Livro ‘O Construtor de Pontes’ por Markus Zusak

Livro 'O Construtor De Pontes' por Markus Zusak - Se em A menina que roubava livros é a morte quem conta a história, em O construtor de pontes presente e passado se fundem na voz de outro narrador igualmente potente: Matthew, o filho mais velho da família Dunbar. Sentado diante de uma máquina de escrever antiga, ele nos conta sobre um dos seus quatro irmãos, Clay....
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Se em A menina que roubava livros é a morte quem conta a história, em O construtor de pontes presente e passado se fundem na voz de outro narrador igualmente potente: Matthew, o filho mais velho da família Dunbar. Sentado diante de uma máquina de escrever antiga, ele nos conta sobre um dos seus quatro irmãos, Clay. Todos mudaram por causa dele. Em uma tarde ensolarada o patriarca dos Dunbar, que anos antes abandonara os cinco filhos à própria sorte, retorna com um pedido inusitado: precisa de ajuda para construir uma ponte. Escorraçado pelos jovens, o homem vai embora novamente, mas deixa seu endereço. Acontece que há um traidor entre os irmãos: Clay....
Capa comum : 528 páginas
ISBN-13 : 978-8551003985
Dimensões do produto : 23 x 15.6 x 3.6 cm
Editora : Intrínseca; 1ª edição (20 fevereiro 2019)
Idioma: : Português

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Leia trecho do livro

Para Scout, Kid e Little Small.
Para Cate, e em memória de nossa querida K.E.: uma grande apaixonada pela linguagem.

Se em A menina que roubava livros é a morte quem conta a história, em O construtor de pontes presente e passado se fundem na voz de outro narrador igualmente potente: Matthew, o filho mais velho da família Dunbar. Sentado diante de uma máquina de escrever antiga, ele nos conta sobre um dos seus quatro irmãos, Clay....
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NO INÍCIO HAVIA um assassino, uma mula e um menino, mas este não é exatamente o início, é antes disso, sou eu, Matthew, e aqui estou, na cozinha, no meio da noite — a boa e velha foz de luz —, com os golpes, o tec-tec-tec. O restante da casa está em silêncio.

Só sei que, no momento, todos dormem.

Estou à mesa da cozinha.

Só eu e a máquina de escrever — eu e a velha Tec-tec, que era como, de acordo com nosso saudoso pai, nossa saudosa avó a chamava, mas essas esquisitices nunca foram muito o meu negócio. Sou mais conhecido pelos hematomas e pela responsabilidade, porte alto e músculos e blasfêmias, e por uma dose de sentimentalismo. Se você for como a maioria das pessoas, talvez duvide que eu consiga formular uma frase completa, e mais ainda que eu conheça algo sobre os épicos, ou os gregos. Às vezes é bom ser subestimado dessa forma, mas é muito melhor quando alguém reconhece.

No meu caso, dei sorte:

Porque tive Cláudia Kirkby.

Tive também um menino, um filho, um irmão.

Aliás, no nosso caso foi assim desde o começo: tivemos um irmão, e foi ele — de nós cinco — quem carregou tudo nas costas. Como de costume, me contou tudo baixinho, decidido, e é claro que não errou nem uma vírgula.

Havia mesmo uma velha máquina de escrever enterrada no velho quintal de uma velha cidade de fundo de quintal, mas eu tive que prestar muita atenção às distâncias, para não correr o risco de desenterrar um cachorro morto ou uma cobra (o que acabei fazendo de qualquer forma). Mas aí concluí que, se o cachorro estava lá e a cobra também, a máquina de escrever não poderia estar longe.

Um tesouro perfeito e sem piratas.

* * *

No dia seguinte ao meu casamento, peguei a estrada.

Saí da cidade.

Ganhei a noite.

Cruzei as cordilheiras de espaço vazio, e um pouco além.

A cidade era um reino de fantasia árido e distante, um imenso campo de palha com maratonas de céu aberto, cercada por eucaliptos e por uma vegetação rasteira selvagem. E não é que era verdade? Vi com meus próprios olhos: as pessoas ali viviam cabisbaixas, encurvadas. Cansadas deste mundo.

Foi em frente ao banco, perto de um dos vários pubs da região, que uma mulher me indicou o caminho. Era a moça mais empertigada da cidade.

— Pega a esquerda na rua Turnstile, está bem? Depois segue reto por uns duzentos metros, e aí esquerda de novo.

De cabelo castanho e bem-vestida, a mulher usava calça jeans e botas, camisa vermelha, e fechava um dos olhos por conta do sol. A única coisa que a entregava era o triângulo invertido de pele à mostra, logo abaixo do pescoço: cansada e velha e cheia de vincos em zigue-zague, como a alça de um baú de couro.

— Entendeu?

— Entendi.

— Que número você está procurando?

— Vinte e três.

— Ah, então você está atrás dos Merchison, certo?

— Humm, mais ou menos.

A mulher se aproximou, e eu observei aqueles dentes dela, brancos e brilhan­tes e, ainda assim, amarelados; muito parecidos com o sol soberbo. Quando ela chegou ainda mais perto, estendi a mão, e lá ficamos eu e ela e os dentes dela e a cidade dela.

— Meu nome é Matthew — falei, e a mulher, ela era Dafne. Então ela se virou e largou para trás o caixa eletrônico. Chegou a abandonar o cartão do banco para ficar ali, com a mão na cintura. Eu já estava com me­tade do corpo no banco do motorista quando Dafne assentiu, compreendendo. Praticamente tudo se encaixou para ela; foi como alguém lendo uma notícia no jornal.

— Matthew Dunbar.

Foi uma afirmação, não uma pergunta.

Lá estava eu, a doze horas de casa, numa cidade em que nunca tinha posto os pés em todos os meus trinta e um anos de vida, e, de alguma forma, parecia que todos estavam à minha espera.

* * *

Ficamos um bom tempo nos entreolhando, no mínimo alguns segundos, e tudo foi escancarado, exposto. Surgiram pessoas vagando pelas ruas.

— O que mais você sabe? — perguntei. — Sabe que estou aqui para pegar a máquina de escrever?

Ela abriu o olho.

Enfrentou o sol de meio-dia.

— Máquina de escrever? — Eu tinha deixado a mulher totalmente perdida. — Que máquina de escrever?

Bem na hora, um senhor começou a gritar, perguntando se ela era a dona da merda do cartão que estava empatando a merda da fila da merda do caixa eletrônico, e ela correu para pegar suas coisas. Talvez eu pudesse ter explicado — dito que havia uma velha máquina de escrever nessa história toda, do tempo em que ainda se usavam máquinas de escrever em consultórios médicos, as secretárias lá, batendo nas teclas. Se ela estava interessada ou não, aí já não sei. Só sei que as instruções que me deu foram certeiras.

Rua Miller.

Uma tranquila linha de montagem de casinhas elegantes assando ao sol. Estacionei, bati a porta do carro e atravessei o gramado ressecado.

* * *

Foi bem nesse instante que me arrependi de não ter levado a garota com quem havia acabado de me casar — ou melhor, a mulher com quem havia acabado de me casar, mãe das minhas duas filhas — e, é claro, minhas filhas também. As meninas teriam adorado aquele lugar, teriam saído saltitando, dançando, com as pernas longas e o cabelo reluzindo ao sol. Teriam dado estrelas no gramado, gritando: “Não olha para a nossa calcinha, hein?”

Uma lua de mel e tanto:

Cláudia trabalhando.

As meninas na escola.

É claro que parte de mim ainda gostava daquilo; muito de mim ainda gostava muito.

Respirei fundo, soltei o ar e bati à porta.

* * *

Do lado de fora, no longo quintal infértil, fui em direção a um varal e a uma árvore de banksias maltratada e sem viço. Olhei para trás por um instante: a casa pequena, as telhas de zinco. O sol ainda banhava o telhado, mas já recuava, inclinando-se para oeste. Cavei com a pá e as mãos, e lá estava.

— Droga!

A cachorra.

Outra vez.

— Droga!

A cobra.

Ambos reduzidos a ossos.

Limpamos os dois com cuidado.

Colocamos no gramado.

— Minha nossa!

O homem repetiu isso três vezes, a exclamação mais alta quando finalmente encontrei a velha Remington cinza-chumbo. Como se fosse uma arma enterrada, estava enrolada em três camadas de plástico grosso mas tão transparente que revelava as teclas: primeiro o Q e o W, depois toda a seção intermediária com o F e o G, o H e o J.

Passei algum tempo olhando para ela, só olhando:

Aquelas teclas pretas, como dentes de um monstro, dentes de um monstro bonzinho.

Por fim, eu me estiquei e a tirei de lá com cuidado, as mãos imundas. Tapei os três buracos no quintal. Desembrulhamos o plástico e nos agachamos para observá-la com atenção.

— Uma relíquia e tanto — disse o sr. Merchison, fazendo os cutelos peludos tremelicarem.

— É, sim — concordei; era mesmo sublime.

— Quando acordei hoje de manhã, como eu ia imaginar que algo assim fos­se acontecer?

Ele pegou a Remington e a entregou para mim.

— Quer ficar para o jantar, Matthew?

Foi a senhora quem perguntou, meio surpresa, mas a surpresa não ofuscou o jantar.

Sem ter me levantado ainda, ergui os olhos.

— Obrigado, sra. Merchison, mas continuo com a barriga cheia de tanto biscoito. — Olhei a casa mais uma vez; já estava encoberta pelas sombras. — Na verdade, é melhor eu ir andando. — Apertei a mão de ambos, dizendo: — Não tenho palavras para agradecer.

Comecei a me afastar com a máquina de escrever aninhada nos braços.

O sr. Merchison não ficou nada satisfeito e não fez questão de esconder:

— Ei!

E o que mais eu poderia fazer?

Não dá para sair desenterrando dois animais sem apresentar uma boa explicação, então dei meia-volta e, já embaixo do varal — um Hills Hoist velho de guerra, igualzinho ao nosso —, fiquei esperando para ouvir o que ele diria.

— Não está se esquecendo de nada, não, camarada? Então indicou os ossos do cachorro e da cobra.


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