Livro ‘Assim Falou Zaratustra’ por Friedrich Nietzsche

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Um livro para todos e para ninguém
Amado, odiado, incompreendido, mal-interpretado mas jamais ignorado. Essa é a sina não apenas do personagem principal de Assim falou Zaratustra, mas também do próprio livro a mais célebre obra de Friedrich Nietzsche. Desde a época de seu lançamento, o texto instiga e divide os críticos, e sua influência se estende para muito além da filosofia, inspirando autores como Carl Jung e Thomas Mann. Aliando poesia e discurso filosófico e sedimentando alguns dos conceitos centrais do pensamento de Nietzsche tais como o super-homem, a vontade de poder e o eterno retorno, Assim falou Zaratustra foi considerado pelo próprio autor seu trabalho mais importante e íntimo. Esta nova tradução, diretamente do alemão, mantém a musicalidade e a verve...
Editora: L± Edição de bolso (2 março 2015)  Páginas: 384 páginas  ISBN-10: 8525432121  ISBN-13: 978-8525432124  ASIN: B00PSKORB0

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Biografia do autor: FRIEDRICH NIETZSCHE nasceu em Roecken, Alemanha, em 1844. Foi um filólogo, filósofo, crítico cultural, poeta e compositor alemão do século XIX. Escreveu vários textos críticos sobre a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo. Foi professor de filologia clássica na Universidade da Basileia, Suíça. Além de O nascimento da tragédia, escreveu treze obras de ensaios e aforismos. Morreu em 1900, deixando milhares de páginas de anotações, publicadas postumamente.

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APRESENTAÇÃO

Marcelo Backes

Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém é a obra prima de Friedrich Nietzsche (1844­-1900), aquela que se encontra mais diretamente vinculada a seu nome, assim como a Crítica da razão pura a Kant, a Fenomenologia do espírito a Hegel e O ser e o tempo a Heidegger no âmbito da filosofia; o Ulysses a Joyce, Em busca do tempo perdido a Proust e O homem sem qualidades a Musil no âmbito da literatura.

Nietzsche é um dos pensadores mais importantes de todos os tempos, um dos filósofos mais estudados nos dias de hoje. Estendeu sua influência para muito além da filosofia, adentrando a literatura, a poesia e todos os gêneros das belas­artes. Marcou movimentos que vão do naturalismo alemão ao existencialismo francês e escritores tão diferentes um do outro quanto os irmãos Heinrich e Thomas Mann. Sua obra aparentemente fragmentária adquire unidade e vitalidade orgânica ao manejar o aforismo, que vira ditirambo em Assim falou Zaratustra.

As quatro partes do Zaratustra foram publicadas entre 1883 e 1885. O próprio Nietzsche se encarregou de divulgá­-las individualmente. Do estoque não vendido da obra, o filósofo fez uma edição em que juntou as três primeiras partes, publicada em 1887. A edição completa, reunindo as quatro partes, sairia apenas em 1892, depois do colapso que o levou à loucura, organizada por seu aluno e amigo, o compositor Peter Gast (na verdade Heinrich Köselitz). Sobre nenhum de seus escritos Nietzsche falou tanto quanto sobre o Zaratustra. Mesmo assim a obra continuou cheia de mistérios, às vezes aceita, às vezes rechaçada – sempre com veemência – pela crítica.

O Zaratustra é sem dúvida a obra mais pessoal de Nietzsche, e ele próprio diria em carta ao já referido Peter Gast que, no aspecto particular, um número muito grande de coisas no livro dizia respeito a experiências e sofrimentos pessoais que apenas ele próprio podia compreender. Mas identificar Nietzsche de maneira simétrica com o personagem também seria um erro, para o qual Heidegger aliás já alertou. Zaratustra pode ser considerado, no máximo, alguém que faz ou se propõe a fazer aquilo que Nietzsche quis e não conseguiu fazer, o que o aproxima intensamente de várias figuras assaz interessantes da literatura universal.

Rio de Janeiro, julho de 2013

Primeira Parte

Prólogo de Zaratustra

1.

Quando Zaratustra tinha trinta anos, deixou sua pátria e o lago de sua pátria e foi para as montanhas. Aqui ele desfrutou de seu espírito e de sua solidão, e durante dez anos não se cansou deles. Finalmente, porém, transformou-se o seu coração – e certa manhã levantou-se com a aurora, postou-se diante do Sol e falou assim com ele:

“Ó grande astro! Que seria de tua fortuna se não tivesses aqueles que iluminas!

“Por dez anos tens subido até minha caverna: sem mim, minha águia e minha cobra, já terias te fartado de tua luz e desse caminho.

“Mas nós esperávamos por ti a cada manhã, tomávamos de ti teu excesso e bendizíamos-te por isso.

“Vê! Estou farto de minha sabedoria, como a abelha que coletou mel em excesso; careço de mãos que se estendam.

“Desejo presentear e distribuir, até que os sábios entre os homens se alegrem mais uma vez de sua tolice e os pobres de sua riqueza.

“Para tanto, devo descer às profundezas: assim como fazes ao anoitecer, quando vais para trás do mar e ainda trazes luz ao submundo, ó astro superabundante!

“Eu preciso, como tu, ter o meu ocaso, como dizem as pessoas até as quais desejo descer.

“Abençoa-me, pois, ó olho sereno, capaz de observar sem inveja também uma fortuna desmedida!

“Abençoa o cálice que quer transbordar, que a água dele escoe dourada e que carregue para toda parte o brilho de tua glória!

“Vê só! Este cálice quer novamente esvaziar-se, e Zaratustra quer mais uma vez tornar-se homem.”

– Assim começou o ocaso de Zaratustra.

2.

Zaratustra desceu sozinho das montanhas, sem encontrar ninguém. Mas, ao chegar à floresta, surgiu de repente diante dele um ancião que deixara sua cabana sagrada para procurar raízes na mata. E assim falou o ancião a Zaratustra:

“Não me é estranho este caminhante: passou por aqui há alguns anos. Zaratustra, chamava-se; mas ele está transformado.

“Levavas então tuas cinzas à montanha: queres hoje levar teu fogo aos vales? Não temes os castigos do incendiário?

“Sim, eu reconheço Zaratustra. Seu olho está puro e não se oculta asco em sua boca. Não anda ele como um dançarino?

“Transformado está Zaratustra, Zaratustra fez-se criança, Zaratustra é um desperto: o que queres agora com os adormecidos?

“Como no mar viveste na solidão, e o mar carregou- -te. Ai, queres pisar em terra? Ai, queres voltar a arrastar tu mesmo o teu corpo?”

Zaratustra respondeu: “Eu amo os homens”.
“Por que”, disse o santo, “fui eu à floresta e ao ermo? Não terá sido porque amava os homens por demais?

“Agora amo a Deus: os homens eu não amo. O homem é para mim uma coisa demasiado imperfeita. Aniquilar-me-ia o amor ao homem.” Zaratustra respondeu:

“Que falava eu de amor! Eu trago aos homens um presente”.

“Não lhes dês nada”, disse o santo. “É preferível que tomes algo deles e o carregues para eles – isso será o melhor para eles: se apenas fizer bem a ti!

“E se queres dar algo a eles, então não dês mais que uma esmola, e deixa-os ainda mendigar por ela!”

“Não”, respondeu Zaratustra, “eu não dou esmola alguma. Não sou pobre o suficiente para isso.”

O santo riu-se de Zaratustra e falou assim: “Então cuida para que aceitem teus tesouros! Eles desconfiam de eremitas e não acreditam que venhamos para presentear.

“Nossos passos pelas vielas ressoam para eles solitários demais. E, assim como quando, à noite, muito antes do nascer do sol, ouvem de suas camas os passos de um homem, haverão de perguntar-se: aonde vai o gatuno?

“Não vás aos homens e permanece na floresta! É melhor que vás aos animais! Por que não queres ser como eu – um urso entre ursos, uma ave entre aves?”

“E o que faz o santo na floresta?” perguntou Zaratustra. O santo respondeu: “Eu faço canções e canto-as, e quando faço canções, rio, choro e murmuro: assim louvo a Deus.

“Cantando, chorando, rindo e murmurando louvo ao Deus, que é meu Deus. Mas o que é que nos trazes como presente?”

Tendo ouvido essas palavras, Zaratustra cumprimentou o santo e falou:
“Que teria eu a vos dar? Mas deixai-me partir depressa, para que não vos tome nada!” – E assim separaram-se um do outro o ancião e o homem, rindo como dois rapazes.

Mas, ao ver-se só, Zaratustra falou assim a seu coração: “Será possível? Esse velho santo em sua floresta ainda não ouviu que Deus está morto!” –

3.

Ao chegar à cidade mais próxima, à beira da floresta, Zaratustra encontrou o povo reunido no mercado: pois havia sido prometido que se veria ali um funambulista. E Zaratustra falou assim ao povo:

Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes vós para superá-lo?

Todos os entes até agora criaram algo para além de si: e vós quereis ser a vazante dessa grande enchente, preferis retornar ao animal do que superar o homem?

Que é o símio para o homem? Uma zombaria ou uma vergonha dolorosa. E isso, justamente, deve o homem ser para o super-homem: uma zombaria ou uma vergonha dolorosa.

Trilhastes o caminho do verme ao homem, e há ainda muito de verme em vós. Outrora fostes símios, e também agora o homem é ainda mais símio do que qualquer símio.

E o mais sábio dentre vós é também apenas uma discrepância e um híbrido de planta e fantasma. Mas acaso vos convido a vos tornardes fantasmas ou plantas?

Vede, eu vos ensino o super-homem!

O super-homem é o sentido da terra. Que vossa vontade diga: seja o super-homem o sentido da terra!

Suplico-vos, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não creiais naqueles que vos falam de esperanças supraterrenas! São envenenadores, quer saibam disso ou não.

São desprezadores da vida, moribundos e eles próprios envenenados, dos quais a terra está cansada: que partam!

Outrora o sacrilégio contra Deus foi o maior de todos, mas Deus morreu, e com isso morreram também esses sacrílegos. O sacrilégio contra a terra é agora o mais terrível, e apreciar mais as entranhas do inescrutável do que o sentido da terra!

Outrora a alma olhava com desprezo para o corpo: e então era esse desprezo o mais elevado: – queria-o magro, horrível, esfaimado. Ela pensava com isso escapar dele e da terra.

Ó, essa alma era ela mesma também ainda magra, horrível e esfaimada: e a crueldade era a volúpia dessa alma!

Mas também vós, meus irmãos, falai-me: o que anuncia vosso corpo a respeito de vossa alma? Não é vossa alma pobreza e sujeira e um deplorável bem-estar?

O homem é deveras uma correnteza imunda. É preciso ser um mar para poder acolher uma correnteza imunda sem se tornar impuro.

Vede, eu vos ensino o super-homem: é ele esse mar, nele pode afundar vosso grande desprezo.

Que é o maior que podeis vivenciar? É a hora do grande desprezo. A hora em que também vossa fortuna se torna asco para vós, assim como vossa razão e vossa virtude.

A hora em que dizeis: “Que importa a minha fortuna! Ela é pobreza e imundície, e um deplorável bem-estar. Mas minha fortuna deveria justificar a própria existência!”

A hora em que dizeis: “Que importa a minha razão! Anseia ela por conhecimento assim como o leão anseia por seu alimento? Ela é pobreza e imundície, e um deplorável bem-estar!”.

A hora em que dizeis: “Que importa a minha virtude! Ela ainda não me fez tempestear. Como estou cansado de meu bem e de meu mal! Tudo isso é pobreza e imundície, e um deplorável bem-estar!”.

A hora em que dizeis: “Que importa a minha justiça! Não me vejo como brasa e carvão. Mas o justo é brasa e carvão!”.

A hora em que dizeis: “Que importa a minha compaixão! Não é a compaixão a cruz à qual se prega aquele que ama os homens? Mas minha compaixão não é nenhuma crucificação”.

Já falastes assim? Já clamastes assim? Ah, tivesse eu já vos ouvido gritar assim!

Não o vosso pecado – vossa frugalidade clama aos céus, a avareza com que pecais clama aos céus!

Onde estará o raio que vos lamba com a língua? Onde está a loucura com a qual deveis ser inoculados?

Vede, eu vos ensino o super-homem: é ele esse raio, é ele essa loucura! –

Tendo Zaratustra falado assim, alguém gritou da multidão: “Já ouvimos o suficiente do funambulista; agora, que o vejamos também!”. E todo o povo riu-se de Zaratustra. O funambulista, porém, acreditando que as palavras eram dirigidas a ele, pôs-se ao trabalho.

4.

Zaratustra, porém, observava o povo admirado. Então falou assim:

O homem é uma corda, estendida entre o animal e o super-homem – uma corda por sobre um abismo.

Um perigoso atravessar, um perigoso estar a caminho, um perigoso olhar para trás, um perigoso arrepiar-se e estacar.

O que é grandioso no homem é que ele seja uma ponte, e não um fim: o que pode ser amado no homem é que ele seja uma passagem e um ocaso.

Eu amo aqueles que não sabem viver a não ser como poentes, pois eles são os que atravessam.

Eu amo os grandes desdenhosos, pois são os grandes honradores e as flechas do anseio pela outra margem.

Eu amo aqueles que não buscam somente por detrás das estrelas uma razão para ter seu ocaso e para sacrificar-se: mas que se sacrificam à terra, para que a terra pertença um dia ao super-homem.

Eu amo aquele que vive para conhecer e que quer conhecer para que viva um dia o super-homem. E assim ele quer o seu ocaso.

Eu amo aquele que trabalha e inventa para construir a casa do super-homem e preparar para ele a terra, o animal e a planta: pois assim quer ele o seu ocaso.

Eu amo aquele que ama a sua virtude: pois a virtude é vontade para o ocaso e uma flecha do anseio.

Eu amo aquele que não retém para si nenhuma gota de espírito, mas que quer ser inteiramente o espírito de sua virtude: assim avança ele como espírito por sobre a ponte.

Eu amo aquele que faz de sua virtude sua inclinação e sua fatalidade: dessa maneira, ele quer viver e deixar de viver por sua virtude.

Eu amo aquele que não quer ter virtudes demais. Uma virtude é mais virtude do que duas, pois ela é mais nó em que se penda a fatalidade.

Eu amo aquele cuja alma se desperdiça, que não quer ser grato e que não restitui: pois ele presenteia sempre e não quer se conservar.

Eu amo aquele que se constrange quando o dado lhe favorece e que então pergunta: serei eu um trapaceiro? – pois ele quer sucumbir.

Eu amo aquele que antecipa seus atos com palavras áureas, e que mantém ainda mais do que promete: pois ele quer o próprio ocaso.

Eu amo aquele que justifica os futuros e redime os passados: pois ele quer sucumbir pelos presentes.

Eu amo aquele que repreende seu deus porque ama seu deus: pois ele precisa sucumbir pela ira de seu deus.

Eu amo aquele cuja alma é profunda também no ferimento, que pode sucumbir por causa de uma pequena vivência: assim ele atravessa a ponte de bom grado.

Eu amo aquele cuja alma está abarrotada a tal ponto que ele se esqueça de si mesmo e todas as coisas sejam nele: assim todas as coisas se tornam o seu ocaso.

Eu amo aquele de espírito livre e coração livre: assim sua cabeça é apenas a entranha de seu coração, mas seu coração impele-o ao ocaso.

Eu amo todos aqueles que são gotas pesadas, caindo singulares da nuvem escura suspensa sobre os homens: eles anunciam que o raio está a caminho e sucumbem como anunciadores.

Vede, eu sou um anunciador do raio e uma gota pesada que cai da nuvem: esse raio, porém, chama-se super-homem. –

5.

Tendo proferido essas palavras, Zaratustra olhou novamente para o povo e calou. “Aí estão eles”, falou ao seu coração, “aí riem-se: eles não me compreendem, não sou a boca para estas orelhas.

“Será preciso primeiro destroçar-lhes as orelhas para que aprendam a ouvir com os olhos? Será preciso matraquear como tímpanos e pregadores de penitência? Ou acreditarão apenas em balbuciadores?

“Eles têm algo de que se orgulham. Mas como chamam aquilo que os orgulha? Chamam-no de instrução, ela os distingue dos pastores de cabras.

“Por isso não gostam de ouvir de si a palavra ‘desprezo’. Quero, pois, falar a seu orgulho.

“Quero, pois, falar-lhes da coisa mais desprezível que há: esta, porém, é o último homem.”

E assim falou Zaratustra ao povo:

É chegado o tempo para que o homem se dê a sua meta. É chegado o tempo para que o homem plante o germe de sua mais alta esperança.

Seu solo ainda é suficientemente rico para tanto. Mas esse solo será um dia pobre e manso, e nenhuma grande árvore poderá mais crescer dele.

Ai! Vem o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha de seu anseio por sobre o homem, em que a corda de seu arco terá desaprendido a vibrar!

Eu vos digo: é preciso ter ainda caos em si para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: vós tendes ainda caos em vós.

Ai! Vem o tempo em que o homem não mais parirá estrela alguma. Ai! Está para vir o tempo do mais desprezível dos homens, que se tornou incapaz de desprezar a si próprio.

Vede! Eu vos mostro o último homem.

“Que é o amor? Que é a criação? Que é o anseio? Que é a estrela?” – assim pergunta o último homem, pestanejante.

A terra, então, tornou-­se pequena, e sobre ela saltita o último homem, que a tudo torna pequeno. Sua estirpe é inextinguível, como o piolho de terra; o último homem tem a vida mais longa.

“Nós inventamos a fortuna” – dizem os últimos homens, pestanejando.

Eles deixaram as regiões em que era duro viver: pois precisa-se de calor. Amam ainda o vizinho e esfregam-­se nele: pois precisa-se de calor.

Adoecer e desconfiar é para eles pecaminoso: anda-se com cuidado. É um tolo aquele que ainda tropeça por sobre pedras ou homens!

Um pouco de veneno de vez em quando: isso gera sonhos agradáveis. E muito veneno ao final, para uma morte agradável.

Ainda se trabalha, pois o trabalho é uma distração. Mas cuida-se para que a distração não prejudique a saúde.

Não se enriquece nem se empobrece mais: ambos são penosos demais. Quem quer ainda reger? E quem obedecer? Ambos são penosos demais.

Nenhum pastor e um rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais: quem tem sentimentos distintos vai voluntariamente ao sanatório.

“Antigamente o mundo todo era louco” – dizem os mais sutis, pestanejando.

É-­se astuto e sabe­-se de tudo que ocorreu: dessa maneira tem-­se material infinito para zombarias. Ainda há querelas, mas a reconciliação vem logo – caso contrário, arruína-se o estômago.

Tem­-se o seu gostinho pelo dia e o seu gostinho pela noite: mas honra-­se a saúde.

“Nós inventamos a felicidade” – dizem os últimos homens, pestanejando.

E aqui terminou o primeiro discurso de Zaratustra, que também é chamado “o prólogo”: pois neste ponto interrompeu-o a algazarra e o regozijo da multidão. “Dá­-nos esses últimos homens, ó Zaratustra,” – assim clamavam – “faz de nós esses últimos homens e presentear-­te-­emos com o super­homem!” E todo o povo rejubilava e estalava com a língua. Zaratustra, porém, entristeceu e disse a seu coração:

“Eles não me compreendem: eu não sou a boca para estas orelhas.

“Parece que vivi tempo demais nas montanhas, escutei demais os riachos e as árvores: agora lhes falo como um pastor de cabras.

“Imóvel é minha alma e clara como as montanhas pela manhã. Mas eles acham que eu sou frio e um zombeteiro de gracejos terríveis.

“E agora olham para mim e riem­-se: e rindo odeiam­-me ainda. Há gelo em seu riso.”

6.

Mas então ocorreu algo que calou todas as bocas e paralisou cada olhar. Pois entrementes o funambulista começara seu trabalho: ele saíra de uma pequena porta e caminhava sobre a corda, que se encontrava estendida entre duas torres, de modo que pendia acima do mercado e do povo. Quando estava bem no meio do caminho, a pequena porta abriu-se novamente e uma figura colorida, semelhante a um bufão, saltou para fora e seguiu o primeiro com passos ligeiros. “Adiante, sua lesma”, gritava a sua voz terrível, “adiante, seu preguiçoso, contrabandista, cara-­pálida! Que eu não te pise os calcanhares! Que fazes aqui entre torres? Pertences à torre, deverias ser trancafiado, barras o caminho para alguém melhor que tu!” – E com cada palavra aproximava-­se mais e mais: mas quando estava a apenas um passo dele, ocorreu algo assustador, que calou todas as bocas e paralisou cada olhar: – ele bradou como um diabo e lançou-­se sobre aquele que se encontrava em seu caminho. Este, porém, ao ver seu rival vencer dessa maneira, perdeu com isso a cabeça e a corda; ele atirou fora sua vara e precipitou-­se, mais veloz que esta, como um turbilhão de braços e pernas, nas profundezas. O mercado e o povo pareciam-­se com o mar quando a tempestade se aproxima: tudo voou para todos os lados, especialmente ali onde o corpo deveria espatifar-­se.

Zaratustra, porém, permaneceu imóvel, e o corpo caiu exatamente ao seu lado, estropiado e arrebentado, mas ainda não morto. Após algum tempo o destroçado voltou a si e viu Zaratustra ajoelhar-­se a seu lado. “Que fazes aí?” disse, enfim. “Eu já sabia há tempos que o diabo me passaria a perna. Agora ele me arrasta para o inferno: acaso queres impedi-lo?”

“Por minha honra, amigo”, respondeu Zaratustra, “não existe nada disso de que falas: não há diabo e nem inferno. Tua alma morrerá ainda mais rápido do que teu corpo: não temas mais nada!”

O homem olhou para cima, desconfiado. “Se falas a verdade”, disse em seguida, “então não perco nada ao perder a vida. Não sou muito mais do que um animal ao qual se ensinou a dança por meio de açoites e magras recompensas.”

“Mas não”, falou Zaratustra; “tu fizeste do perigo o teu ofício, não há nada a desprezar nisso. Agora sucumbes em teu ofício: por isso quero enterrar-te com minhas próprias mãos.”

Tendo Zaratustra dito isso, o moribundo não mais respondeu; mas movia a mão, como que buscando a mão de Zaratustra em agradecimento. –


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