Livro ‘Filosofia do Cotidiano’ por Luiz Felipe Pondé

Leia trecho 'Filosofia do Cotidiano' por Luiz Felipe Pondé
“Filosofar nunca foi sobre deixar você feliz. É que andam mentindo muito por aí. Filosofar está mais ligado ao despertar do sonambulismo. Essa é minha proposta nesta conversa com você.”  “Seguiremos em direção a um mar profundo, muito distante do que o senso comum assume que o mundo seja. O mundo não é um mar calmo de evidências. É um oceano cheio de pequenas tempestades a serem vencidas. O cotidiano nesse percurso não é a mera passagem das horas, é o cotidiano contemporâneo, permeado pelo caráter histórico desta época em que vivemos.” “Somos seres muitos mais acanhados em nossa natureza do que a aberração feliz postada nas redes sociais (e na publicidade em geral)...
Capa comum: 128 páginas  Editora: Editora Contexto; Edição: 1 (1 de fevereiro de 2019)  ISBN-10: 8552000822  ISBN-13: 978-8552000822  Dimensões do produto: 20,8 x 13,4 x 1,4 cm

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Leia trecho do livro

“[…] nós, ao crermos que os deuses
existem, nos enganamos com sonhos
sem substância e mentiras, quando, na
verdade, a contingência cega, pura e
simples, controla o mundo?”
Eurípedes, Hécuba

Café da manhã filosófico

Sócrates dizia que uma vida não pensada não vale a pena ser vivida – talvez haja um exagero aqui, mas deixemos isso pra outro momento. Por “pensada” ele quer dizer “filosófica”, uma vida analisada de forma distante do banal. A banalidade na vida é uma forma de ácido que tudo corrói, reduzindo o cotidiano ao vazio. A alma é um ser que habita o mundo do sentido. Uma vida filosófica busca esse mundo do sentido. E esse sentido pode estar no detalhe. E, às vezes, sentimos que vivemos num deserto de sentido. Mas, não pense que sentido é algo abstrato. Não, é concreto como uma pedra, brota dos vínculos concretos que temos com a vida e com as pessoas e com as ideias e os afetos. Sentido não é vazio de matéria humana, jamais.

Há uma distância histórica enorme entre os gregos antigos e nós, mas eles continuam sendo aqueles que fizeram todas as perguntas que nos orientam até hoje. De onde viemos? Por que existe o universo? Há mesmo o Bem e o Mal? Devo buscar uma vida honesta? Vale a pena ser bom? A linguagem descreve o mundo tal como ele é? O que é o amor? Existem formas distintas de amor? Como é a vida após a morte? Os deuses existem? E se existem, têm um plano para nós? O que é uma vida política justa? Como organizar essa vida? Enfim, tudo.

O cotidiano nem sempre é tomado apenas por essas questões profundas. E nem só delas vive o homem, mas também de banalidades. Muitas vezes, ele é tomado por questões “menores”, e é a elas que nos dedicaremos aqui. O cotidiano tenderá a ser mais pobre no futuro. Mais entediante e previsível.

Refletiremos sobre pequenas questões neste livro, não sobre as grandes questões citadas acima.

Escrevo este livro sob as “bênçãos” do trágico grego Eurípedes, citado na epígrafe de abertura. Na sua tragédia Hécuba (esposa do rei de Troia, Príamo), Eurípedes se pergunta: existirão mesmo os deuses ou a contingência cega rege o mundo?

A resposta a essa questão é um divisor de águas, mesmo que você não saiba disso. Ela não é uma simples questão de um dramaturgo distante no tempo. É ela que atormenta você quando o cotidiano, na sua cegueira do hábito, é violentamente interrompido por um fato inesperado e indesejado. Ou mesmo no silêncio do detalhe, quando você acorda de manhã e sente um mau presságio naquele dia que, desgraçadamente, se realiza. Ou quando algo de maravilhoso acontece, e você sente que jamais mereceu tamanha bênção – se você nunca se sentiu assim quando uma “graça” lhe acontece, quando algo de muito bom lhe acontece, você é um pobre de espírito, pois achar que você merece tudo de bom é uma falha grave de caráter. Cuidado: esse tipo de mau-caráter é hoje muito comum, mais do que antigamente.

Mas não pense que assumo a conclusão de que, se for a contingência cega que rege o mundo, está tudo perdido. Não, pode ser que por isso mesmo tudo ganhe outra cor. O desamparo pode ser uma forma de beleza rara quando visto pelo ângulo da coragem. Por outro lado, não presuma tampouco que crer nos deuses faz de você um idiota. Para além do fato que talvez eles existam, crer nos deuses pode ser uma razoável demonstração de saúde, ao passo que a descrença neles, o resultado de pura e simples melancolia ou incapacidade de crer na vida em si. Busquemos, nesse nosso percurso juntos, escapar de conclusões óbvias, pois essas são o atestado último de que falhamos na tarefa de não vivermos uma vida excessivamente banal (digo excessivamente banal porque uma certa dose de banalidade na vida é indício de alguma saúde mental; só gente doente e chata quer ser absolutamente relevante em tudo que faz).

Quando acordamos de manhã, nosso estado de ânimo depende de muitas coisas. E este estado de ânimo acaba por colorir o despertar com seus tons, escuros ou brilhantes. Até o modo e a disposição para comer de manhã sofrerá influência desse estado de ânimo, além de sofrer com as modas e taras com relação à alimentação que assolam o mundo hoje em dia. Esse estado de ânimo será fruto do que aconteceu no dia anterior, dos sonhos que você, por ventura, teve à noite, da qualidade do sono, de quem estava (ou não) ao seu lado na cama (se gozou ou não, sozinho ou não), das expectativas que o dia promete, enfim, de um conjunto de variáveis, muitas vezes fora do seu controle (as variáveis sem controle são o tipo de coisa que nos enlouquece, e elas são muitas). Estará você com saúde? Ou um exame feito semana passada acusou um resultado que você ainda não quis enfrentar com o seu médico?

Uma leve irritação percorre sua espinha, atingindo sua alma sonolenta. Em meio ao pão (com ou sem glúten, depende do seu grau de paranoia e de submissão às modas de comportamento) com manteiga e café preto (uma fruta antes), você se pergunta: “Por que não mando tudo à merda?” Essa será nossa questão a ser respondida. E aí começa nossa filosofia do cotidiano.

Seguiremos em direção a um mar profundo, muito distante do que o senso comum assume que o mundo seja. O mundo não é um mar calmo de evidências. É um oceano cheio de pequenas tempestades a serem vencidas. O cotidiano, nesse percurso, não é a mera passagem das horas, é o cotidiano contemporâneo, permeado pelo caráter histórico desta época em que vivemos. Um cotidiano histórico. E uma história do cotidiano.

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Pra que acordar?

Afinal de contas, por que acordar? O sentimento de rotina vem à sua mente assim que aquela fronteira entre o sono e a vigília se torna mais clara. Em meio às memórias da noite e do dia anteriores, sua alma (seria ela imortal ou apenas um emaranhando de substâncias químicas?) busca a segurança do dia amanhecido. A luz sempre traz certo repouso para quem sofre de alguma forma de medo.

Aprendemos que devemos acordar cedo e cuidar da vida. As pessoas mesmo dizem que Deus ajuda a quem cedo madruga – e, como todo clichê, é a mais pura verdade. Os outros que dormem até tarde revelariam assim alguma forma de vício, como a preguiça. Mas será mesmo que se esforçar a acordar cedo ajuda a ter uma vida mais segura e bem-sucedida? Não necessariamente, mas temperamento é, em alguma medida, destino. Se você for sempre vítima da preguiça, facilmente se desmanchará diante das demandas da vida real. Acordar cedo, sim, traz um gosto de pegar o dia pelos cabelos, ali onde ele ainda nasce, de modo tranquilo e lento. O despertar do dia sempre parece ter um gosto de fé na Criação, antes da derrocada do pecado original. Uma espécie de ingenuidade cosmológica e moral que alimenta, a cada amanhecer, a esperança no mundo. Acordar tarde coloca você num cenário em que todos, naquele momento, parecem saber algo da realidade que você desconhece. Eles já saberiam que a vida, como diz Macbeth, é um ator correndo de um lado para o outro do palco, um conto narrado por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada. Só você ainda não sabe disso. Perder o sol é, quase sempre, uma forma de desperdício.

Alguém me perguntará, e os notívagos? Direi: sempre há lugar para os vampiros e seu charme. Mas aqui não falamos de charme, mas daquele tipo de virtude que faz de você uma pessoa com quem se pode (ou não) contar nos momentos em que dividimos as crianças dos adultos. Mas, e os melancólicos? Direi: logo teremos tempo para falar dos tristes, principalmente dos jovens tristes. A felicidade, contrariamente ao que nos diz a filosofia idiota do coaching, não é fruto de uma fórmula. Os tristes sempre devem ser olhados com reverência. E a filosofia sempre assim o fez.

Acordar porque, simplesmente, é o que se faz todos os dias. A humanidade acorda cedo há centenas de milênios. Dê um voto de confiança à experiência humana acumulada. Ela tem um sentido. Pelo menos, os ancestrais que a tiveram nos legaram o mundo. E você, o que legará à humanidade? Sua obsessão com glúten? Sua mesquinhez com a saúde? A ciência econômica da autoestima? Lembre: a vida é, em grande parte, um desperdício, já que perdida ela está desde o nascimento.

Duras essas palavras? Filosofar nunca foi sobre deixar você feliz. É que andam mentindo muito por aí. Filosofar está mais ligado ao despertar do sonambulismo. Essa é minha proposta nesta conversa com você.

Enfim, acordar porque, simplesmente, é o que se faz todos os dias. Eis um belo motivo para se acordar. Bom dia!

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Acordar como despertar do sonambulismo

A ideia de despertar vai mais longe do que apenas se levantar da cama de manhã. Aliás, a expressão “sono dogmático” (oposta a “despertar filosófico”) é comum na literatura cética. Além disso, no início do cristianismo, um grupo de cristãos estranhos que se autodenominavam gnósticos também usavam a expressão “despertar” como conceito. E, por último, mas não menos importante, claro, o famoso “mito da caverna” de Platão. Vamos ver o que “despertar” significa nesses três casos, para além do simples despertar.

Os céticos eram filósofos gregos que desconfiavam das teorias sobre a realidade. Tinham por hábito opor teorias contrárias uma a outra e mostrar que elas se eliminavam mutuamente. Quer ver um exemplo?

Perguntemos: Deus existe? Alguns respondem que sim, outros que não. Procure se afastar da sua resposta pessoal a essa questão, senão não funciona. Filosofar é muito sobre aprender a se afastar das próprias crenças e buscar olhar para o mundo sem elas, e ver o que acontece com o mundo e com você. Aqueles que creem em Deus dirão coisas como “De onde veio o universo?”, ou “Se Deus não existe, o Mal pode vencer no final”, “Deus falou comigo”, “Falei com minha avó morta, logo Deus existe e a alma é imortal”. E por aí vai.

Os que não creem em Deus, dirão coisas como: “O mundo é mau, Deus é bom, logo ou ele é mau ou não existe, o mais provável é a ultima hipótese” (guarde na memória a hipótese de Deus ser mau), “Crer em Deus é coisa de ressentido, covarde, alienado”, “Deus é uma resposta para o que ainda não entendemos, mas um dia a ciência dará respostas para o que não sabemos, e aí Deus será desnecessário”. Enfim, muitas possibilidades.

Se você observar, nenhuma das respostas, pró ou contra Deus, fica de pé. Para um cético (termo que vem do “to Skopein”, verbo grego antigo que queria dizer “examinar”, “observar”), o melhor é “suspender o juízo” (“juízo” aqui é acreditar numa das respostas), e, assim, você sofrerá menos com a inconsistência delas e, por consequência, se frustrará menos com o fato de elas todas serem meia-boca e dependentes de “pequenas” crenças prévias. Chegar a essa condição de não sofrimento era chamado de “ apathéia ” (do verbo “to Pathein”, que significa “sofrer”, mas o substantivo pathós acabou sendo traduzido, pelo senso comum, como doença, em patologia, ou paixão), uma condição em que a vida era mais leve e menos frustrante. A filosofia grega sempre foi desconfiada da ideia de termos muitas expectativas e muitas paixões na vida.

Os céticos entendiam que uma vida sem crenças era como despertar do sono dogmático (“dogma” aqui significa “crença”, “teoria”) daqueles que, como sonâmbulos, caminham na vida acreditando em todo tipo de bobagem, modinha ou lixo veiculado pela mídia e pelas redes sociais. Nesse sentido, um cético é um desperto, enquanto os “crentes” são uns sonâmbulos.

Despertar é viver sem acreditar em nada absolutamente e seguir hábitos consagrados, como acordar de manhã e ir trabalhar… como eu disse no final do capítulo anterior. Outra forma de usar a expressão “despertar” como mais do que simplesmente acordar de manhã é o uso que os gnósticos faziam. Eu disse a você pouco antes para guardar na memória a ideia de que se o mundo é mau, Deus deve ser mau, lembra? Pois bem, os gnósticos eram cristãos que viveram, grosso modo, entre os séculos II e V da era cristã e que acreditavam que o Deus que criou o mundo era mau (“Demiourgos”), e Jesus, fora enviado pelo “Agnostos Theos” (“Deus Desconhecido” ou “Pai Silencioso”), que nada tinha a ver com o universo. Mas, por que esse Agnostos Theos resolveu enviar um representante dele para o mundo, já que ele nada tinha a ver com esse mundo?

Vou contar brevemente uma das teorias do motivo de Deus Desconhecido ter mandado Jesus para cá. No “Evangelho da Verdade” – um dos textos gnósticos encontrados no Egito em 1948, na região conhecida como Nag Hammadi, daí serem chamados de “Evangelhos de Nag Hammadi”, “no princípio era a crise” – é narrada a tragédia de Sophia, uma das entidades divinas que viviam no Pleroma, a casa da perfeição onde habitava esse Deus Desconhecido. Ela, um determinado dia, quis conhecer face a face esse Deus Desconhecido. Mas, sendo ele impossível de ser conhecido, Sophia criou um desequilíbrio no Pleroma. Desse desequilíbrio nasceu um filho, o Demiurgos, cego e arrogante, que se achava um deus e decidiu criar o universo a fim de se “divertir” com os humanos, feitos para serem torturados. Vendo o que ele tinha feito, Sophia chorou desesperada. Suas lágrimas caíram sobre a Terra e entraram em alguns humanos. As lágrimas de Sophia, feitas da mesma matéria do Agnostos Theos, como ela mesma Sophia, se transformaram em centelhas nas almas de alguns poucos dos infelizes torturados humanos. Jesus vem, então, resgatar essas centelhas da mesma matéria do Deus Desconhecido. Quando pessoas que têm essas centelhas (nem todas têm, por isso poucos são salvos) ouvem Jesus, as centelhas despertam, e eles (os gnósticos, “gnose” é “conhecimento”, em grego antigo) percebem que a criação é uma câmara de tortura e se afastam do mundo, vivendo em isolamento e celibato para não gerarem mais humanos infelizes. O despertar aqui significa perceber o terror em que todos vivemos.

Mesmo se não acreditarmos nesse mito, que como todo mito não deve ser verdade mesmo, há algo nele que fez com que os gnósticos se tornassem importantes até hoje, para além do traço herético que os caracteriza. A razão da força do despertar gnóstico está no fato de que a hipótese “cosmológica” deles é muito forte: a natureza, para além do que veganos bobos pensam, é uma (bela) câmara de tortura. Comemos uns aos outros. Tudo é devorado, por isso num dos textos se diz: se ouvíssemos o som da natureza na sua totalidade, ouviríamos o gemido absoluto de dor. O pessimismo gnóstico sempre fica marcado em nossa memória. A relação entre despertar e enxergar a dor que permeia a realidade é outra forma poderosa de entender o sentido maior de se acordar um dia na vida.

E o mito da caverna, de Platão? Talvez a maior metáfora filosófica do despertar. Não vou entrar em detalhes sobre o livro A República , de Platão, mas apenas ir direto ao assunto e dizer qual é o despertar nesse mito da caverna. O filósofo dessa narrativa, um dia, sai da caverna em que vivia e descobre que o mundo real é outro e que nós vivemos presos numa caverna vendo sombras projetadas na parede, sombras que representam mal o mundo verdadeiro de quem é verdadeiramente livre, porque não escravo de uma percepção enganosa, mal informada, da realidade. Esse filósofo acaba se dando mal porque seus companheiros de caverna não gostam que lhes digam que são ignorantes, delirantes e, portanto, incapazes de compreender a verdade das coisas. O mito da caverna do Platão é uma grande metáfora geral da filosofia como um despertar para o pensamento mais profundo, mais consistente e menos vítima da ignorância. É o próprio mito fundante da filosofia. O destino trágico do filósofo nesse mito não nos deve passar desapercebido porque não é evidente que queiramos romper com os grilhões da ignorância, pois a ignorância pode ser uma forma de conforto. No nosso mundo contemporâneo, uma das maiores pragas no pensamento público e na indústria editorial chama-se “autoajuda”, que é, justamente, o falso filósofo a dizer que as sombras são lindas e acabam por serem feitas à nossa imagem e semelhança.

De forma resumida, então, o sentido de acordar como despertar circula entre a descoberta da fraqueza de nossas teorias (ceticismo), a percepção da dor que permeia a natureza e o mundo (gnosticismo), para além das bobagens que se fala hoje em dia sobre a natureza, e o salto no pensamento que é capaz de ver o mundo de forma diferente de como a banalidade o vê. Este último é, mais precisamente, o que se entende por pensar filosoficamente, e não pensar segundo o mero senso comum. É isso que estamos fazendo aqui com o cotidiano histórico de nossas vidas. É romper com a condição de sonâmbulos. Nossa meta não é nem o sonambulismo feliz, nem o infeliz. É acordar. Lembre-se desses três sentidos de despertar ao longo dos capítulos que seguirão. Se em algum momento você não se lembrar mais do que se trata essas três formas de despertar, volte pra este capítulo e desperte de novo – do contrário, sua leitura será a de um sonâmbulo que atravessa o mundo sem o ver de fato, e você não entenderá mais uma letra do que está lendo. Boa travessia.

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O que é melhor? A realidade ou a fantasia?

Nada mais difícil, para algumas pessoas, do que responder a essa pergunta. De cara, ela parece simples: “a realidade”. Mas as coisas não são simples assim. A realidade pode ser bem “filha da puta” – tradução livre do conceito filosófico inglês “life is a bitch”. E, portanto, fugir dela pode ser a única a saída. Saída que usamos muitas vezes. Mas, antes de decidir qual é a melhor, a realidade ou a fantasia, existe uma questão anterior que atormenta a filosofia. Como saber a diferença entre realidade e fantasia? Ou entre realidade e sonho? Você pode achar que é conversa de bêbado, e pode ser, num certo sentido, mas a coisa pega se você prestar atenção e vir como a “fantasia” pode ser compreendida de várias formas.

Na Grécia já se perguntava como diferenciar o que pensamos que vemos de como as coisas são de fato, ou, dito de forma simples: como diferenciar a realidade da fantasia? Descartes, no século XVII , chegou à conclusão de que era bem difícil saber a diferença entre estar acordado e sonhar que se está acordado.

Todos conhecemos essa sensação. Mas aqui ainda se pode falar que isso é papo de bêbado, porque na verdade sempre acordamos uma hora. Toca o despertador, você pode colocá-lo pra dentro do seu sonho, mas uma hora você dança. Mesmo que seja quando você acorda de vez e percebe que perdeu a hora e a reunião com um cliente importante. E aí, você aprende uma lição fundamental: toda vez que você confunde a realidade com a fantasia ou com um sonho, você paga caríssima a conta quando desperta. É assim no caso da reunião, no caso de um amor louco, num jogo que você tem certeza que sabe pra onde vai, numa ideia de negócio que, na sua cabeça (ou seja, na fantasia), você tem certeza que tem a ver com a realidade. Portanto, a diferença é, antes de tudo, quem cobra a conta maior: a realidade é sempre cruel se você não a reconhece quando ela está diante dos seus olhos. Talvez não tenhamos um argumento definitivo sobre a diferença entre a realidade e a fantasia, mas a realidade tem o peso da gravidade (e da contabilidade) ao seu lado.

Como saber se você viu um fantasma ou não? Eu não acredito em fantasmas, mas muitas pessoas ouvem vozes e falam com mortos – e sem tomar tarja preta pra isso. Muito do universo religioso transita por esta dificuldade de saber qual a diferença entre realidade e fantasia. Mesmo as pessoas que têm certeza de que Deus falou com elas. Como saber se foi coisa da cabeça delas, desejo que Deus exista ou se Ele, de fato, falou com elas?

E as drogas? Você sabe que um cético grego, um daqueles aos quais me referi antes, Aenesidemus, se perguntava se você é você de verdade sem beber ou o contrário. A coisa é a seguinte: quando você bebe, sobe na mesa e dança, esse é você que se libertou das amarras sociais graças ao álcool ou o seu verdadeiro Eu se afogou no álcool e no lugar surgiu um Eu falso e devasso? Onde está o Eu verdadeiro e o falso? A resposta a essa pergunta tem destruído vidas e casamentos ao longo dos séculos. E você ainda acha que a diferença entre a realidade e a fantasia é conversa de bêbado?

Lembra da famosa Capitu do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis? Ela traiu ou não o marido Bentinho (o “Dom Casmurro” do título é porque ele se transforma num sujeito azedo e esquisito por conta da história que não vou contar)? Como ter certeza de algo quando seu cérebro, movido por ciúmes, começa a ler a realidade a partir do seu desespero? Só os ingênuos ou gente de má-fé não leva a sério essa tragédia humana que é, muitas vezes, não ter certeza do que é verdade ou fantasia (para o bem ou para o mal).

Dito isso, nos perguntemos de novo: o que é melhor, a realidade ou a fantasia?

As crianças são conhecidas por viverem num mundo em que a fantasia e a realidade se misturam. E isso é considerado saudável na idade delas. Mas, no mundo em que vivemos, toda uma indústria da fantasia infantilizante dos adultos, que passa por literatura de autoajuda, palestras motivacionais corporativas, conteúdos de mídias sociais, workshops de coaching, Facebook e fotos Instagram-worthy , trabalha pra dizer que viver fora da realidade é saudável e torna você mais “jovem”. Claro que a realidade pode ser intoxicante se você se torna um fundamentalista da realidade, mas a pura e simples recusa do amadurecimento em nome de viver num mundo de fantasias é uma das maiores catástrofes morais, cognitivas, políticas e econômicas que pode se abater sobre as pessoas. O enriquecimento que a sociedade de mercado produziu é bem responsável por esse processo: fantasias podem ser motivacionais de fato. Mas, se lembrarmos do que falei sobre o custo de menosprezar a realidade, podemos responder a essa pergunta com uma razoável segurança: assim como dinheiro não tolera desaforo, a realidade tampouco perdoa quem não a reconhecer quando ela aparecer diante dos seus olhos.

É dentro desse espírito de respeito e reverência à realidade que iremos cada vez mais fundo nela nesta nossa conversa.


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