Livro ‘O desaparecimento de Stephanie Mailer’ por Joël Dicker

Livro ‘O desaparecimento de Stephanie Mailer’ por Joël Dicker

Novo livro do autor de A verdade sobre o caso Harry Quebert. Uma grande expectativa toma conta da badalada cidade de Orphea, nos Hamptons. A população aguarda ansiosamente a estreia de seu primeiro festival de teatro. Mas o prefeito está atrasado para a cerimônia. A poucos metros dali, Samuel Padalin percorre as ruas desertas em busca da esposa. Diante da casa do prefeito, um corpo é encontrado. E, no interior da residência, a cena é ainda pior: uma família inteira foi assassinada com extrema violência. Vinte anos após a resolução do homicídio, novos fatos mudarão para sempre a história de Orphea. A jornalista Stephanie Mailer confronta as autoridades e afirma que houve um gravíssimo erro na investigação. Então, ela desaparece. O que aconteceu com a jornalista? E o que de fato ocorreu em 30 de julho de 1994? Em uma narrativa repleta de reviravoltas e sequências inesperadas, o premiado escritor Joël Dicker…

Páginas: 576 páginas; Editora: Intrínseca; Edição: 1ª (11 de janeiro de 2019); ISBN-10: 8551003631; ISBN-13: 978-8551003633; ASIN: B07KYVT1D4

Leia trecho do livro

Caros leitores,

antes de vocês mergulharem neste livro, eu gostaria de homenagear meu editor. Bernard de Fallois, que nos deixou em janeiro de 2018.

Era um homem fora do comum, com um faro editorial excepcional. Devo-lhe tudo. Foi uma grande sorte tê-lo em minha vida. E eu sentirei muita falta dele.

Vamos à leitura!

Para Constante

LISTA DE PERSONAGENS


Jesse Rosenberg: capitão da polícia estadual de Nova York
Derek Scott: sargento da polícia estadual e antigo parceiro de Jesse
Anna Kanner: assistente do chefe de polícia de Orphea
Daria Scott: esposa de Derek Scott
Natasha Darrinski: noiva de Jesse Rosenberg
Alan Brown: prefeito de Orphea
Charlotte Brown: esposa de Alan Brown
Ron Gulliver: atual chefe de polida de Orphea
Jasper Montagne: assistente do chefe de polícia de Orphea
Meghan Padalin: vítima do quádruplo homicídio de 1994
Samuel Padalin: marido de Meghan Padalin
Joseph Gordon: prefeito de Orphea em 1994
Leslie Gordon: esposa de Joseph Gordon
Cody Illinois: dono da livraria de Orphea
Buzz Leonard: diretor do espetáculo Tio Vânia em 1994
Ted Tennenbaum: antigo proprietário do Café Athena Sylvia Tennenbaum: atual proprietária do Café Athena, irmã de Ted Tennenbaum
Michael Bird: editor responsável pelo Orphea Chronicle
Miranda Bird: esposa de Michael Bird
Steven Bergdorf: editor responsável pela Revista Literária de Nova York
Tracy Bergdorf: esposa de Steven Bergdorf
Skip Nalan: assistente do editor da Revista Literária de Nova York
Alice Filmore: funcionária da Revista Literária de Nova York
Meta Ostrovski: crítico da Revista Literária de Nova York
Kirk Harvey: antigo chefe de polícia de Orphea
Jerry Éden: CEO do Canal 14
Cynthía Éden: esposa de Jerry Éden
Dakota Éden: filha de Jerry e Cynthia Éden
Tara Scalini: amiga de infância de Dakota Éden
Gerald Scalini: pai de Tara Scalini

A RESPEITO DOS ACONTECIMENTOS DE 30 DE JULHO DE 1994

Apenas as pessoas familiarizadas com a região dos Hamptons, no estado de Nova York, souberam do que aconteceu em 3o de julho de 1994 em Orphea, uma pequena e badalada cidade balneária.

Naquela noite, Orphea inaugurava seu primeiro festival de teatro, e o evento, de alcance nacional, atraíra um bom público. Desde o fim da tarde, os turistas e a população local haviam começado a se aglomerar na rua principal para participar das diversas festividades organizadas pela prefeitura. Os bairros residenciais ficaram tão vazios que lembravam uma cidade fantasma: não havia mais pessoas nas calçadas, casais nos portões, nem crianças andando de patins na rua, ninguém nos jardins. Todo mundo estava na rua principal.

Por volta das oito horas da noite, no bairro completamente deserto de Penfield, o único sinal de vida era um carro que percorria lentamente as ruas abandonadas. Ao volante, um homem espreitava as calçadas com um fulgor de pânico no olhar. Nunca se sentira tão sozinho no mundo. Não havia ninguém para ajudá-lo. Não sabia o que fazer. Procurava desesperadamente sua mulher: ela saíra para correr e não voltara.

***

Samuel e Meghan Padalin eram dois dos poucos moradores que decidiram ficar em casa na primeira noite do festival. Não conseguiram ingressos para a peça de abertura, pois haviam se esgotado rapidamente, e não lhes apeteceu a ideia de se misturar às festividades populares da rua principal e da marina.

No fim da tarde, Meghan saíra por volta das seis e meia para correr, como fazia todos os dias. A não ser no domingo, quando dava um descanso ao corpo, fazia sempre o mesmo percurso todas as noites. Saía de casa e subia a Penfield Road até o Penfield Crescent, que formava um semicírculo ao redor de um pequeno parque. Parava ali para praticar uma série de exercícios no gramado — sempre os mesmos —, depois voltava para casa pelo mesmo caminho. Tudo durava exatamente 45 minutos. Às vezes cinquenta, quando prolongava os exercícios. Nunca mais que isso.

Às sete e meia, Samuel Padalin achou estranho que sua mulher ainda não tivesse voltado.

Às 19h45, começou a ficar preocupado.

Às oito horas, passou a andar de um lado para outro na sala.

Às 20h10 , não aguentando mais, resolveu percorrer o bairro de carro. Pareceu-lhe que o mais lógico seria refazer o percurso da habitual corrida de Meghan. Então foi o que fez.

Entrou na Penfield Road e foi até o Penfield Crescent, onde pegou uma bifurcação. Eram 20h20. Não havia uma pessoa sequer. Parou um instante para observar o parque, mas não viu ninguém ali. Ao retomar o percurso, notou uma forma na calçada. A princípio julgou ser um monte de roupas, até compreender que era um corpo. Saiu rapidamente do carro, o coração acelerado. Era sua mulher.

***

À polícia, Samuel Padalin disse que inicialmente tinha acreditado que havia sido um mal-estar, por causa do calor. Temera um ataque cardíaco. Contudo, ao se aproximar de Meghan, vira o sangue e o buraco na parte de trás da cabeça.

Começou a gritar, a clamar por ajuda, sem saber se devia ficar junto de sua mulher ou correr e bater nas portas das casas para que alguém ligasse para o socorro. Sua visão estava embaçada, tinha a impressão de que as pernas não o sustentavam mais. Seus gritos acabaram alertando um morador de uma rua paralela, que chamou o socorro.

***

Alguns minutos depois, a polícia já isolava o bairro.

Foi um dos primeiros agentes a chegar ao local que, no momento de estabelecer o perímetro do cordão de isolamento, percebeu que a poita da casa do prefeito, perto de onde fora encontrado o cadáver de Meghan, estava entreaberta. Aproximou-se, intrigado. Constatou que a porta havia sido arrombada. Sacou a arma, subiu aos saltos os degraus da escada da frente e se anunciou. Não obteve resposta. Empurrou a poita com a ponta do pé e viu que um cadáver de mulher jazia no corredor. Chamou reforços imediatamente, antes de adentrar lentamente a casa com a arma na mão. À sua direita, numa pequena sala, descobriu, horrorizado, o corpo de um menino. Em seguida, na cozinha, encontrou o prefeito numa poça de sangue, assassinado como os outros.

Toda a família fora trucidada.

PRIMEIRA PARTE

Nos abismos

-7
Desaparecimento de um jornalista



SEGUNDA-FEIRA, 23 DE JUNHO – TERÇA-FEIRA, 1º DE JULHO DE 2014

JESSE ROSENBERG


Segunda-feira, 23 de junho de 2014
33 dias antes da abertura do 21° festival de teatro de Orphea

A primeira e última vez que vi Stephanie Mailer foi quando ela participou da pequena recepção organizada para comemorar minha saída da polícia do estado de Nova York.

Naquele dia, um grande número de policiais de todas as brigadas se reuniu sob o sol do meio-dia diante do palanque de madeira que era montado para ocasiões especiais no estacionamento do centro regional da polícia estadual. Eu estava no palanque ao lado do meu superior, o major McKenna, que havia sido meu comandante ao longo de toda a minha carreira e me fazia uma homenagem.

— Jesse Rosenberg é um capitão jovem, mas, visivelmente, está com pressa de ir embora — disse o major, suscitando risadas no público. — Nunca imaginei que ele partiria antes de mim. A vida tem dessas: todo mundo queria que eu fosse embora, e continuo aqui. Todo mundo queria que Jesse ficasse, mas ele vai embora.

Eu tinha 45 anos e deixava a polícia sereno e feliz. Após 23 anos de serviço, me decidira pela aposentadoria à qual agora tinha direito, a fim de concluir um projeto que me motivava havia muito tempo. Eu ainda tinha uma semana de trabalho até o dia 30 de junho. Depois disso, começaria um novo capítulo da minha vida.

— Lembro-me do primeiro caso complicado de Jesse — prosseguiu o major. — Um quádruplo homicídio horrível, que ele resolveu brilhantemente, quando ninguém na brigada o julgava capaz disso. Ainda era um policial bem jovem. A partir desse momento, todos ficaram cientes de como Jesse é de fato. Todos que conviveram com ele sabem que foi um investigador excepcional. Acho que posso dizer, inclusive, que foi o melhor de todos nós. Nós o apelidamos de “Capitão 100%”, por ter resolvido todas as investigações de que participou, o que faz dele um investigador único. Policial admirado pelos colegas, perito respeitado e instrutor da academia de polícia durante muitos anos. Deixe-me lhe dizer uma coisa, Jesse: faz vinte anos que sentimos inveja de você!

A plateia riu novamente.

— Ainda não entendemos direito esse seu novo projeto, mas desejamos-lhe boa sorte na empreitada. Saiba que sentiremos sua falta, a polícia sentirá sua falta e, sobretudo, nossas mulheres sentirão sua falta, pois passavam as festinhas da polícia devorando-o com os olhos.

Uma chuva de aplausos se seguiu ao discurso. O major me deu um abraço amistoso, depois eu desci do palanque para cumprimentar todos os amigos presentes antes que eles corressem para o bufê.

Sozinho por um instante, fui então abordado por uma mulher muito bonita, na casa dos 30 anos, que eu não me lembrava de ter visto antes.

— Então o senhor é o famoso Capitão 100%? — perguntou ela com um tom sedutor.
— Parece que sim — respondi, sorrindo. — Por acaso nos conhecemos?
— Não. Meu nome é Stephanie Mailer. Sou jornalista do Orphea Chronicle.
Trocamos um aperto de mão. Então ela continuou:
— Vai ficar chateado se eu o chamar de Capitão 99%? Franzi a testa.
— Está insinuando que não resolvi algum dos meus casos? Como resposta, ela tirou da bolsa a fotocópia de um recorte do de 1º de agosto de 1994 a passou para mim.

CHACINA EM ORPHEA:
PREFEITO E SUA FAMÍLIA SÃO ASSASSINADOS

Sábado à noite, o prefeito de Orphea, Joseph Gordon, sua mulher e seu filho, de apenas 10 anos, foram mortos a tiros dentro de casa. A quarta vítima do homicídio chama-se Meghan Padalin, de 32 anos. A mulher fazia sua corrida diária quando os fatos ocorreram e provavelmente foi uma desafortunada testemunha do crime. Acabou assassinada por disparos vindos da rua, em frente à casa do prefeito.


Ilustrando a matéria, havia uma foto minha e de meu parceiro na época, Derek Scott, no local do crime.
— Aonde pretende chegar? — perguntei.
— O senhor não resolveu esse caso, capitão.
— Será que estou ouvindo direito?
— Em 1994, o senhor se enganou quanto ao culpado. Achei que gostaria de saber disso antes de deixar a polícia.
Logo pensei numa brincadeira de mau gosto dos meus colegas, até perceber que Stephanie estava muito séria.
— Por acaso está fazendo uma investigação por conta própria? — questionei-a.
— De certa maneira, capitão.
— De certa maneira? Terá de falar um pouco mais sobre isso se quiser que eu acredite no que está dizendo.
— Estou falando a verdade, capitão. Tenho um encontro daqui a pouco em que talvez eu consiga uma prova irrefutável.
— Encontro com quem?
— Capitão — disse ela num tom divertido —, não sou uma iniciante. Esse é o tipo de furo que um jornalista não quer correr o risco de perder. Prometo dividir minhas descobertas com o senhor na hora certa. Enquanto isso, tenho um favor a lhe pedir: gostaria de ter acesso aos arquivos da polícia estadual.
— Chama isso de favor? Para mim é chantagem! — rebati. — Primeiro me fale sobre sua investigação, Stephanie. São alegações muito graves.
— Tenho consciência disso, capitão Rosenberg. E por isso mesmo não pretendo ser superada pela polícia estadual.
— Lembro que a senhorita tem o dever de compartilhar com a polícia todas as informações importantes que obtiver. Está na lei. Eu também poderia ordenar uma averiguação no seu jornal.
Stephanie pareceu decepcionada com a minha reação.
— Então azar, Capitão 99% – respondeu ela. — Supus que isso pudesse interessá-lo, mas o senhor já deve estar pensando na sua aposentadoria e nesse novo projeto que o major mencionou no discurso. Do que se trata? Dar uma ajeitada em algum barco velho?
— Isso não é da sua conta — rebati secamente.
Ela deu de ombros e fez menção de partir. Eu tinha certeza de que estava blefando, e, de fato, ela parou após alguns passos e se virou na minha direção.
— A resposta estava na sua cara, capitão Rosenberg. O senhor simplesmente não a enxergou. Eu me senti ao mesmo tempo intrigado e irritado.
— Não sei se estou entendendo, Stephanie.
Ela então ergueu a mão e a posicionou na altura dos meus olhos.
— O que está vendo, capitão?
— Sua mão.
— Eu mostrei os dedos — corrigiu ela.
— Mas eu vejo sua mão — repliquei, sem compreender.
— Esse é o problema. O senhor viu o que queria ver, e não o que estavam lhe mostrando. Foi isso que o senhor deixou escapar há vinte anos.
Foram suas últimas palavras. Ela foi embora, me deixando com seu enigma, seu cartão de visita e a fotocópia da reportagem.
Ao avistar Derek Scott junto ao bufê, meu ex-parceiro que agora vegetava na divisão administrativa, corri até ele e mostrei o recorte de jornal.
— Você continua igual, Jesse — disse ele, sorrindo, divertindo-se ao ver aquela matéria tão antiga. — O que aquela mulher queria com você?
— E uma jornalista. Segundo ela, a gente errou feio em 1994. Ela afirma que na verdade não solucionamos a investigação, pois nos enganamos de culpado.
— O quê? — Derek parecia surpreso. — Mas isso não faz sentido.
— Eu sei.
— O que ela disse exatamente?
— Que a resposta estava na nossa cara e que não a enxergamos.
Derek ficou perplexo. Também aparentava estar abalado, mas decidiu afastar essa ideia da mente. — Não acredito em nada disso — concluiu ele, resmungando. — É só uma jornalista de segunda categoria que quer se promover às nossas custas.
— E, pode ser — respondi, pensativo. — Mas pode ser que não.
Ao vasculhar o estacionamento com o olhar, vi Stephanie entrar em seu carro. Ela me fez um sinal e gritou:
— Até logo, capitão Rosenberg!
Mas não houve “até logo”.
Porque foi nesse dia que ela desapareceu.

DEREK SCOTT

Lembro-me do dia em que toda essa história começou. Era um sábado, 3o de julho de 1994.

Naquela noite, Jesse e eu estávamos de serviço. Tínhamos parado para jantar no Blue Lagoon, um restaurante da moda, onde Daria e Natasha trabalhavam como garçonetes.

Nessa época, Jesse já namorava Natasha havia anos. Darla era uma de suas melhores amigas. As duas planejavam abrir um restaurante juntas e dedicavam seus dias a esse projeto: tinham encontrado o lugar e agora se organizavam para conseguir a licença para as obras. Nas noites e nos fins de semana, elas eram garçonetes no Blue Lagoon, e separavam metade do que ganhavam para investir no futuro estabelecimento.

Poderiam perfeitamente ter assumido a gerência do Blue Lagoon ou trabalhar na cozinha, mas o dono do estabelecimento lhes dizia: “Com essas carinhas bonitas e essas bundinhas lindas, o lugar de vocês é no salão. E não reclamem, vocês ganham muito mais em gorjetas do que se trabalhassem na cozinha.” Nesse último ponto, ele não estava errado: muitos clientes iam ao Blue Lagoon só para serem servidos por elas. Eram bonitas, meigas, risonhas. Tinham tudo a seu favor. Não havia sombra de dúvida de que o restaurante delas seria um tremendo sucesso; todo mundo já falava nele.

Daria era solteira. E confesso que, depois que a conheci, só pensava nela. Eu enchia o saco de Jesse para tomar um café no Blue Lagoon quando Natasha e Darla estavam lá. E nas ocasiões em que as duas se reuniam na casa de Jesse para trabalhar no projeto do restaurante, eu me intrometia para tentar impressionar Daria, mas minhas tentativas iam de mal a pior.

Por volta das oito e meia daquela fatídica noite de 30 de julho, Jesse e eu estávamos jantando no bar, alegres, e trocávamos algumas palavras com Natasha e Daria, que zanzavam à nossa volta. De repente meu bipe e o de Jesse começaram a apitar ao mesmo tempo. Olhamos preocupados um para o outro.

— Para os dois bipes tocarem ao mesmo tempo, deve ser grave — comentou Natasha.

Ela nos indicou a cabine telefônica do restaurante, bem como um aparelho no balcão. Jesse foi até a cabine, eu optei pelo balcão. As duas ligações foram breves.

— Recebemos um chamado geral para um caso de quádruplo homicídio — expliquei a Natasha e Darla, depois de desligar, dirigindo-me até a porta.

Jesse estava colocando o casaco.

— Anda logo! — repreendi-o. — A primeira unidade da divisão de homicídios que chegar ao local ficará com a investigação.

Éramos jovens e ambiciosos. Aquela era uma ótima oportunidade para nossa primeira investigação importante. Eu era mais experiente do que Jesse e já tinha a patente de sargento. Meus comandantes gostavam muito de mim. Todo mundo dizia que eu faria uma bela carreira na polícia.

Corremos pela rua até o carro e entramos apressadamente, eu ao volante, Jesse no banco do carona.

Arranquei à toda e Jesse pegou a sirene que estava no chão do veículo. Ligou-a e colocou a mão para fora da janela para instalá-la no topo da nossa viatura sem identificação policial, iluminando a noite com um brilho avermelhado.

Foi assim que tudo começou.

JESSE ROSENBERG

Quinta-feira, 26 de junho de 2014
30 dias antes da abertura do festival

Eu tinha imaginado que passaria minha última semana na polícia zanzando pelos corredores e tomando café com meus colegas para me despedir deles. Mas já fazia três dias que me trancava no meu escritório de manhã cedo e só saía tarde da noite, mergulhado no dossiê da investigação do quádruplo homicídio de 1994, que eu desenterrara dos arquivos. A visita de Stephanie Mailer me deixara abalado: não conseguia pensar em outra coisa a não ser naquela reportagem e na frase que ela pronunciara: “A resposta estava na sua cara, capitão Rosenberg. O senhor simplesmente não a enxergou.”

Mas me parecia que tínhamos visto tudo. Quanto mais eu percorria o dossiê, maior era a certeza de que se tratava de uma das investigações mais consistentes que eu realizara em minha carreira: todos os elementos estavam ali, as provas contra o homem acusado pelos assassinatos eram esmagadoras. Derek e eu havíamos trabalhado com seriedade e minúcia implacáveis. Eu não via nenhuma falha. Como poderíamos, então, ter nos enganado quanto ao culpado?

Naquela tarde, Derek apareceu na minha sala.

— O que está fazendo aí, Jesse? Todo mundo está à sua espera na cantina. Os colegas do secretariado fizeram um bolo para você.

— Já estou indo, Derek. Desculpe. Estou meio avoado.

Ele observou os documentos espalhados sobre a mesa. Pegou um deles e falou:

— Ah, não! Não vai me dizer que comprou as maluquices daquela jornalista!

— Derek, eu só queria me assegurar de…

Ele não deixou que eu terminasse a frase.

— Jesse, o dossiê era bem contundente! Você sabe disso tão bem quanto eu. Vamos, venha, está todo mundo esperando.

Assenti.

— Só mais um minuto, Derek. Estou indo.

Ele suspirou e saiu da sala. Peguei o cartão de visita à minha frente e liguei para Stephanie. O celular estava desligado. Eu já havia tentado ligar na véspera, sem sucesso. Ela não voltara a fazer contato depois do nosso encontro de segunda-feira e decidi não insistir mais. Stephanie sabia onde me encontrar. Acabei concluindo que Derek tinha razão: nada permitia duvidar das conclusões da investigação de 1994, então foi com paz de espírito que me juntei aos meus colegas na cantina.

Só que, ao voltar à minha sala uma hora mais tarde, encontrei um fax da polícia estadual de Riverdale, nos Hamptons, comunicando o desaparecimento de uma mulher: Stephanie Mailer, 32 anos, jornalista. Não tinham notícias dela desde segunda-feira.

Fiquei desnorteado. Arranquei a página do aparelho de fax e corri até o telefone para contatar o posto de Riverdale. Do outro lado da linha, um policial me explicou que os pais de Stephanie Mailer tinham aparecido no posto no começo da tarde, preocupados porque a filha não fizera contato desde segunda-feira. — Por que os pais procuraram a polícia estadual e não a polícia local? — perguntei.

— Eles fizeram isso, mas a polícia local aparentemente não levou o caso a sério. Então pensei que o melhor era reportar os acontecimentos à divisão de buscas. Talvez não seja nada, mas achei melhor repassar a informação.

— Fez bem. Vou cuidar disso.

Liguei imediatamente para a mãe de Stephanie, que parecia preocupadíssima. Sua última conversa com a filha datava da manhã de segunda-feira. Depois, nada. O celular estava fora de área. Nenhuma das amigas de Stephanie conseguira fazer contato com ela. Por fim, a mãe decidira ir até o apartamento da filha com a polícia local, mas não havia ninguém lá.

Fui logo procurar Derek em seu gabinete da divisão administrativa.

— Stephanie Mailer, aquela jornalista que veio aqui na segunda-feira, desapareceu — contei.

— Será que ouvi direito, Jesse?

Estendi para ele o comunicado do desaparecimento.

— Veja com os próprios olhos. Temos de ir a Orphea. Precisamos verificar o que está acontecendo. Isso tudo não pode ser coincidência.

Ele suspirou.

— Mas você não está prestes a sair da polícia, Jesse?

— Só daqui a quatro dias. Ainda sou policial até lá. Segunda-feira, quando a encontrei, Stephanie disse que ia ter um encontro que talvez lhe desse as provas que faltavam à sua investigação…

— Passe o caso para um de seus colegas — sugeriu ele.

— Isso está fora de questão! Derek, essa mulher me garantiu que em 1994…

Mais uma vez, ele não deixou que eu terminasse a frase.

— A investigação está encerrada, Jesse! Isso é passado! O que deu em você? Por que cismou em mergulhar de novo nesse caso? Realmente quer reviver tudo aquilo?

Lamentei sua falta de apoio.

— Então não quer ir a Orphea comigo?

— Não, Jesse. Sinto muito. Acho que você está delirando.

***

Então fui sozinho a Orphea vinte anos depois de ter colocado os pés lá pela última vez. Desde o quádruplo homicídio.

Eu teria pela frente uma hora de viagem desde o centro regional da polícia estadual, mas, para ganhar tempo, me livrei das restrições de velocidade ao ligar a sirene do carro. Peguei a autoestrada 27 até a bifurcação para Riverhead, depois a autoestrada 25 na direção noroeste. Em seu último trecho, ela atravessava uma natureza suntuosa, composta por uma floresta luxuriante e lagoas repletas de ninfeias. Não demorei a alcançar a rodovia 17, uma reta sem fim e deserta, que dava acesso a Orphea e pela qual voei como uma flecha. Uma placa imensa logo anunciou que eu finalmente tinha chegado.


BEM-VINDO A ORPHEA, ESTADO DE NOVA YORK

FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO, DE 26 DE JULHO A 9 DE AGOSTO

Eram cinco horas da tarde. Entrei na rua principal, verdejante e colorida. Vi de passagem os restaurantes, as varandas e as lojas. Um ambiente pacífico e caloroso. Com a proximidade das festividades do Quatro de Julho, os postes haviam sido enfeitados com faixas de bandeiras dos Estados Unidos, e painéis anunciavam fogos de artifício para a noite do feriado. Ao longo da marina, ladeada por canteiros de flores e arbustos podados, as pessoas caminhavam entre os quiosques, que ofereciam passeios de observação de baleias e locação de bicicletas. A cidade parecia o cenário de um filme.

***

Minha primeira parada foi no posto da polícia local.

Ron Gulliver, chefe de polícia de Orphea, recebeu-me em sua sala. Não precisei lembrar-lhe de que já havíamos nos encontrado vinte anos atrás: ele não tinha se esquecido de mim.

— O senhor não mudou nada — comentou, ao apertar minha mão.

Eu não pude dizer o mesmo dele. O homem envelhecera mal e tinha engordado muito. Embora não fosse mais hora do almoço e faltasse muito para o jantar, ele estava comendo espaguete num recipiente de plástico. Enquanto eu lhe explicava as razões da minha vinda, ele engoliu metade da comida de uma forma bastante nojenta.

— Stephanie Mailer? — perguntou, espantado e de boca cheia. — Já resolvemos esse caso. Não se trata de desaparecimento. Expliquei isso aos pais dela, que cá entre nós são uns chatos de galocha. É praticamente impossível se livrar deles!

— Talvez sejam apenas pais preocupados com a filha — argumentei. — Estão sem notícias de Stephanie há três dias e dizem que isso não costuma acontecer. O senhor compreende que desejo tratar o caso com a presteza necessária, não é?

— Stephanie Mailer tem 32 anos. Ela pode fazer o que quiser, não acha? Acredite em mim, se eu tivesse pais como os dela, teria vontade de fugir, capitão Rosenberg. O senhor pode ficar tranquilo, Stephanie apenas resolveu ficar um tempo fora.

— Como pode ter certeza disso?

— Foi o chefe dela, o editor do Orphea Chronicle, quem me disse. Ela mandou uma mensagem de texto para o celular dele justamente na noite de segunda.

— A noite do desaparecimento — comentei.

— Repito que ela não desapareceu! — irritou-se Gulliver.

A cada exclamação, perdigotos de molho de tomate saíam de sua boca. Recuei um pouco para evitar que aterrissassem em minha camisa impecável. Após deglutir, Gulliver continuou:

— Meu assistente foi com os pais de Stephanie até a casa dela. Abriram a porta com a cópia da chave e inspecionaram: estava tudo em ordem. A mensagem recebida pelo editor confirmou que não havia motivo para preocupação. Stephanie não deve satisfação a ninguém. O que ela faz não é da nossa conta. Quanto a nós, fizemos nosso trabalho corretamente. Então, por favor, não venha encher meu saco.

— Os pais estão muito preocupados — insisti —, e, com sua permissão, gostaria de verificar eu mesmo se está tudo bem.

— Se tem tempo a perder, capitão, não se importe comigo. É só esperar meu assistente, Jasper Montagne, voltar de sua patrulha. Foi ele que cuidou de tudo.

Quando o sargento Jasper Montagne finalmente chegou, me vi diante de um brutamontes de músculos saltados e expressão assustadora. Ele explicou que tinha acompanhado os pais de Stephanie até a casa dela. Entraram no apartamento: ela não estava. Nada que chamasse a atenção. Nenhum sinal de briga, nada fora do comum. Em seguida, Montagne dera uma geral nas ruas adjacentes, à procura do carro da moça, em vão. O empenho o fizera chegar ao ponto de ligar para os hospitais e postos de polícia da região: nada. Stephanie Mailer simplesmente se ausentara de casa.

Como eu queria dar uma espiada no apartamento dela, ele se ofereceu para me acompanhar. Stephanie morava na Bendham Road, uma ruazinha calma, nas proximidades da rua principal, num prédio estreito e baixo. Uma loja de ferragens ocupava o térreo, alguém alugava o apartamento do primeiro andar e Stephanie o do segundo.

Toquei insistentemente a campainha do apartamento. Bati à porta, gritei, mas em vão: claramente não havia ninguém.

— Como pode ver, ela não está em casa — disse Montagne.

Girei a maçaneta: a porta estava trancada.

— Será que podemos entrar? — perguntei.

— Está com a chave?

Não.

— Eu também não. Foram os pais dela que abriram no outro dia.

— Então não podemos entrar?

— Não. E não vamos começar a arrombar a porta das pessoas sem motivo! Se quiser ter certeza absoluta de que está tudo bem, vá até o jornal e fale com o editor, ele lhe mostrará a mensagem que Stephanie enviou na noite de segunda-feira.

— E o vizinho de baixo? — perguntei.

— Brad Melshaw? Interroguei-o ontem, ele não viu nem ouviu nada estranho. Não adianta bater na casa dele, é cozinheiro no Café Athena, o restaurante badalado no alto da rua principal, e está lá agora.

Não me deixei abalar por isso: desci um andar e toquei na casa de Brad Melshaw. Mais uma vez em vão.

— Eu disse.

Montagne suspirou e desceu a escada enquanto eu permanecia ali, esperando que alguém abrisse a porta.

Quando segui até a escada para descer também, Montagne já havia saído do prédio. Chegando ao hall de entrada, aproveitei que estava sozinho para inspecionar a caixa de correspondência de Stephanie. Ao espiar pela abertura, vi que havia uma carta e consegui pegá-la com a ponta dos dedos. Dobrei-a ao meio e a coloquei discretamente no bolso de trás da minha calça.

***

Após nossa parada no prédio de Stephanie, Montagne me levou à redação do Orphea Chronicle, perto da rua principal, para que eu pudesse falar com Michael Bird, editor do jornal.

A redação ficava num prédio de tijolos vermelhos. O lado de fora tinha uma boa aparência, já o interior, no entanto, estava caindo aos pedaços.

Michael Bird nos recebeu em sua sala. Ele já estava em Orphea em 1994, mas eu não me lembrava de ter cruzado com ele. Bird me explicou que, por uma confluência de fatores, assumira as rédeas do Orphea Chronicle três dias após a chacina e passara a maior parte desse período mexendo em papelada, sem sair para fazer apurações jornalísticas.

— Há quanto tempo Stephanie Mailer trabalha para vocês? — perguntei a Michael Bird.

— Cerca de nove meses. Contratei Stephanie em setembro do ano passado.

— Ela é uma boa jornalista?

— Muito boa. Subiu o nível do jornal. Isso é importante para nós, porque é muito difícil sempre ter conteúdo de qualidade. Sabe como é, o jornal vai mal financeiramente. Continuamos funcionando porque nosso prédio é cedido pela prefeitura. As pessoas não leem mais jornal impresso hoje em dia, os anunciantes não estão mais interessados. Antes éramos uma publicação regional importante, lida e respeitada. Mas, atualmente, por que alguém leria o Orphea Chronicle quando pode ler o The New York Times on-line? E não estou nem falando daqueles que não leem mais nada, que se contentam em se informar no Facebook.

— Quando viu Stephanie pela última vez? — continuei.

— Segunda de manhã. Na reunião semanal da redação.

— E notou alguma coisa diferente? Algum comportamento incomum?

— Não, nada. Sei que os pais de Stephanie estão preocupados, mas como expliquei ontem a eles e ao sargento Montagne, ela me enviou uma mensagem segunda à noite, bem tarde, avisando que teria de se ausentar.

Ele pegou o celular no bolso e me mostrou a mensagem, recebida à meia-noite de segunda para a terça.

Precisarei me ausentar de Orphea por certo tempo.
É importante. Explicarei tudo depois.

— E não teve notícias depois dessa mensagem? — perguntei.

— Não. Mas, sinceramente, isso não me preocupa. Stephanie é uma jornalista bem independente. Ela avança em suas matérias em um ritmo próprio. Não me meto no que ela faz.

— Sobre o que ela está trabalhando atualmente?

— Sobre o festival de teatro. Todos os anos, no final de julho, temos um importante festival de teatro em Orphea…

— Sim, estou sabendo.

— Pois bem, Stephanie queria cobrir o festival e se envolver intimamente com o evento. Está redigindo uma série de reportagens. Decidiu entrevistar os voluntários que garantem a continuidade do festival.

— É do feitio dela desaparecer assim? — quis saber.

— Eu diria ausentar-se — ressaltou Michael Bird. — Sim, ela volta e meia se ausenta. Sabe, a atividade jornalística costuma exigir que deixemos nossos escritórios.

— Por acaso Stephanie lhe falou de uma investigação importante que estava fazendo? — insisti. — Ela declarou ter um encontro relevante a esse respeito na segunda à noite…

Permaneci vago, não queria dar mais detalhes. Mas Michael Bird balançou a cabeça.

— Não — disse ele —, ela nunca falou disso.

***


Tags: ,