Livro ‘Minha História’ por Michelle Obama

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Um relato íntimo, poderoso e inspirador da ex-primeira-dama dos Estados Unidos. Com uma vida repleta de realizações significativas, Michelle Obama se consolidou como uma das mulheres mais icônicas e cativantes de nosso tempo. Como primeira-dama dos Estados Unidos — a primeira afro-americana a ocupar essa posição —, ela ajudou a criar a mais acolhedora e inclusiva Casa Branca da história. Ao mesmo tempo, se posicionou como uma poderosa porta-voz das mulheres e meninas nos Estados Unidos e ao redor do mundo, mudando drasticamente a forma como as famílias levam suas vidas em busca de um modelo mais saudável e ativo, e se posicionando ao lado de seu marido durante os anos em que Obama presidiu os Estados Unidos em alguns dos momentos mais angustiantes da história do país. Ao longo do caminho, ela nos ensinou alguns passos de dança, arrasou no Carpool Karaoke…

Páginas: 464 páginas; Editora: Objetiva; Edição: 1 (13 de novembro de 2018); ISBN-10: 854700064X; ISBN-13: 978-8547000646; ASIN: B07D92WXW3

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Biografia do autor: Michelle Robinson Obama foi primeira-dama dos Estados Unidos de 2009 a 2017. Formada pela Universidade de Princeton e Harvard Law School, começou sua carreira como advogada no escritório de advocacia Sidley & Austin, em Chicago, onde conheceu Barack Obama, seu futuro marido. . Mais tarde, ele trabalhou na Prefeitura e na Universidade de Chicago e no Centro Médico da Universidade de Chicago. Também naquela cidade fundou a filial da Public Allies, organização que prepara jovens para trabalhar no setor de serviços públicos. Os Obamas vivem atualmente em Washington D.C. e eles têm duas filhas, Malia e Sasha.

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Livro "Minha história - Michelle Obama"  - Um congressista americano já fez piada da minha bunda. Fui magoada. Fiquei furiosa. Mas, acima de tudo, tentei rir das coisas...  Baixar PDF, Download, Frases de Michelle Obama, Resenha, Resumo, Análise e Critica...

Michelle Obama

Minha história

A todas as pessoas que me ajudaram a me tornar quem sou: as pessoas que me criaram — Fraser, Marian, Craig — e minha enorme família estendida, meu grupo de mulheres que me anima, minha equipe leal e dedicada que sempre me deixa orgulhosa.

Aos amores de minha vida: Malia e Sasha, minhas duas gotinhas preciosas, minhas razões de viver, e, por fim, Barack, que sempre me prometeu uma jornada interessante.

Prefácio

Março de 2017
Quando eu era criança, tinha aspirações simples. Queria um cachorro. Queria uma casa com escada — dois andares para uma família. Por algum motivo, queria uma perua de quatro portas em vez do Buick de duas portas que era a menina dos olhos de meu pai. Eu falava para as pessoas que, quando crescesse, seria pediatra. Por quê? Porque adorava crianças pequenas e logo aprendi que a resposta era agradável aos ouvidos dos adultos. Ah, vai ser médica! Boa escolha! Na época, eu usava maria-chiquinha e vivia mandando no meu irmão mais velho, e não importava o que acontecesse, sempre tirava 10 na escola. Era ambiciosa, embora  não soubesse muito bem qual era minha meta. Hoje em dia penso que essa é uma das perguntas mais inúteis que um adulto pode fazer a uma criança — O que você quer ser quando crescer? Como se crescer fosse algo finito. Como se a certa altura você se tornasse algo e ponto-final.

Até agora, fui advogada. Fui vice-presidente de um hospital e diretora de uma ONG que ajuda jovens a construírem uma carreira significativa. Fui estudante negra da classe trabalhadora em uma faculdade de elite de maioria branca. Fui a unica mulher, a única afro-americana, em todos os tipos de ambientes. Fui a noiva, a mãe estressada de uma recém-nascida, a filha consternada pelo luto. E até pouco tempo atrás, fui a primeira-dama dos Estados Unidos da América — emprego que não é oficialmente um emprego, mas ainda assim me deu uma plataforma que jamais imaginaria. Ele me desafiou e me deu uma lição de humanidade, me estimulou e me retraiu, as vezes tudo ao mesmo tempo. Só agora eu estou começando a processar o que aconteceu nesses últimos anos — do instante, em 2006, em que meu marido começou a falar em concorrer à presidência até a manhã fria de inverno quando entrei na limusine como Melania Trump, para acompanhá-la à posse do marido. Foi uma jornada e tanto.

Quando se é a primeira dama, você enxerga os Estados Unidos em seus extremos. Fui a festas beneficentes em casas que parecem museus de arte, casas em que as pessoas tem banheiras feitas de pedra preciosas, visitei famílias que perderam tudo no furacão Katrina e choraram de gratidão por terem uma geladeira e um fogão funcionando. Conheci pessoas fúteis e hipócritas, mas também outras — professores, esposas de militares e tantas mais — cuja almas me surpreenderam pela imensidão e pela força. E conheci crianças — muitas, no mundo inteiro — que eme fizeram rir e me encheram de esperança e, felizmente, conseguiram esquecer meu título depois que começávamos a remexer a terra de um jardim.

Desde que entrei, relutante na vida pública, fui considerada a mulher mais poderosa do mundo e apontada como a “mulher negra mais raivosa”. Queria perguntar ao meus detratores qual a expressão eles consideram a mais relevante — “mulher”, “negra” ou “raivosa”? Sorri para as fotos com gente que chamava meu marido de nomes horríveis em cadeia nacional, mas mesmo assim queriam uma lembrança emoldurada para por no console da lareira. Ouvir falar dos lugares lamacentos da internet que questionam tudo a meu respeito, até se sou homem ou mulher. Um congressista americano já fez piada da minha bunda. Fui magoada. Fiquei furiosa. Mas, acima de tudo, tentei rir das coisas.

Ainda não sei muito sobre os Estados Unidos, sobre a vida, sobre o que o futuro trará. Mas eu me conheço. Mu pai, Fraser, me ensinou a trabalhar duro, rir com frequência e cumprir com a minha palavra. Minha mãe. Mariam, me ensinou a pensar com a própria cabeça e a usar minha voz. Juntos, no nosso apartamento apertado  o South Side de Chicago, eles me ajudaram a enxergar o valor da nossa história, da minha história, da história mais ampla deste país. Mesmo quando não é bonita eu perfeita. Mesmo quando é mais real do que você gostaria que fosse. Sua história é o que você tem, o que sempre terá. É algo para se orgulhar.

Durante oito anos morei na Casa Branca, lugar com um número incontável de escadas — além de elevadores, uma pista de boliche e um florista. Dormia em uma cama com lençol de linho italiano. Nossas refeições eram preparadas por uma equipe de chefes de nível internacional e servidas por profissionais mais bem treinados do que qualquer restaurante ou hotel de cinco estrelas. Agentes do serviço Secreto, com seus fones de ouvido, suas armas de expressões internacionalmente neutras, ficavam diante de nossas portas, fazendo o possível para manter distância da vida particular da nossa família. De certo modo, acabamos nos acostumando com isso — com a estranha grandiosidade da nossa nova casa e também com a presença constante, embora silenciosa, de outras pessoas.

Era na Casa Branca que nossas duas meninas jogavam bola nos corredores e subiam nas árvores do Gramado Sul. Era onde Barack se sentava tarde e noite, estudando informes e rascunhos de discursos na Sala dos Tratados, e onde Sunny, um dos nossos cachorros, às vezes fazia cocô no tapete. Eu podia ficar na Varanda Truman observando os turistas posando com seus paus de selfie e espiando pela cerca de ferro, tentando imaginar o que acontecia lá dentro. Em certos dias me sentia sufocada pelo fato de nossas janelas precisarem ficar fechadas por segurança, de que eu não podia tomar um ar fresco sem gerar alvoroço. Havia momentos em que ficava boquiaberta com as magnólias brancas que floresciam do lado de fora, agitação cotidiana dos assuntos do governo, a grandiosidade das boas-vindas militares; Havia dias, semanas, meses em que odiava política. E havia momentos em que a beleza do país e do seu povo me deixava tão absorta que eu nem sequer conseguia falar.

E então acabou. Mesmo já esperando por isso, mesmo que as últimas semanas tenham sido cheias de despedidas emotivas, o dia em si ainda é um borrão. A mão sobre a Bíblia; o juramento repetido. A mobília de um presidente é a retirada enquanto a do outro chega. Closets são esvaziados e reabastecidos em poucas horas. De repente há novas cabeças em novos travesseiros — novos temperamentos, novos sonhos. E quando você sai pela última vez de um dos endereços mais famosos do mundo, é preciso sob muitos aspectos, se encontrar outra vez.

Então vamos começar por aqui, por uma coisinha que não faz muito tempo. Eu estava na casa de tijolos vermelhos para a qual nos mudamos recentemente. Nossa casa nova fica a cerca de três quilômetros da antiga, em uma rua residencial tranquila. Ainda estamos nos acomodando. Na sala de estar, nossos móveis foram dispostos como na Casa Branca. Temos recordações espalhadas pela casa, nos lembrando que tudo foi verdade –fotos das nossas férias em família em Camp David, vasos feitos à mão por estudantes indígenas, um livro autografado por Nelson Mandela. O esquisito dessa noite foi que não havia ninguém em casa. Barack estava viajando. Sasha tinha saído com amigos. Malia está morando e trabalhando em Nova York, terminando ano sabático antes de começar a faculdade. Éramos só  eu nossos dois cachorros e uma casa silenciosa, vazia, algo que eu não via havia oito anos.

E eu estava com fome. Saí do quarto e desci a escada com os cachorros no meu encalço. Na cozinha, abri a geladeira. Achei um saco de pão, peguei duas fatias e as coloquei no forno elétrico. Abri o armário e peguei um prato. Sei que é esquisito, mas esse momento — de tirar um prato do armário da cozinha sem antes alguém insistir em pegá-lo para mim e ficar parada sozinha vendo o pão tostar no forninho — me pereceu o que há de mais próximo de uma retomada da minha antiga vida. Ou talvez seja minha nova vida começando a se anunciar.

No fim das contas, não fiz só uma torrada; fiz queijo quente, pondo as fatias de pão no micro-ondas e derretendo uma massa pegajosa e  gordurosa de cheddar no meio delas. Depois, levei o prato para o quintal. Não precisava dizer a ninguém onde estava indo. Simplesmente fui. Estava descalça, de shorts. O frio do inverno havia enfim se dissipado. Os crocos começaram a irromper dos canteiros junto ao muro dos fundos. O ar cheirava primavera, sentei-mena escadinha da varanda, sentindo o calor de um dia inteiro de sol ainda na ardósia sob meus pés. Um cachorro começou a latir em algum lugar distante, e meus cachorros prestaram atenção, confusos por um instante. Foi então que passou na minha cabeça que aquele era um barulho surpreendente para eles, pois não tínhamos vizinhos, muito menos cachorros na Casa Branca. Para eles, tudo era novidade. Enquanto os cães exploravam o quintal, eu comia meu queijo quente no escuro, me sentindo sozinha da melhor maneira possível. Minha cabeça não estava no grupo de guardas armados a menos de cem metros de mim, no posto de comando destruído especialmente para nossa garagem, ou no fato de que ainda não posso andar na rua sem seguranças. Não estava pensando no novo presidente nem no antigo presidente.

Na verdade estava pensando que dali a alguns minutos eu voltaria para dentro de casa, lavaria o prato na pia e iria para a cama, e talvez abrisse a janela para sentir o ar da primavera — que glória seria! Também estava pensando que aquele sossego me oferecia a primeira oportunidade verdadeira de refletir. Quando era primeira-dama, eu chegava ao fim de uma semana movimentada precisando que me lembrassem como ela havia começado. Mas a noção de tempo está começando a ficar diferente. Minhas meninas, que, chegaram a Casa Branca com bonecas, uma cobertinha de estimação e um tigrinho de pelúcia chamado Tiger agora são adolescentes, jovens com planos e vozes próprias. Meu marido está se adaptando à vida depois da Casa Branca, recuperando fôlego. E aqui estou eu, nesse lugar novo, com vontade de falar muita coisa.

A HISTÓRIA COMEÇA

1

Passei boa parte da infância escutando o som do esforço. Chegava a mim sob a forma de música ruim, ou pelo menos amadora, atravessando as taboas do assoalho do meu quarto — plim-plim-plim dos alunos sentados no andar de baixo, diante do piano da minha tia-avo Robbie, aprendendo as escalas devagar e com muitos erros no caminho. Minha família vivia no bairro South Shore, em Chicago, em uma construção de tijolos que era de Robbie e de seu marido, Terry. Meus pais alugavam apartamento do segundo andar e Robbie e Terry moravam no primeiro. Robbie era tia da minha mãe e foi muito generosa com ela ao longo dos anos, mas comigo era um terror. Empertigada e séria, ela dirigia o coro da igreja local e também era a professora de piano da nossa comunidade. Usava saltos confortáveis e mantinha o par de óculos de leitura em uma correntinha em volta do pescoço. Tinha um sorriso maroto mas, ao contrario da minha mãe não gostava de sarcasmo. Às vezes, eu a  ouvia dando bronca nos alunos por não terem praticado o suficiente ou até nos pais, por chegarem atrasados com os filhos para as aulas.

“Boa boite!”, exclamava ela no meio da tarde, no mesmo tom exasperado que outra diria “Ah pelo amor de Deus!”. Parecia que poucos conseguiam corresponder às expectativas de Robbie.

Mas o som das pessoas tentando tocar piano virou a trilha sonora da nossa vida. Havia plim-plim à noite. As senhoras da igreja às vezes iam ensaiar os hinos, entoando a devoção através das paredes. Segundo as normas de Robbie, crianças que faziam aulas de piano só podiam trabalhar uma música por vez. Do meu quarto, eu as ouvia tentando, notas e mais notas incertas, conquistar a aprovação dela, passar da canção de ninar folclórica “Hot Cross Buns” para a de Brahms, mas só depois de inúmeras tentativas. A música nunca era irritante, apenas persistente. Galgava a escada que separava nosso espaço do de Robbie. Entrava pelas janelas abertas no verão, acompanhando meus pensamentos quando eu brincava com as minhas Barbies ou construía pequenos reinos com bloquinhos de montar. A única trégua era quando meu pai chegava do turno matinal na estação de tratamento de água da cidade e sintonizava na TV um jogo de beisebol dos Cubs, aumentando o volume o suficiente para não ouvir o piano.

Era o finzinho da década de 1960 no South Side de Chicago. Os Cubs não eram ruins, mas também não eram bons. Eu me sentava no colo do meu pai, na cadeira reclinável dele, e o ouvia contar que os Cubs estavam sofrendo uma crise de fim de temporada ou dizer que Billy Williams — que morava na Constance Avenue, esquina com a nossa rua — dava ótimas tacadas no lado esquerdo da base. Fora dos estádios de beisebol, os Estados Unidos estavam no meio de uma mudança gigantesca e duvidosa. Os Kennedy tinham morrido. Martin Luther King Jr. fora assassinado em uma sacada em Memphis, desencadeando motins país afora, inclusive em Chicago. A Convenção Nacional Democrata de 1968 se transformou em um banho de sangue quando a polícia atacou os manifestantes contrários à Guerra do Vietnã com bastões e gás lacrimogêneo em Grant Park, a uns quinze quilômetros da nossa casa. Nesse ínterim, famílias brancas deixavam a cidade aos bandos, seduzidas pelos subúrbios — a promessa de escolas melhores, mais espaço e provavelmente mais brancura também.

Na verdade, não absorvi nada disso. Eu era apenas uma criança, uma menina que brincava com Barbies e bloquinhos de montar, com os pais e com um irmão mais velho que dormia sempre com a cabeça a um metro da minha. Minha familia era o meu mundo, o centro de tudo. Minha mãe me ensinou a ler cedo — me levava à biblioteca pública e se sentava a meu lado enquanto eu pronunciava as palavras em cada página. Todo dia meu pai ia trabalhar com o uniforme azul de funcionário municipal, mas à noite nos mostrava o que era amar o jazz e a arte. Quando menino, ele teve aulas no Instituto de Arte de Chicago, e no ensino médio pintava e esculpia. Nessa época também foi nadador e boxeador, competindo pela escola. Quando adulto, tornou-se fã de todos os esportes televisionados, de golfe profissional à Liga Nacional de Hóquei. Gostava de ver pessoas fortes se sobressaírem. Quando meu irmão, Craig, se interessou por basquete, meu pai passou a colocar moedas na moldura da porta da cozinha, incentivando-o a saltar para pegá-las.

Tudo o que tinha importância ficava a no máximo cinco quarteirões dali — meus avós e primos, a igreja na esquina onde não frequentávamos regularmente a escola dominical, o posto de gasolina onde minha mãe me mandava comprar um maço de Newports, e a loja de bebidas, que também vendia pão Wonder, bala barata e galões de leite. Nas noites quentes de verão, Craig e eu cochilávamos ao som dos jogos de softball da liga adulta que aconteciam no parque público próximo dali, o qual visitávamos de dia para subir no trepa-trepa do parquinho e brincar de pega-pega com as outras crianças.

Craig é menos de dois anos mais velho que eu. Ele tem o olhar afável e o jeito otimista do meu pai, mas a inflexibilidade da minha mãe. Sempre fomos próximos, em parte graças à dedicação inabalável e um tanto inexplicável que ele pareceu sentir pela irmã caçula desde o início. Existe uma foto antiga da família, em preto e branco, de nós quatro sentados no sofá, minha mãe sorridente ao me segurar em seu colo, meu pai sério e orgulhoso com Craig no seu. Estávamos vestidos para ir à igreja ou talvez a um casamento. Eu tinha uns oito meses, uma menina de cara fechada e rosto gorducho, de fralda e vestido branco passado, pronta para escapar das garras da minha mãe, o olhar fixo na câmera como se fosse comê-la. A meu lado está Craig, todo arrumado, de gravatinha-borboleta e paletó, a expressão séria. Ele tinha dois anos e já era o retrato da vigilância e da responsabilidade fraternal — o braço esticado até o meu, os dedos fechados em torno do meu punho gordinho em um gesto protetor.

Na época em que a foto foi tirada, morávamos no mesmo andar dos meus avós paternos em Parkway Gardens, um conjunto habitacional de prédios modernistas a preço acessível no South Side de Chicago. Construído na década de 1950 e planejado para ser um edifício em cooperativa, em que não se tem de fato a escritura da casa, apenas ações da empresa que lhe permite morar nela, tinha o intuito de amenizar a escassez de moradia para famílias negras da classe trabalhadora depois da Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, ficaria deteriorado sob o jugo da pobreza e da violência das gangues, virando um dos lugares mais perigosos da cidade. Muito antes disso, porém, quando eu era pequena, meus pais — que se conheceram na adolescência e se casaram com vinte e poucos anos — aceitaram a oferta de se mudar alguns quilômetros mais ao sul, para a casa de Robbie e Terry, que ficava numa área mais bacana.

Na Euclid Avenue, éramos duas famílias vivendo sob um teto não muito grande. A julgar pela planta, o segundo andar provavelmente fora projetado como um anexo para uma ou duas pessoas, mas nós quatro achamos um jeito de caber ali dentro. Meus pais dormiam no único quarto, Craig e eu dividíamos uma área mais ampla que imagino ter sido concebida como sala de estar. Mais tarde, quando crescemos, meu avô — Purnell Shields, pai da minha mãe, um apaixonado por carpintaria, apesar de não muito habilidoso — levou uns painéis de madeira baratos e improvisou uma divisória que separava o ambiente em dois espaços semiprivados. Acrescentou uma porta sanfonada de plástico a cada ambiente e criou uma pequena área comum na frente, onde guardávamos brinquedos e livros.

Eu adorava meu quarto. Tinha espaço suficiente para minha cama de solteiro e uma escrivaninha estreita. Deixava meus bichinhos de pelúcia na cama, arrumando todos meticulosamente em volta da minha cabeça à noite como uma forma de ritual reconfortante. Do outro lado da parede, Craig vivia uma espécie de existência espelhada, sua cama junto ao painel, paralela à minha. A divisória era tão fina que conseguíamos conversar deitados na cama, muitas vezes jogando uma bola de meia de um lado para outro pelo vão de 25 centímetros entre a divisória e o teto.

Tia Robbie, por sua vez, fazia de sua parte da casa um mausoléu, a mobília coberta por plástico protetor, um material frio que grudava nas minhas pernas nuas quando eu tinha coragem de me sentar. As prateleiras eram cheias de bibelôs de porcelana que não podíamos tocar. Eu deixava minha mão pairar sobre um conjunto de poodles de vidro com expressões dóceis — uma mãe de aparência delicada e três filhotes minúsculos — e depois a retirava, com medo da ira de Robbie. Quando não havia aula de piano, o primeiro andar era tomado por um silêncio mortal. A Tv e o rádio nunca eram ligados. Não sei nem se os dois conversavam muito ali embaixo. O nome completo do marido de Robbie era William Victor Terry, mas por alguma razão só o chamávamos pelo último sobrenome. Terry era como uma sombra, um homem de aparência distinta que usava terno completo todos os dias da semana e basicamente não falava nem uma palavra.

Passei a considerar o andar de cima e o de baixo dois universos diferentes, governados por sentimentos opostos. No andar de cima, fazíamos o maior barulho sem nos preocupar. Craig e eu jogávamos bola e corríamos pelo apartamento. Borrifávamos lustra-móveis no assoalho de madeira do corredor para deslizar com as meias, muitas vezes batendo nas paredes. Lutávamos boxe na cozinha, usando pares de luvas que meu pai nos dera de Natal junto com instruções personalizadas de como dar um jab certeiro. À noite, em família, jogávamos jogos de tabuleiro, contávamos histórias e piadas e escutávamos discos do Jackson 5. Quando ficava insuportável para Robbie, ela ia até o interruptor e ficava acendendo e apagando a luz da escada que compartilhávamos e que também controlava a lâmpada do corredor do segundo andar — era seu jeito educado de pedir que parássemos com o barulho.

Robbie e Terry eram mais velhos. Cresceram em outra época, com preocupações diferentes. Viram coisas que nossos pais não viram — coisas que Craig e eu, aquelas crianças barulhentas, nem imaginávamos. Essa é uma versão do que minha mãe dizia quando nos irritávamos com o mau humor do andar de baixo. Mesmo não conhecendo o contexto, éramos instruídos a lembrar que ele existia. Todos os habitantes da Terra, diziam-nos eles, carregavam uma história invisível, e só por isso já mereciam tolerância. Muitos anos mais tarde eu ficaria sabendo que Robbie havia processado a Universidade Northwestern por discriminação, pois se inscrevera para participar de uma oficina de coral na faculdade em 1943 e lhe negaram um quarto no dormitório feminino. Fora instruída a se hospedar em uma pensão na cidade — um lugar “para gente de cor”, lhe explicaram. Já Terry tinha sido assistente de vagões em uma das linhas férreas noturnas que chegavam e saíam de Chicago. Era uma profissão respeitável, mas não muito bem remunerada, composta totalmente de homens negros que mantinham o uniforme imaculado enquanto arrastavam malas, serviam refeições e atendiam às necessidades dos passageiros, inclusive engraxando seus sapatos.

Anos depois de se aposentar, Terry ainda vivia em um estado de formalismo entorpecido — impecavelmente vestido, levemente subserviente, nunca se afirmando de forma alguma, pelo menos até onde eu soubesse. Era como se tivesse renunciado a uma parte de si como forma de perseverar. Eu o observava aparar a grama no calor do verão calçando sapatos sociais, usando suspensório e um chapéu de feltro de aba curta, as mangas da camisa arregaçadas com zelo. Ele se permitia fumar exatamente um cigarro por dia e tomar exatamente um coquetel por mês, quando, mesmo assim, não se soltava como o meu pai e a minha mãe depois que tomavam um drinque ou uma cerveja, o que faziam algumas vezes por mês. Parte de mim queria que Terry falasse, que desabafasse os segredos que carregava. Eu imaginava que ele tinha várias histórias interessantes sobre as cidades que visitara e sobre o comportamento dos ricos nos trens, ou talvez não tivesse Por algum motivo, ele nunca falava.

Eu tinha uns quatro anos quando resolvi aprender a tocar piano. Craig, que estava no primeiro ano, já visitava o andar de baixo para tomar aulas semanais no piano vertical de Robbie e voltava relativamente ileso. Achei que estava pronta. Estava convicta de que, na verdade, já tinha aprendido piano por osmose — aquelas horas todas ouvindo as outras crianças tateando canções. A música já estava na minha cabeça. Eu só queria descer e demonstrar à minha exigente tia-avó que eu era uma menina muito talentosa, que não seria preciso esforço algum para me tornar sua melhor aluna.

O piano de Robbie ficava em um quartinho nos fundos da casa, perto da janela que dava para o quintal. Ela deixava um vaso de planta em um canto do cômodo e no outro uma mesa dobrável onde os alunos podiam preencher partituras. Durante as aulas, Robbie se sentava de coluna ereta em uma cadeira estofada de encosto alto, marcando o ritmo com um dedo, a cabeça erguida enquanto ficava atenta a qualquer erro. Eu tinha medo de Robbie? Não exatamente, mas algo nela era amedrontador: ela representava a autoridade rigorosa com que eu ainda não tinha me deparado em nenhum outro lugar. Exigia excelência de todas as crianças que se sentavam ao piano. Eu a enxergava como alguém a conquistar, ou talvez, de alguma forma, a vencer. Com ela, eu sempre sentia que tinha algo a provar.

Na minha primeira aula, minhas pernas pendiam do banco, curtas demais para eu pisar no chão. Robbie me deu um livro de atividades básico, que me fascinou e me mostrou a forma certa de posicionar as mãos sobre as teclas.

“Muito bem, preste atenção”, disse ela, me repreendendo antes de sequer começarmos. “Ache o dó central.”

Quando você é pequeno, parece que o piano tem mil teclas. Você fica olhando aquela vastidão de preto e branco que se estende muito além do que dois bracinhos podem alcançar. O dó central, logo aprendi, era a âncora, a fronteira entre onde a mão direita e a mão esquerda viajavam, entre a clave de sol e a clave de fá. Se você conseguisse colocar o polegar no dó central, tudo o mais se encaixava automaticamente. As teclas do piano de Robbie tinham uma sutil irregularidade de cor e forma, pontos em que pedacinhos de marfim tinham se quebrado com o tempo, deixando-as como uma série de dentes lascados. Por sorte, faltava um canto inteiro ao dó central, um pedaço mais ou menos do tamanho da minha unha, e eu usava essa falha para me guiar.

No fim das contas, eu gostava de piano. Sentar-me diante dele me parecia uma coisa natural, como algo que eu estava destinada a fazer. Minha família era repleta de músicos e amantes da música, principalmente do lado da minha mãe. Um tio meu tocava em uma banda profissional. Várias das minhas tias cantavam no coro da igreja. Eu tinha Robbie, que além do coro e das aulas dirigia a Operetta Workshop, um programa precário de teatro musical para crianças que Craig e eu frequentávamos todo sábado de manhã no porão da igreja dela. Porém, o centro musical da família era meu avô Shields, o carpinteiro, irmão caçula de Robbie. Era um homem despreocupado, dono de uma barriga redonda, uma risada contagiante e uma barba grisalha e desgrenhada. Quando eu era mais nova, ele morava no West Side de Chicago, e Craig e eu nos referíamos a ele como Westside. Mas ele se mudou para o nosso bairro no ano em que comecei a fazer aulas de piano, e o rebatizamos de Southside.

Southside havia se separado da minha avó décadas antes, quando minha mãe era adolescente. Morava com a minha tia Carolyn, irmã mais velha da minha mãe, e meu tio Steve, irmão caçula dele, a dois quarteirões de nós, em uma casa térrea aconchegante que ele havia preparado para a música de cima a baixo, instalando alto-falantes em todos os cômodos, inclusive no banheiro. Na sala de jantar, fez um móvel complexo para comportar seu equipamento de som, em grande parte montado com peças compradas em vendas de garagem. Tinha duas picapes descombinadas e um toca-fitas de carretel antigo e bambo, além de prateleiras entupidas de discos que havia colecionado ao longo de muitos anos.

Southside desconfiava de muitas coisas. Ele era aquele clássico defensor da teoria da conspiração. Não confiava em dentistas, o que o deixou praticamente sem dentes. Não confiava na polícia, e nem sempre confiava em brancos, pois era neto de uma escrava da Geórgia e passara os primeiros anos de vida no Alabama, na época da segregação, antes de rumar para o norte e chegar a Chicago na década de 1920. Quando teve filhos, Southside fez questão de mantê-los em segurança — assustando-os com histórias verdadeiras e inventadas sobre o que acontecia com crianças negras que entravam no bairro errado, dando-lhes sermões sobre evitar a polícia.

A música parecia ser um antídoto para suas preocupações, uma forma de relaxar e afastá-las. Quando recebia por seu trabalho de carpinteiro, às vezes Southside esbanjava e comprava um álbum novo. Vivia dando festas para a família, forçando todo mundo a falar alto para se fazer ouvir, pois a música sempre dominava o ambiente. Comemoramos a maioria dos principais momentos de nossas vidas na casa de Southside, o que significa que ao longo dos anos desembrulhamos presentes de Natal ao som de Ella Fitzgerald e assopramos velas de aniversário ao som de Coltrane. Segundo minha mãe, quando era mais novo, Southside fazia questão de incutir jazz nos sete filhos, volta e meia acordando todo mundo ao amanhecer quando colocava um de seus discos no volume máximo.

Seu amor à música era contagiante. Depois que Southside se mudou para o nosso bairro, eu passava tardes inteiras na casa dele, puxando álbuns das prateleiras ao acaso e colocando-os no toca-discos, cada um deles uma aventura imersiva. Embora fosse pequena, ele não impunha restrições ao que eu podia ouvir. Southside foi quem me deu meu primeiro disco, Talking Book, de Stevie Wonder, que eu deixava na casa dele, em uma prateleira especial que havia separado para meus discos prediletos. Quando eu estava com fome, ele fazia milk-shake ou fritava um frango inteiro enquanto escutávamos Aretha, Miles ou Billie. Para mim, Southside era grandioso como o céu. E o céu, da forma que eu o imaginava, tinha que ser um lugar cheio de jazz.


Em casa, eu continuava me empenhando para progredir como musicista. Sentada diante do piano de Robbie, eu aprendia escalas rapidamente — a coisa da osmose era verdade — e mergulhava de cabeça na leitura das partituras que ela me dava. Como não tínhamos piano, eu tinha de praticar lá embaixo, no dela, esperando até ninguém estar em aula, não raro arrastando minha mãe para que ela se sentasse na cadeira estofada e me escutasse tocar. Aprendia uma canção atrás da outra no livro de partituras. Provavelmente eu não era melhor do que os outros alunos, nem menos desastrada, mas era determinada. Para mim, aprender era algo mágico. Me trazia uma satisfação enorme. Em primeiro lugar, porque havia entendido a simples e instigante correlação entre o tempo que eu praticava e o que conseguia realizar. E também sentia algo em Robbie — um sentimento enterrado fundo demais para ser um deleite categórico, mas ainda assim a pulsação de algo mais leve e mais feliz que emanava dela quando eu chegava ao fim de uma canção sem me atrapalhar, quando minha mão direita captava a melodia e a esquerda tocava um acorde. Percebia de canto de olho: os lábios de Robbie se abriam de leve; o dedo que batia para marcar o tempo saltava um pouquinho mais.

Essa, no fim das contas, foi nossa fase de lua de mel. Talvez Robbie e eu tivéssemos continuado assim, caso eu fosse menos curiosa e mais reverente ao seu método ao piano. Mas o livro de partituras era tão grosso, e meu progresso nas primeiras poucas canções tão lento, que perdi a paciência e comecei a espiar páginas mais adiante — e não poucas páginas, mas muito à frente, lendo os títulos das canções mais avançadas e começando a tocá-las durante as sessões de exercícios. Quando apresentei, toda orgulhosa, uma dessas músicas a Robbie, ela explodiu, repudiando minha façanha com um cruel “Boa noite!”. Fui repreendida da forma como a ouvira repreender tantos outros alunos. Eu estava apenas tentando aprender mais coisas e mais rápido, porém Robbie considerou minha atitude praticamente um crime de traição. Não se impressionou nem um pouco.

Mas eu também não me deixei subjugar. Era do tipo de criança que gostava de respostas concretas para as perguntas, que gostava de dissecar as coisas até chegar a uma conclusão lógica, mesmo que fosse exaustivo. Eu parecia uma advogada, e com uma propensão a ditadora, algo que meu irmão, que volta e meia eu expulsava da nossa área de recreação compartilhada, pode atestar. Quando achava que tinha uma boa ideia, não gostava que me dissessem não. Foi assim que minha tia-avó e eu acabamos discutindo, as duas furiosas e inflexíveis.

“Como a senhora pode estar com raiva de mim por querer aprender uma canção nova?”

“Você não está pronta. Não é assim que se aprende a tocar piano.”

“Mas eu estou pronta. Acabei de tocar.”

“Não é assim que se faz.”

“Mas por quê?”

As aulas de piano se tornaram épicas e penosas, em grande parte porque eu me recusava a seguir o método de Robbie e ela se recusava a ver algo de bom na minha abordagem desregrada a seu livro de partituras. Lembro-me de discutirmos toda semana. Eu era teimosa e ela também. Tinha meu ponto de vista e ela o dela. Em meio às discussões, continuei tocando piano, e ela continuou escutando, fazendo infinitas correções. Eu lhe dava pouco crédito pela minha melhora. Ela me dava pouco crédito por melhorar. Mas mesmo assim as aulas continuaram.

Lá em cima, meus pais e Craig achavam tudo muito engraçado. Caíam na gargalhada à mesa de jantar quando eu narrava minhas batalhas com Robbie, ainda fervendo de raiva enquanto comia espaguete com almôndegas. Craig não tinha problemas com Robbie, pois era um garoto alegre e que seguia as regras, além de um aluno de piano pouco interessado. Meus pais não demonstravam compaixão nem pelas minhas desgraças nem pelas de Robbie. Não eram de interferir em questões fora dos estudos, esperando desde cedo que meu irmão e eu cuidássemos das nossas próprias vidas. Pareciam considerar que sua função era basicamente ouvir e nos apoiar conforme necessário dentro das quatro paredes da nossa casa. Outro pai teria repreendido o filho por ser petulante com uma pessoa mais velha, como eu fui, mas eles deixavam passar. Minha mãe vivera com Robbie esporadicamente desde que tinha uns dezesseis anos, seguindo todas as regras enigmáticas que a mulher definia, e é bem possível que estivesse feliz em me ver desafiar a autoridade de Robbie. Hoje em dia olho para trás e acho que meus pais gostavam da minha determinação e fico contente por isso. Era uma chama dentro de mim que eles queriam manter acesa.


Uma vez por ano, Robbie organizava um recital sofisticado para que os alunos se apresentassem para uma plateia. Até hoje não sei como, mas ela dava um jeito de ter acesso a uma sala de ensaios da Universidade Roosevelt no centro de Chicago, realizando seus recitais em um magnífico edificio de pedra na Michigan Avenue, bem ao lado de onde a Orquestra Sinfônica de Chicago se apresentava. Só de pensar em entrar ali eu já ficava nervosa. Nosso apartamento na Euclid Avenue ficava a cerca de quinze quilômetros do Loop, o centro financeiro que, com seus arranha-céus reluzentes e calçadas movimentadas, me parecia outro mundo. Minha família ia ao coração da cidade apenas algumas vezes por ano, para visitar o Instituto de Arte ou assistir a uma peça teatral, nós quatro viajando feito astronautas no carro do meu pai.

Meu pai adorava ter qualquer desculpa para dirigir. Era dedicado ao carro, um Buick Electra 225 cor de bronze com duas portas, ao qual se referia pelo apelido do modelo, “Dois e Vinte e Cinco”. O automóvel estava sempre polido e encerado, e meu pai era rigoroso quanto ao calendário de manutenção, levando-o à oficina da Sears para fazer o rodízio dos pneus e trocar o óleo do mesmo jeito que minha mãe nos levava para o pediatra para exames de rotina. Nós também adorávamos o Dois e Vinte e Cinco. As linhas harmoniosas e as lanternas traseiras estreitas davam a ele um visual descolado e futurista. Era tão espaçoso que parecia uma casa. Eu conseguia praticamente ficar de pé dentro dele, passando as mãos no teto revestido de tecido. Como na época usar cinto de segurança não era obrigatório, Craig e eu passávamos boa parte do tempo cochilando no banco de trás ou apoiando o corpo no banco da frente quando queríamos falar com nossos pais. Na metade do tempo eu me levantava junto ao apoio para a cabeça e levava o queixo à frente, para meu rosto ficar lado a lado com o do meu pai e termos a mesma visão.

O carro propiciava outro tipo de proximidade para minha família, a oportunidade de conversar e viajar ao mesmo tempo. A noite, depois do jantar, às vezes Craig e eu suplicávamos para meu pai nos levar num passeio sem rumo. Nas noites de verão ele nos fazia um agrado: íamos a um cinema drive-in a sudoeste do nosso bairro para assistir aos filmes do Planeta dos macacos, estacionando o Buick ao anoitecer e nos acomodando, minha mãe distribuindo o frango frito e as batatas chips que levava de casa para jantarmos, Craig e eu com a comida apoiada no colo, sentados no banco de trás e tomando o cuidado de limpar as mãos no guardanapo e não no assento.

Eu ainda levaria muitos anos para entender o que dirigir aquele carro significava para o meu pai. Quando criança, eu apenas percebia a liberdade que ele sentia ao volante, o prazer que tinha ao dirigir com um motor que funcionava bem e pneus perfeitamente equilibrados zunindo sob seus pés. Meu pai tinha trinta e poucos anos quando um médico lhe informou que a fraqueza esquisita que vinha começando a sentir em uma das pernas seria apenas o início de uma longa e provavelmente dolorosa derrocada rumo à imobilidade, que havia chance de que um dia, devido a um misterioso desprendimento de neurônios no cérebro e na medula espinhal, ele ficaria totalmente incapaz de andar. Não sei a data exata, mas a impressão é de que o Buick entrou na vida do meu pai praticamente junto com a esclerose múltipla. E apesar de ele nunca ter dito, o carro lhe deu uma espécie de alívio.

Nem ele nem minha mãe se concentraram no diagnóstico. Isso foi há décadas, época em que ainda não havia o Google e não era possível fazer uma simples pesquisa para ver um rol estonteante de gráficos, estatísticas e explicações médicas que dão ou tiram a esperança. De qualquer forma, duvido que eu fosse querer vê-los. Embora meu pai tenha sido criado na igreja, não teria rezado para que Deus o poupasse. Não teria procurado tratamentos alternativos, um guru ou um gene defeituoso no qual jogar a culpa. Na minha família, temos o velho hábito de ignorar as notícias ruins, de tentar esquecê-las praticamente no instante em que chegam. Ninguém sabia há quanto tempo meu pai se sentia mal quando foi ao médico pela primeira vez, mas meu palpite é de que já fazia meses, se não anos. Ele não gostava de consultas médicas. Não tinha interesse em reclamar. Era o tipo de pessoa que aceitava o que viesse e seguia em frente.

O que sei é que no dia do meu grande recital de piano, ele já mancava de leve, o pé esquerdo incapaz de acompanhar o ritmo do direito. Todas as minhas lembranças do meu pai incluem alguma manifestação dessa deficiência, ainda que nenhum de nós estivesse disposto a chamá-la desse nome na época. O que eu sabia então era que meu pai se movimentava um pouco mais devagar que os outros pais. Às vezes eu o via hesitar antes de subir um lance de escadas, como se precisasse refletir sobre a manobra antes de tentá-la de fato. Quando íamos fazer compras no shopping, ele se acomodava em um banco, satisfeito em ficar de olho nas sacolas ou tirar um cochilo enquanto o resto da família perambulava pelas lojas.

A caminho do centro para o recital, eu estava sentada no banco de trás do Buick usando um belo vestido e sapatos de couro envernizado, o cabelo preso em marias-chiquinhas, suando frio pela primeira vez na vida. Estava apreensiva com a apresentação, apesar de ter praticado minha canção no apartamento de Robbie quase até a morte. Craig também estava de terno e preparado para tocar sua canção. Mas a perspectiva não o incomodava. Na verdade, ele dormia profundamente, desmaiado no banco de trás, a boca aberta, a expressão feliz e despreocupada. Craig era assim. Eu passaria a vida admirando sua serenidade. Àquela altura, ele já jogava em uma liga infantil de basquete com partidas todo fim de semana e parecia ter dominado o nervosismo quanto a apresentações públicas.

Meu pai sempre escolhia o estacionamento mais próximo possível do nosso destino, pagando mais pela vaga para reduzir a distância que precisaria andar com suas pernas instáveis. Naquele dia, não tivemos problema para achar a Universidade Roosevelt, e fomos até o que parecia um salão enorme e ecoante onde aconteceria o recital. Eu me senti minúscula ali. O salão tinha janelas elegantes do chão ao teto, que davam para o gramado amplo de Grant Park e, mais adiante, para as ondas brancas do lago Michigan. Havia cadeiras cinza-chumbo arrumadas em fileiras que aos poucos eram ocupadas por crianças nervosas e pais ansiosos. E na frente, no palco elevado, estavam os dois primeiros pianos de meia cauda que vi na vida, os gigantescos tampos de madeira de lei abertos como asas de melros. Robbie também estava lá, irrequieta em um vestido floral, como se fosse a bela do baile — uma bela meio matrona, é verdade —, se certificando se todos os alunos haviam chegado com a partitura na mão. Ela pediu silêncio ao salão quando estava na hora do show começar.

Não lembro a ordem em que tocamos naquele dia. Só sei que, na minha vez, me levantei da cadeira e caminhei com a minha melhor postura até a frente do salão, subi os degraus e tomei meu assento diante de um dos reluzentes pianos de meia cauda. A verdade é que estava pronta. Embora achasse Robbie ríspida e inflexível, eu tinha internalizado sua dedicação ao rigor. Sabia minha música tão bem que mal tive que pensar nela. Simplesmente comecei a movimentar as mãos.

E no entanto havia um problema, que descobri na fração de segundo em que levei meus dedinhos às teclas. Eu estava sentada diante de um piano perfeito, com superfícies espanadas com cuidado, as cordas internas afinadas com precisão, as 88 teclas dispostas em uma faixa impecável de preto e branco. A questão é que eu não estava acostumada com o impecável. Na verdade, nunca o tinha visto na vida. Toda a minha experiência com piano vinha da salinha de música de Robbie, com seu vaso de planta desalinhado e com vista para o nosso modesto quintal. O único instrumento que havia tocado era seu vertical nada perfeito, com suas teclas amareladas e o conveniente dó central lascado. Para mim, um piano era desse jeito — assim como meu bairro era meu bairro, meu pai era meu pai, minha vida era minha vida. O piano de Robbie era o único que eu conhecia.

De repente, naquele momento me conscientizei de que as pessoas me observavam enquanto eu olhava fixo para o brilho das teclas do piano, achando todas iguais. Não fazia ideia de onde pôr as mãos. Com a garganta apertada e o coração disparado, olhei para a plateia, tentando não transparecer meu pânico, buscando o rosto da minha mãe — meu porto seguro ali. O que vi foi um vulto se levantando da primeira fila e se aproximando de mim lentamente. Era Robbie. Àquela altura já tínhamos brigado à beça, tanto que eu meio que a enxergava como uma inimiga. Mas ali, no momento em que a repreensão era merecida, ela se aproximou do meu ombro como um anjo. Talvez entendesse meu choque. Talvez soubesse que as disparidades do mundo tinham acabado de se apresentar silenciosamente a mim pela primeira vez. Talvez ela apenas precisasse apressar as coisas. De qualquer forma, sem dar uma palavra, Robbie pôs o dedo no dó central para que eu soubesse de onde começar. Em seguida, virou-se para trás com um leve sorriso de incentivo e me deixou sozinha para tocar.

2

Comecei o jardim de infância na Escola Primária Bryn Mawr no outono de 1969, me apresentando com duas vantagens iniciais: já sabia ler palavras básicas e tinha um irmão popular no segundo ano. A escola, um edifício de tijolos de quatro andares com um pátio na frente, ficava a poucos quarteirões da nossa casa na Euclid Avenue. A distância era uma caminhada de dois minutos ou, ao estilo de Craig, uma corrida de um minuto.

Gostei da escola logo de cara. Gostei da professora, uma senhora branca e pequenina chamada sra. Burroughs, que me parecia uma anciã, mas devia ter uns cinquenta anos. Sua sala de aula tinha janelas amplas ensolaradas, uma coleção de bonecas e uma casinha de papelão gigantesca nos fundos. Fiz amizades na minha turma, atraída pelas crianças que, assim como eu, pareciam loucas para estar ali. Eu confiava na minha capacidade de ler. Em casa, devorei os livros da coleção infantil Dick and Jane, graças ao cartão da biblioteca da minha mãe, portanto vibrei ao saber que nossa primeira tarefa como alunos do jardim de infância seria aprender a ler conjuntos de palavras à primeira vista. Recebemos uma lista de cores para estudar, não os tons, mas as próprias palavras — “vermelho”, “azul”, “verde”, “preto”, “laranja”, “roxo”, “branco”. Em aula, a sra. Burroughs testava um aluno de cada vez, exibindo uma série de cartões grandes de papel pardo e nos pedindo para ler a palavra impressa em letras pretas. Fiquei observando as meninas e os meninos que eu estava conhecendo. Eles se levantavam e enfrentavam os cartões, se saindo bem ou mal em diferentes graus. Quando se atrapalhavam recebiam a ordem de se sentar. Acho que era para ser uma espécie de jogo, quase como um jogo de soletrar, mas dava para ver uma triagem sutil acontecendo e uma dose intencional de humilhação nas crianças que não passavam do “vermelho”. Estávamos em 1969, em uma escola pública no South Side de Chicago. Ninguém falava de autoestima ou mentalidade de crescimento. Se você vinha de casa com uma vantagem inicial, era recompensado na escola, considerado “inteligente” ou “talentoso”, o que por sua vez só aumentava sua autoconfiança. E essas vantagens se acumulavam rapidamente. As duas crianças mais inteligentes da minha turma eram Teddy, um menino de ascendência coreana, e Chiaka, uma afro-americana. E eles continuariam sendo os melhores da classe por anos a fio.

Eu estava decidida a não ficar atrás deles. Quando chegou minha vez de ler as palavras, me levantei e dei tudo de mim, recitando “vermelho”, “verde e “azul sem dificuldade. Em seguida, levei um instante no “roxo”. O “laranja” foi difícil. Mas só quando as letras B-R-A-N-C-0 apareceram foi que gelei — minha garganta secou na hora, minha boca não se mexia, incapaz de emitir qualquer som enquanto meu cérebro entrava em pane, tentando desenterrar a cor. Foi um apagão total. Senti os joelhos bambearem, como se fossem dobrar. Mas, antes disso, a sra. Burroughs ordenou que eu me sentasse. E foi exatamente nessa hora que a palavra me veio em toda sua perfeição natural. Branco. Braaaanco. A palavra era “branco”.

Naquela noite, deitada na cama com os bichinhos de pelúcia em torno da cabeça, eu só pensava em “branco”. Soletrei a palavra na minha cabeça, de trás para a frente e de frente para trás, me repreendendo pela minha burrice. O constrangimento parecia um peso, algo do qual nunca conseguiria me livrar, embora soubesse que para os meus pais não importava se eu tinha lido todos os cartões da forma certa. Eu só queria conseguir. Ou talvez não quisesse ser vista como incapaz de conseguir. Tinha certeza de que a professora passou a me enxergar como alguém que não sabia ler ou, pior, que nem tentava. Eu tinha ficado obcecada pelas estrelinhas douradas que a sra. Burroughs tinha dado a Teddy e Chiaka naquele dia, para que usassem no peito como um emblema de sua realização, ou talvez como um sinal de que estavam destinados à grandeza, ao contrário dos outros — afinal, os dois tinham lido todas as cores sem vacilar.

Na manhã seguinte, pedi uma revanche.

Quando a sra. Burroughs disse não, acrescentando com satisfação que nós do jardim de infância tínhamos outras coisas para fazer, eu exigi.

Coitadas das crianças que tiveram de me ver encarando os cartões coloridos novamente, dessa vez mais devagar, fazendo pausas propositais para respirar depois de pronunciar cada palavra, me recusando a deixar meus nervos criarem um curto-circuito no cérebro. E funcionou com “preto”, “laranja”, “roxo” e principalmente “branco”. Aliás, eu praticamente berrei a palavra “branco” antes mesmo de olhar as letras no cartão. Hoje gosto de imaginar que a sra. Burroughs ficou impressionada com aquela menininha negra que tivera coragem de se defender. Não sabia se Teddy e Chiaka tinham sequer percebido. Fui logo reivindicando meu troféu, e naquela tarde voltei para casa de cabeça erguida, com uma daquelas estrelinhas de papel dourado grudada na blusa.


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