quando tudo vai bem, porém urna perigosa emboscada desde o momento em que qualquer acidente introduz a menor confusão no curso dos acontecimentos. Levantou-se um murmúrio; é verdade que era um murmúrio parcial, mas o silêncio significativo que reinava por toda parte, pressagiava que aquele desgosto não tardaria em se tornar contagioso. Pode-se dizer que a tempestade pendia de um cabelo. Em tão crítico momento, Viola, a rainha Sereia, emergia pela primeira vez do fundo do Oceano. A medida que ia aproximando-se das luzes, a novidade de sua situação, a fria apatia dos espectadores, – sobre os quais nem a vista daquela singular beleza parecia produzir, a principio, a mais ligeira impressão, – o cochilar malicioso dos outros atores que havia no cenário, o resplendor das luzes e sobretudo aquele recente murmúrio que chegara a seus ouvidos enquanto se achava no seu esconderijo, todas estas coisas gelaram as suas faculdades e suspenderam-lhe a voz. E, em vez da grande invocação, na qual devia imediatamente prorromper, a régia Sereia, transformada em tímida menina, permaneceu pálida e muda ante aquela multidão de frios olhares que a ela se dirigiam.

Naquele instante, quando parecia já abandoná-la a consciência de sua existência, e quando dirigia um tímido olhar suplicante sobre a multidão silenciosa, Viola percebeu, num camarote do lado do cenário, um semblante que, de repente e como por magia, produziu sobre a sua mente um efeito incapaz de poder-se analisar nem esquecer. Pareceu-lhe que despertava em sua imaginação uma daquelas vagas e freqüentes reminiscências que acariciara nos momentos de suas ilusões infantis. Não podia apartar a sua vista daquele semblante e, à medida que o contemplava, o terror e o frio, que se apoderavam dela ao apresentar-se ante o público, dissipou-se como a névoa diante do sol.

No escuro esplendor dos olhos que encontravam os seus, havia realmente uma doçura que a reanimava tanto, e uma admiração benévola e compassiva, – tanta coisa que aquecia, animava e revigorava, – que qualquer que fosse o ator ou espectador, que houvesse observado o efeito que produz um sério e benévolo olhar da multidão dirigido à pessoa que se apresenta ante esta, e pela dita pessoa é percebida, teria compreendido a repentina e inspiradora influência que o olhar e o sorriso do estrangeiro exerceu sobre a estreante.

E, enquanto Viola ainda o mirava, e o ardor voltava ao seu coração, o estrangeiro levantou-se, como para chamar a atenção do público sobre o dever de cortesia para com uma jovem tão formosa; reanimada, começou esta a cantar e, apenas se fez ouvir a sua voz o público prorrompeu numa salva de generosos aplausos. Este estrangeiro era uma personagem notável, e, além da nova ópera, fora a sua chegada a Nápoles o objetivo principal das conversações naqueles dias. E quando cessou o aplauso, a Sereia renovou o seu canto com voz clara, cheia e livre de todo o embaraço, como o espírito libertado do pesado barro.

Desde aquele momento, Viola esqueceu o auditório, o acidente, o mundo inteiro, – exceto esse paraíso ideal ao qual ela presidia. Parecia que a presença do estrangeiro servia somente para mais ainda acrescentar essa ilusão, na qual os artistas não vêem criação alguma fora do círculo de sua arte. Viola sentia como se aquela fronte serena e aqueles olhos brilhantes lhe inspirassem poderes anteriores nunca conhecidos: e, como se buscando uma linguagem para expressar as estranhas sensações produzidas pela presença do desconhecido, esta mesma presença lhe insuflasse a melodia e o canto.

Somente quando terminou a função, e Viola viu seu pai e sentiu a alegria dele, cedeu aquele estranho encanto, para dar lugar à pura expansão do amor filial. Contudo, quando se retirava do cenário, volveu a cabeça involuntariamente, e o seu olhar encontrou-se com o do estrangeiro, cujo tranqüilo e melancólico sorriso lhe caiu até ao fundo do coração, – para ali viver e despertar em sua alma recordações confusas, meio risonhas e meio tristes.

Depois das congratulações do bom Cardeal-Virtuoso, admirado, como toda Nápoles, de haver vivido tanto tempo no erro a respeito desse assunto do gosto, – e mais admirado ainda de ver que toda Nápoles confessava este seu erro; depois de ter ouvido murmurar mil elogios que aturdiam a pobre atriz, esta, com seu modesto véu e seu traje singelo, passou por entre a multidão de admiradores que a aguardavam em todos os corredores do teatro; depois do terno abraço do pai com a filha, volveram à sua casa na carruagem do Cardeal, atravessando as ruas iluminadas só pelas estrelas, e ao longo da estrada deserta; a escuridão não deixou ver as lágrimas da boa e sensível mãe. Ei-los já em sua casa e no seu bem [2]conhecido quarto, – Venimus ad larem nostrum” ; veja a velha Gianetta, intensamente atarefada em preparar a ceia, observe Pisani como tira o bárbito de sua caixa para comunicar-lhe tudo o que sucedeu; escute como a mãe ri com toda a alegria tranqüila de um riso inglês.

Por que, Viola, estranha criatura, senta-se sozinha num canto com as faces apoiadas em suas lindas mãos e com os olhos fixos no espaço? Levante-se! Tudo deve rir em sua casa, esta noite.

Feliz era o grupo que se sentou em redor daquela mesa humilde: era uma festa capaz de causar inveja ao próprio Lúculo, em sua sala de Apoio; havia uvas secas, delicadas sardinhas, rica “polenta” e o velho vinho “Lácrima”, presente do bom Cardeal.

O bárbito, colocado numa alta cadeira, ao lado do músico, parecia participar da festiva ceia. A sua honesta e envernizada lace brilhava à luz da lâmpada; e havia algo de astuta gravidade em seu silêncio, quando, depois de cada bocado engolido, o seu amo se dirigia a ele para dizer-lhe alguma coisa que se esquecera de contar-lhe. A boa esposa olhava afeiçoada de um lado para outro, e a alegria que experimentava não lhe permitia comer; até que, levantando-se de repente, correu a colocar sobre as fontes do artista uma coroa de louros, que o seu carinho lhe fizera preparar já antecipadamente; e Viola, sentada ao outro lado do seu irmão, o bárbito, arrumava o boné e alisava os cabelos de seu pai, dizendo-lhe:

– Querido papai, não deixará, daqui para diante, que “ele” me ralhe, não é verdade?

Então, o pobre Pisani, louco de prazer entre sua filha e o violino, e um tanto excitado pelo “Lácrima” e pelo seu triunfo, voltou-se para Viola, e, com ingênuo e grotesco orgulho, disse-lhe:

– Não sei a quem dos dois devo estar mais agradecido. Você me causou um grande prazer, querida filha, e estou orgulhoso de si e de mim. Mas ele e eu, pobre companheiro, temos passado juntos tantos momentos de sofrimento!

O sono de Viola foi inquieto, perturbado, e isso era natural. A embriagues da vaidade e do triunfo, e a sua felicidade, pela felicidade que causara, eram coisas melhores do que dormir. Não obstante, o seu pensamento voava seguidamente atrás daqueles olhos expressivos e daquele doce sorriso, aos quais deveria ir para sempre unida a recordação do seu triunfo e da sua felicidade. Seus sentimentos, como o seu caráter mesmo, eram estranhos e peculiares. Não eram os de uma jovem cujo coração, alcançado pela primeira vez pelo olhar, suspira sua natural e original linguagem do primeiro amor. Ainda que o rosto, que em todas as ondas de sua desassossegada imaginação se refletia, ostentasse uma singular majestade e beleza, não era tanto a admiração, nem a lembrança agradável e amorosa que a vista desse estrangeiro despertara no seu coração: mas era um sentimento humano de gratidão e prazer, mesclado a outra idéia misteriosa de medo e respeito. Estava certa de que tinha visto, já antes, aquelas feições; porém, quando e onde? Sem dúvida, só quando seus pensamentos haviam tratado de penetrar no seu futuro, e quando, apesar de todos os esforços para apresentar em sua imaginação um porvir semeado de flores e cheio de agradáveis raios solares, um negro e glacial pressentimento a fazia retroceder ao seu mais profundo interior. Parecia-lhe como se tivesse achado uma coisa que, desde muito tempo, buscara por entre mil tristes inquietações e vagos desejos, menos do coração que da mente; não como quando o estudante, depois de ter-se fatigado, correndo muito tempo atrás de uma verdade científica, a vê brilhar confusamente diante de si, porém ainda longe, e a vê luzir, apagar-se, reaparecer, e novamente sumir-se. Por fim, Viola caiu num sono inquieto, povoado de disformes, fugitivos, vagos fantasmas; e, ao despertar, quando os raios do sol, rompendo por meio de um véu de nebulosa nuvem, brilhavam indecisos através da janela, ouviu seu pai que desde muito cedo se havia entregado à sua tarefa quotidiana, arrancando do seu violino um lento e triste som, parecido a um canto fúnebre.

– Como é, – perguntou Viola, quando desceu ao quarto de Písani, – como é, meu pai, que sua inspiração foi tão triste, depois da alegria da noite passada?

– Não sei, minha filha. Eu queria estar alegre e compor algo para dedicar-lhe, mas este obstinado não quis dar outras notas além das que você ouviu.

CAPITULO IV

“E cosi i pigri e timidi desiri Sprona”.

“E assim estimula os lentos e túmidos desejos”.

Era costume de Pisani, exceto quando os deveres de sua profissão lhe exigiam o sacrifício do seu tempo, dedicar uma parte do meiodia ao sono; costume que não era tanto um luxo, como uma necessidade para um homem que dormia pouco de noite. Com efeito, as horas do meio-dia eram exatamente o tempo em que Pisani não podia fazer nada, nem compor, nem se exercitar, mesmo que o quisesse. O seu gênio assemelhava-se às fontes que estão cheias de manhã cedo e ao entardecer, abundantes de noite, e inteiramente esgotadas ao meio-dia. Durante este tempo que o músico consagrava ao descanso, a sua esposa costumava sair de casa, a fim de comprar o necessário para a família, ou para aproveitar (e qual é a mulher que não gosta de fazê-lo?) a ocasião de poder conversar um pouco com outras pessoas de seu sexo. E no dia seguinte ao daquele brilhante triunfo, quantas felicitações a esperavam!

Viola, por sua vez, costumava sentar-se, a essas horas, fora da porta da casa, debaixo de um toldo estendido para preservar do sol, mas que não impedia a vista. Ali, com o livro posto sobre os joelhos, no qual seus olhos se fixavam negligentemente de vez em quando, você a veria contemplar as folhas da parreira que pendiam da latada que havia por sobre a porta, e os ligeiros barcos que, com as velas brancas, deslizavam, levantando flocos de espuma, ao longo da praia que se estendia a perder de vista.

Enquanto Viola estava assim sentada, entregue antes a um sonho do que a pensamentos, um homem que vinha ao lado de Posilippo com passo lento e os olhos baixos passava por diante da casa e a jovem, levantando os olhos de repente, ficou sobressaltada ao ver diante de si o estrangeiro que a havia fitado no teatro. Ela deixou escapar uma involuntária exclamação, e o cavalheiro, volvendo a cabeça, avistou-a e parou.

Ficou por um instante mudo diante da jovem, contemplando-a; aquele silêncio era demasiado sério e tranqüilo para que pudesse interpretar-se como uma demonstração de galanteria. Por fim, falou:

– É feliz, minha filha, – perguntou-lhe em tom quase paternal, – na carreira que escolheu? Dos dezesseis anos aos trinta, a música do suave rumor dos aplausos é mais doce do que toda a música que sua voz pode exprimir.

– Não sei, – respondeu Viola, em tom vacilante, porém animada pelo afável acento da voz que se lhe dirigia, – não sei se sou feliz ou não, neste momento; mas fui feliz ontem à noite. E também sinto, Excelência, que devo agradecer-lhe, ainda que, talvez, não saiba o motivo disso.

– Engana-se, – disse sorrindo o cavalheiro; – eu assisti ao seu merecido sucesso, e você talvez não saiba de que maneira.

O “porquê”, eu lhe direi: porque vi que se albergava no seu coração uma ambição mais nobre do que a vaidade de mulher; foi a filha que me interessou. Talvez você preferisse que eu admirasse a artista?

– Não; oh! não!

– Bem, eu creio. E agora, já que nos encontramos assim, quero dar-lhe um conselho. Quando for outra vez ao teatro, terá aos seus pés todos os jovens galantes de Nápoles. Pobre menina! A fama que deslumbra a vista, pode queimar as asas. Não esqueça que a única homenagem que não mancha, é a que nenhum desses aduladores lhe fornecerá. E por mais elevados que sejam os seus sonhos futuros, – e eu estou vendo neste momento, enquanto falo contigo, como são extravagantes e exagerados – Oxalá que só se realizem aqueles que se refiram à vida tranqüila do lar.

Quando o desconhecido se calou, o peito de Viola palpitava agitadamente sob o fino corpete. E, cheia de uma natural e inocente emoção, compreendendo imperfeitamente, apesar de ser italiana, a gravidade do aviso, exclamou:

– Ah, Excelência! Não pode fazer idéia de como já me é caro esse lar. E meu pai – ah! para mim não haveria lar, sem meu querido pai!

O semblante do cavalheiro cobriu-se de profunda e melancólica sombra. Ele olhou a tranqüila casa, construída entre as parreiras, e fixou outra vez os seus olhos na vívida e animada face da jovem atriz.

– Está bem, – disse. – Uma jovem singela não necessita outro guia que o seu coração inocente. Avante, pois, e prospere!

– Adeus, bela cantora!

– Adeus, Excelência; porém… – e um impulso irresistível, uma espécie de ansiedade, um vago sentimento de temor e de 40 esperança, a impeliu a perguntar: – tornarei a vê-lo em São Carlos?

– Não, pelo menos por algum tempo. Hoje deixo Nápoles.

– Sim! – E, ao dizer isto, Viola sentiu-se desfalecer. O teatro perdia para ela toda a sua poesia.

– E, – disse o cavalheiro, voltando atrás, e pondo suavemente sua mão sobre a da jovem – e, talvez, antes que tornemos a nos ver, você terá sofrido, e conhecido as primeiras dores agudas da vida humana, e saberá quão pouco tudo o que a fama pode dar, substitui o valor do que o coração pode perder; mas seja forte e não ceda, nem ao que possa parecer tristeza devida ao amor filial. Observe aquela árvore no jardim do seu vizinho. Veja como cresce, curvada e torcida. Algum sopro de vento trouxe o gérmen, do qual ela brotou, à fenda da rocha; cercada de rochedos e edifícios, oprimida pela Natureza e pelo homem, a sua vida tem sido uma contínua luta pela luz, – luz que é a necessidade e o princípio dessa vida mesma: veja como se tem agarrado e enroscado; como, onde encontrava uma barreira, esforçou-se, criando o caule e os ramos, por meio das quais conseguiu elevar-se e pôr-se em contato com a clara luz do céu. Que é o que a tem preservado e protegido contra todas as desvantagens do seu nascimento, e contra as circunstâncias adversas? Porque são as suas folhas tão verdes e formosas como as da parreira que estão aqui, e que, com todos os seus braços, desfruta o ar e o sol, sem empecilhos? Minha filha é porque o instinto, que impelia a lutar, porque os esforços que tem feito para alcançar a luz, a levaram a alcançar por fim, essa luz que tanto procurava. Assim, pois, com o coração valente, atravesse os adversos acidentes e as mágoas do fado, dirigindo o olhar interno ao sol, e lutando para alcançar o céu; é esta luta que dá saber aos fortes, e felicidade aos fracos. Antes que nos tornemos a ver, você terá olhado mais de uma vez, com olhos tristes e pesados àqueles ramos, e quando ouvir como as aves trinam, pousando neles, e quando vir como os raios do sol, vindo, de esguelha, do rochedo e da cumeeira da casa, brincam com as suas folhas, aprenda a lição que a Natureza lhe ensina, e lute, atravessando as trevas, para chegar à luz!

Assim que o desconhecido acabou de falar, afastou-se lentamente, deixando Viola admirada, silenciosa, tristemente impressionada pela predição do próximo mal, e, contudo, encantada pela sensação desta tristeza. Involuntariamente os olhos da virgem seguiram o estrangeiro, – involuntariamente estendeu os seus braços, como se quisesse detê-lo com o gesto; teria dado um mundo para vê-lo voltar, – para poder ouvir outra vez aquela voz suave, calma e sonora, e para poder sentir outra vez aquela leve mão na sua. A presença desse homem produzia o efeito dos débeis raios da lua fazendo ressaltar beleza dos ângulos que ilumina; – e, como quando a lua deixa de brilhar, os objetos reassumem seu aspecto ordinário, de aspereza e vida prosaica, quando o estrangeiro se retirou, a Viola apareceu novamente sombria a cena que se apresentava a seus olhos.

O estrangeiro seguiu andando pelo longo e pitoresco caminho que conduz aos palácios em face dos jardins públicos, e dali aos bairros mais populosos da cidade.

Um grupo de jovens cortesãos, desses que passam a vida em ócio e orgias, tendo invadido a porta de uma casa estabelecida para o favorito passatempo do dia, e onde se reuniam os mais ricos e ilustres jogadores, – abriu passo ao estrangeiro, quando passou diante deles, saudando-os cortesmente.

[3]- “Per fede” – disse um, – não é esse o rico Zanoni, de quem fala toda a cidade?

– Ah! Dizem que a sua riqueza é incalculável!

– Dizem, – mas quem é que o diz? Quem pode afirmá-lo com autoridade? Há muito poucos dias que ele está em Nápoles; e não pude encontrar uma só pessoa que soubesse dizer algo a respeito do seu lugar de nascimento, de sua família, nem, o que é mais importante, dos seus bens!

– É verdade; porém ele chegou ao nosso porto num magnífico navio que, segundo dizem, é de sua propriedade. Veja-o – não, você não pode vê-lo daqui; mas está ancorado lá na baía. Os banqueiros com quem Zanoni trata, falam, cheios de respeito, das quantias que depositou em suas mãos.

– Donde veio ele?

– De algum porto de Levante. O meu lacaio soube, por boca de alguns marinheiros do Molhe, que ele viveu muitos anos no interior da Índia.

– Ah! Eu ouvi dizer que na Índia se encontra o ouro assim como aqui os seixos, e que lá há vales onde os pássaros constroem seus ninhos com esmeraldas, para atrair os insetos. Ai vem Cetoxa, o nosso príncipe dos jogadores; estou certo de que ele já conhece este rico cavalheiro, pois o nosso amigo sente tanta atração para o ouro, como o imã para o aço. Olá, Cetoxa! Que novidade nos traz a respeito dos ducados do senhor Zanoni?

– Oh! – disse Cetoxa, com indiferença, – falavam do meu amigo?

– Ah! ah! Ouviu-o; o seu amigo…

– Sim; o meu amigo Zanoni foi a Roma, onde permanecerá por alguns dias; ele me prometeu que, quando estiver de volta, me designará um dia para vir cear comigo, e então o apresentarei aos meus amigos, e à alta sociedade napolitana! Diávolo! Assegurolhes que é um cavalheiro muito agradável e espirituoso!

– Faça o favor de contar-nos o que fez para ser, tão de repente, seu amigo.

– Nada mais natural, meu caro Belgioso. Zanoni desejava ter um camarote em São Carlos; creio não ter necessidade de dizer-lhes que, se tratando de uma ópera nova (ah! e que ópera tão magnífica! – esse pobre diabo, o Pisani! – quem o haveria pensado?) e de uma nova cantora (que rosto! e que voz! – ah!) estavam tomados todos os lugares do teatro. Ouvi dizer que Zanoni desejava honrar o talento de Nápoles, e como mandam as boas normas da civilidade, quando se trata de um distinto estrangeiro, mandei por à sua disposição o meu camarote. Ele aceitou; fui visitá-lo nos entreatos; é um homem encantador! Convidou-me a cear com ele. Caspita! Que comitiva! Estivemos à mesa até muito tarde, – eu lhe contei todas as notícias de Nápoles; tornamo-nos mui amigos. Antes de separar-nos, obrigou-me a [4] aceitar este diamante. – “É uma bagatela”, – disse-me; – “os joalheiros a avaliam em 5000 pistolas”.

Há dez anos que eu não tinha passado uma noite tão divertida.

Os cavalheiros agruparam-se para admirar o diamante.

– Senhor Conde Cetoxa, – perguntou um homem de aspecto grave, que se havia persignado duas ou três vezes, enquanto o napolitano fazia esta narração, – não sabe que coisas estranhas se contam a respeito desse homem? E não lhe causa medo o ter recebido dele um presente que pode trazer-lhe as mais funestas conseqüências? Não sabe que se diz que esse homem e um feiticeiro? Que possui o mau olhado? Que…

– Vamos, poupe-nos de ouvirmos essas antiquadas superstições, – interrompeu Cetoxa, com desprezo; – elas estão já fora da moda. Nos nossos dias, não impera senão o ceticismo e a filosofia. E, depois de tudo, quem ou o que é que fez surgir estes boatos? Um velho mentecapto de oitenta e seis anos. Em suas tolices, assegura solenemente haver visto esse mesmo Zanoni em Milão, há setenta anos (quando ele, o narrador, era ainda rapaz); mas, como sabem, Zanoni não é mais velho do que eu ou o senhor, Belgioso.

– Pois bem, – disse o sério cavalheiro, – este é, precisamente, o mistério. O velho Aveli diz que esse Zanoni não parece estar um dia mais velho do que naquele tempo, quando o encontrou em Milão. Ele diz também, note-se isto, que já então, embora sob um nome diferente, este Zanoni se apresentou naquela cidade com o mesmo esplendor, e envolto no mesmo mistério, pois havia lá um homem que se lembrava de tê-lo visto, sessenta anos antes, na Suécia.

– Bah! – replicou Cetoxa, – o mesmo se tem dito do charlatão Cagliostro, meras fábulas, em que eu acreditarei só quando este diamante se transformar numa mancheia de feno. Além disso, – acrescentou com ar sério, – considero este ilustre cavalheiro meu amigo e qualquer conversação que no futuro tenda a manchar sua reputação ou sua honra, considerarei como uma ofensa feita a mim mesmo.

Cetoxa era um terrível espadachim, e possuía uma habilidade particular, que ele mesmo tinha inventado, para aumentar a variedade de estocadas. O bom e sério cavalheiro, se bem que ansioso pela felicidade espiritual do conde, não perdia de vista a sua segurança corporal; assim é que se contentou em dirigir-lhe um olhar de compaixão, e entrou para a casa, subindo, em seguida, à sala onde estavam as mesas de jogo.

– Ah! ah! – exclamou Cetoxa, rindo, – o nosso bom Loredano cobiça o meu diamante. Cavalheiros, estão convidados a cear comigo esta noite. Eu lhes asseguro que nunca, em minha vida, encontrei uma pessoa mais amável, mais sociável e mais espirituosa do que o meu querido amigo, o senhor Zanoni.


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