Jane Eyre conheceu o sofrimento ainda pequena, na casa da tia que a criou e na austera Lowood Institution onde foi educada. Mas também pequena já mostrava sua natureza firme e independente. Fiel a si mesma, ciente do seu valor e da consideração que merecia, assim manteve-se por toda a vida – ao abandonar os tormentos de Lowood e se empregar como governanta em Thornfield Hall; ao descobrir o amor mas, com ele, um terrível segredo; ao decidir partir e, depois, recomeçar. Publicado em 1847, Jane Eyre é o romance mais conhecido de Charlotte Brontë. Com toques góticos e boas doses de crítica social e moral, esse clássico da literatura pôs-se à frente de seu tempo ao apresentar uma personagem feminina forte e explorar questões de classe, sexualidade, religião e gênero. Acompanhamos o desenvolvimento emocional da protagonista e sua busca por espaço, respeito e autonomia financeira…
Páginas: 536 páginas; Editora: Clássicos Zahar; Edição: 1 (7 de junho de 2018); ISBN-10: 8537817619; ISBN-13: 978-8537817612; ASIN: B07D5DZ4C9
Biografia do Autor: CHARLOTTE BRONTË (1816-1855), escritora inglesa, é autora de Jane Eyre, Emma e O professor, entre outros. Uma das três “irmãs Brontë” – as escritoras Charlotte, Emily e Anne Brontë –, com elas publicou uma coletânea de poemas, sob os pseudônimos de Currer, Ellis e Acton Bell. Conheceu o sucesso ainda em vida e influenciou diversas gerações de escritoras. Morreu vítima de tuberculose, no início de uma gestação.
Leia trecho do livro
Apresentação
Você tem em mãos um clássico. E isso pode soar chato. Mas em poucos capítulos você estará largando o celular para almoçar com Jane. Ela será sua companhia no banheiro. Terá lugar cativo na sua bolsa ou mochila. E vai fazer você ir embora mais cedo dos lugares para encontrá-la.
Tudo isso porque você tem em mãos um romance do século XIX, escrito como um diário, em primeira pessoa, por uma autora que maneja todos os recursos mais maravilhosos da construção narrativa e sabe fazer o leitor habitar estas páginas. A linguagem é vibrante, o ritmo não cai, as viradas não cessam, os mistérios são muitos.
A distância de quase duzentos anos entre você e este livro – que talvez faça parecer impossível conectar-se à história da órfã maltratada pela tia postiça, que vai estudar em um convento austero, onde aprende francês, bordado e piano, para depois se tornar preceptora de uma criança rica que não vai à escola (e paro por aqui nos spoilers) – sempre irá existir. Mas a literatura, quando é máquina do tempo, é a coisa mais linda. Em questão de instantes você estará sentindo o frio da Inglaterra pré-energia elétrica rachar-lhe as mãos.
Jane Eyre é uma obra-prima, embalada pelo conforto do melodrama. Seus diálogos pulsam. Suas descrições são precisas, perspicazes e na medida certa. Nas palavras de Virginia Woolf: “[Charlotte Brontë] não procura resolver os problemas da vida humana; ela é até alheia à existência desses problemas; toda a sua força, que é ainda mais forte por ser contida, está na afirmação, ‘Eu amo’, ‘Eu odeio’, ‘Eu sofro’.” Simplesmente irresistível.
Pelas mãos de Charlotte Brontë, você vai acompanhar a saga de Jane Eyre da infância à vida adulta, quando ela viverá um amor impossível, graças, sobretudo, à desigualdade que a afasta do outro personagem central: o sr. Rochester. Desigualdade de classe, isto é, social e financeira, e de gênero. Apontar essa desigualdade, criticá-la, pensar a respeito, iluminá-la é o que a autora faz nesta história de amor. Nesse sentido, Brontë se inscreve numa linhagem de autoras que trabalham, no bojo de suas escritas, com a premissa de que a luta pela igualdade de gênero é algo atingível, e que a desigualdade, nas suas mais variadas facetas, foi construída – podendo, dessa maneira, ser algo passível de ser transformado.
Na abertura do segundo capítulo, a personagem diz: “Resisti durante todo o caminho.” A frase, usada para narrar o momento em que a pequena Jane é levada ao quarto vermelho e fantasmagórico onde será trancada sozinha, retorna constantemente ao longo de sua trajetória. Segundo a escritora Joyce Carol Oates: “Que uma mulher possa ‘resistir’ aos comandos do seu destino (social ou espiritual) talvez não seja uma completa novidade na literatura inglesa até a publicação de Jane Eyre, em 1847: temos, afinal de contas, as voluntariosas heroínas de algumas peças de Shakespeare, e aquelas das elegantes comédias de costumes de Jane Austen. Mas Jane Eyre é uma jovem totalmente desprotegida do ponto de vista social e familiar, bem como desprovida de independência financeira; ela não tem poder; ela é, como a própria Charlotte Brontë a julgava, ‘pequena, simples e quase uma quaker’ – carente das mais superficiais e no entanto aparentemente necessárias virtudes da feminilidade.”
Não é mera coincidência que,historicamente, as taxas de violência entre o grupo dos “sem poder” sejam altíssimas. E são inúmeras as situações de violência física, verbal e psicológica às quais Jane é exposta, e contra as quais resiste. Jane poderia ter-se submetido às agressões da rica tia postiça, de seus filhos e empregadas, para viver protegida e até com algum luxo numa casa próspera. Mas ela prefere dizer não. “Eu era uma estranha em Gateshead Hall”, diz, sem deixar sua diferença se tornar fraqueza. Com instinto de sobrevivente, após um colapso nervoso a menina de dez anos pede para ir viver em uma escola.
Diante da chance de livrar-se dela, a tia permite a mudança para o orfanato de Lowood, cujo diretor “tem analisado as melhores maneiras de esmagar nas crianças esse sentimento mundano que é o orgulho”. Ao receber a notícia de que irá embora, a menina, que carrega a pecha de má e ardilosa, num aguerrido gesto de resistência ousa falar sua verdade para a tia adulta, até então dona de seu destino. Jane faz um desabafo de todas as violências que sofrera na casa. “Uma pradaria em chamas, devorando tudo” é a imagem que a autora usa para descrever o estado em que a menina se encontra após a catarse.
Se na infância a resistência da protagonista é impulsiva, reativa e violenta, após os anos de estudo no colégio interno, com sua disciplina massacrante, a resiliência torna-se tenaz e madura, apesar da encarniçada tentativa de alienar as internas no orfanato.
Jane é capaz de dizer: “Cansei-me, numa tarde, da rotina de oito anos. Desejava liberdade, ansiava pela liberdade.” Mais à frente, reflete: “Das mulheres se espera que sejam muito calmas, de modo geral. Mas as mulheres sentem como os homens. Necessitam de exercício para suas faculdades e espaço para os seus esforços, assim como seus irmãos; sofrem com uma restrição rígida demais, com uma estagnação absoluta demais, exatamente como sofreriam os homens. E é uma estreiteza de visão por parte de seus companheiros mais privilegiados dizer que elas deveriam se confinar a preparar pudim e tricotar meias, a tocar piano e bordar bolsas. É insensato condená-las ou rir delas se buscam fazer mais ou aprender mais do que o costume determinou necessário ao seu sexo.”
A inteligência precoce, o coração pulsante e a firmeza fazem Jane renegar as qualidades femininas da época e não aceitar sujeitar-se a um destino estreito e repleto de humilhações. Não se assuste, mas isso faz dela uma feminista. Quase setenta anos depois do início dos debates por igualdade de gênero na Inglaterra e na França, Jane/Charlotte ainda estão completamente à frente de seu tempo.
As cenas iniciais de aproximação entre Jane e o sr. Rochester são exemplos antológicos do uso da não violência, aliada à inteligência crítica, como forma de ultrapassar o lugar estreito onde a sociedade insiste em tentar manter as mulheres. No acidente que marca o primeiro encontro, enquanto ele a acusa por tê-lo derrubado do cavalo, ela o ajuda a montar de volta, mas sem se desculpar. Já em casa, diante da lareira e da aspereza do patrão, Jane não se intimida; ao contrário, sente-se digna e consegue se impor. Seu respeito por si mesma é tamanho que Rochester chega a assumir o próprio autoritarismo, como quem pede licença para continuar agindo como sempre fez. No encontro seguinte o patrão, disposto ao diálogo, convoca sua empregada Jane. Alega que, por ser mais velho, teria o direito de mandar nela. Frase com a qual ela discorda, realçando que “sua alegação de superioridade depende do uso que fez de seu tempo e experiência”, além de salientar o paradoxal fato de que ele “parece esquecer que me paga trinta libras ao ano para receber ordens suas”. Nessas três passagens, Jane delimita os espaços onde a relação dos dois pode se dar. Mais do que isso, estabelece os termos constitutivos da relação. A partir daí, Rochester é capaz de baixar as armas. Estão criadas as condições para florescer uma amizade, e mais tarde um amor.
Joyce Carol Oates, novamente, escreveu: “Jane pensa, entende, julga. É sua inteligência que primeiro a torna atraente para Rochester, o fato de ela o enfrentar, de ultrapassá-lo racionalmente. Ela pesa e compara sua relação potencial com St. John à que tem com Rochester. Ela sabe onde funcionará melhor, ampliando sua capacidade de fazer o bem e sendo mais feliz. Da mesma forma, a chave para seu casamento com Rochester é o fato de que ela se tornou sua igual, financeira e socialmente. Ela pode aceitá-lo em seus próprios termos. É uma escolha intelectual, tanto quanto uma rendição emocional. É uma das coisas que fazem de Jane Eyre um romance feminista radical, uma boa distância à frente de seu tempo (e da época de Virginia Woolf).”
O marco fundador dos feminismos no mundo ocidental acontece durante a Revolução Francesa, no século XVIII. À época, as reivindicações iniciais por maior inserção na vida política e social eram apenas para fornecer direitos aos homens. Como explica a professora de filosofia Carla Rodrigues, no documentário #PrimaveraDasMulheres: “Nesse momento histórico havia, e há até hoje, uma sobreposição entre homem e humanidade. O padrão da humanidade era o homem. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão é um exemplo disso. Ela é proposta como se a mulher não fizesse parte do conjunto da humanidade.” Em 1791, contudo, a ativista abolicionista francesa Olympe de Gouges propõe a Declaração Universal dos Direitos da Mulher e da Cidadã. E entra para a história como a primeira feminista. Um ano depois, na Inglaterra, a escritora Mary Wollstonecraft publica Reivindicação dos direitos da mulher. Cresce então a primeira onda feminista, que varreria o mundo nos séculos seguintes, demandando um espaço cidadão para as mulheres e alterando completamente suas experiências.
É nesse contexto que nasce Charlotte Brontë, em Thornton, condado de Yorkshire, na Inglaterra, em 1816. Filha de um clérigo da Igreja Anglicana, ela é a terceira em uma família de seis filhos. Aos cinco anos, com o falecimento da mãe, o pai envia Charlotte, as irmãs Emily e Anne e o irmão Branwell para morar com uma tia, e as crianças são educadas em casa até serem mandadas para um colégio interno. Nesse período, elas usam a escrita e a ficção como forma de animar uma vida solitária e de privações – sobretudo depois que o pai as presenteia com uma caixa com doze soldados de madeira, atiçando sua criatividade. Passam então a inventar histórias em que esses bonecos são personagens. É no colégio interno que Maria e Elizabeth, as irmãs mais velhas de Charlotte, morrem de tuberculose. Anos depois, Charlotte trabalha como preceptora e então como governanta, além de viver um amor impossível com um homem casado. Qualquer semelhança com a trajetória de Jane Eyre não é mera coincidência. Há muito de autobiografia no romance.
Depois de a autora ter tido a primeira versão de Jane Eyre rejeitada, e considerando o preconceito da época em relação às escritoras mulheres, ela recorreu à prática então comum de usar um pseudônimo masculino: Currer Bell. O livro obteve enorme sucesso de público e de crítica. A identidade de Currer chegou a ser questionada, porém as duas edições seguintes continuaram assinadas sob pseudônimo. E assim Charlotte tornou-se escritora, como já eram as irmãs Emily, autora de O morro dos ventos uivantes, e Anne, que escreveu Agnes Grey.
“Quando o assunto é literatura inglesa do século XIX – e muitos são os mestres desse período – temos de tirar o chapéu para a família Brontë. Todos os membros desse clã tinham pendores literários e só uma coisa foi capaz de afastá-los de seu ofício: a morte”, escreveu Heloísa Seixas. Sete anos após a publicação do romance, Charlotte falece, em 1855, grávida de Arthur Bell Nicholls, de causas nunca esclarecidas, cujas especulações vão de desnutrição a tuberculose.
Desafio o leitor a pensar em outro romance tão ou mais adaptado para o cinema e a TV. Pode e deve haver, mas Jane Eyre certamente não fica muito atrás. O tempo só reforça o diálogo que a personagem e o enredo estabelecem com diferentes épocas.
A primeira adaptação para o cinema foi em 1934, pelas mãos de uma roteirista mulher, Adele Comandini. Jane ganhava as telas num filme preto e branco, de baixo orçamento, um tanto precário, mas, na medida do possível, fiel ao ímpeto combativo da personagem. A segunda versão cinematográfica, de 1943, contava no time dos roteiristas com o escritor Aldous Huxley. Nela, o diretor se vale do que há de gótico no livro para usar elementos estéticos do horror, como a fotografia sombria e a trilha tensa. A película é estrelada por Joan Fontaine e o jovem Orson Welles – a melhor escalação de todas para o sr. Rochester (e com interessantíssima interpretação). Essa adaptação consegue duas “proezas”: é protagonizada pelos personagens masculinos – com o requinte de, nas cenas onde estão duas mulheres, elas basicamente falarem sobre os homens – e apresenta uma Jane submissa.
Em 1950, a TV americana exibe uma Jane Eyre carregada no melodrama, com o galã Charlton Heston dando vida ao feioso Rochester. Aqui, a história começa quando Jane deixa o orfanato de Lowood. Essa é a primeira de inúmeras séries para a TV, produzidas em todo o mundo.
Até que, em 1970, enfim o cinema conhece uma Jane Eyre minimamente à altura do romance. Com trilha de John Willians e bela fotografia, o filme constrói dramaticamente a relação de poder entre Rochester e Jane, sendo esta interpretada com firmeza e sem doçura, por Susannah York. Curioso como soluções que não estão no livro – como o castigo de Helen Burns (a melhor amiga de Jane) na chuva – chegam a esta e a outras versões, num diálogo entre os roteiros dos filmes.
Mais de duas décadas depois, provavelmente insatisfeito com o que a linguagem cinematográfica já contribuíra ao livro, o diretor italiano Franco Zefirelli realiza, em 1996, sua bem-dirigida adaptação com Charlotte Gainsbourg e William Hurt privilegiando a história de amor. Dez anos depois, a BBC novamente faz uma série a partir do romance – já havia produzido outra em 1983 –, que é tida por muitos fãs do livro como a melhor adaptação audiovisual.
Até 2018, ano em que este volume está sendo republicado, a última adaptação para o cinema data de 2011. Trata-se de uma cuidadosa produção da prestigiada Focus Feature, dirigida pelo então estreante Cary Fukunaga, em tom sóbrio, e por isso tocante, onde a questão da igualdade é frontalmente abordada pelos personagens estrelados por Mia Wasikowska e Michael Fassbender.
Um clássico só se torna um clássico por sua capacidade de encantar gerações e gerações. Não o ter lido é tão maravilhoso que me causa inveja. Porque então você tem a oportunidade de ler com olhos frescos. Conhecer Jane ou reconhecê-la, nesta novíssima tradução feita pela escritora Adriana Lisboa, é uma sorte. Em poucos capítulos você já estará largando o celular para almoçar com Jane. Desejo boa viagem.
Antonia Pellegrino
Antonia Pellegrino é roteirista, feminista e cineasta. Recebeu o prêmio de melhor roteiro adaptado da Academia Brasileira de Cinema por Bruna Surfistinha e o Prêmio ABL de Cinema por Tim Maia. Realizou o documentário #PrimaveraDasMulheres e escreveu Cem ideias que deram em nada. É curadora do blog #AgoraÉQueSãoElas, na Folha de S. Paulo. Tem formação em ciências sociais e mestrado em letras.
Jane Eyre
uma autobiografia ¹
edição de Currer Bell²
1. O subtítulo “uma autobiografia” advém de sugestão do editor George Smith e foi suprimido da segunda e da terceira edição do romance, nas quais o nome de Currer Bell (cf. nota 2) assume a própria autoria do texto. A enunciação do autor como “editor” da narrativa em primeira pessoa tinha a função de assinalar a autenticidade do texto narrado e, portanto, a “veracidade” da história; com a passagem de Currer Bell à função de autor do romance, reforça-se seu caráter ficcional. O subgênero autobiográfico está fortemente ancorado na tradição do romance inglês – suas raízes remontam à prosa confessional puritana, em que o autor expõe o percurso de sua vida e consciência com vistas à expiação de pecados e à afirmação de sua inocência – e é uma de suas mais importantes matrizes.
2. Currer Bell é o pseudônimo sob o qual Charlotte Brontë publicou seus três romances, Jane Eyre (1847), Shirley (1849) e Vilette (1853). O sobrenome Bell foi utilizado pelas duas irmãs de Charlotte – Emily (ou Ellis Bell, em O morro dos ventos uivantes) e Anne (ou Acton Bell, em A inquilina de Wildfeld Hall e Agnes Grey) – para a publicação de suas obras. A adoção dos pseudônimos de gênero duvidoso deveu-se, conforme escreve Charlotte em prefácio à edição de O morro dos ventos uivantes, ao fato de as irmãs serem “avessas à publicidade pessoal” e terem “uma vaga impressão de que a autoria feminina poderia ser encarada com preconceito”.
Ao exmo. sr. W.M. Thackeray³
esta obra é respeitosamente dedicada
3. Romancista britânico, William Makepeace Thackeray (1811-63) é conhecido por seu grande panorama satírico da sociedade britânica, Vanity Fair (1848). A menção a Thackeray como “profeta” de seu tempo se dá no contexto de suas preocupações reformistas, estas de forte viés moral e apoiadas mais na ação e caráter individual dos agentes sociais do que na identificação e análise de forças coletivas. Contemporânea da Revolução de 1848, Charlotte Brontë viveu momentos de entusiasmo – aos quais atribui a escrita do prefácio – e dúvida acerca dos acontecimentos que mobilizaram a sociedade francesa entre fevereiro e junho daquele ano.
Capítulo 1
Naquele dia, não havia a menor possibilidade de sair para uma caminhada. Na verdade, tínhamos perambulado em meio aos arbustos nus por uma hora naquela manhã; mas desde a hora do almoço (quando não havia companhia, a sra. Reed almoçava cedo) o vento frio do inverno trouxera nuvens tão negras e uma chuva tão penetrante que agora estava fora de cogitação fazer exercício ao ar livre.
Um alívio, para mim. Nunca apreciei longas caminhadas, especialmente em tardes frias: era terrível o regresso à casa no crepúsculo gelado, com os dedos das mãos e dos pés doloridos e um coração entristecido pelas repreensões de Bessie, a ama, e humilhada pela consciência da minha inferioridade física diante de Eliza, John e Georgiana Reed.
Esses, Eliza, John e Georgiana, agrupavam-se agora em torno da mãe na sala de estar: ela estava recostada num sofá ao lado da lareira, e com os seus queridos filhos ao redor (por ora, nem brigando nem chorando) parecia imensamente feliz. Quanto a mim, dispensara-me de me juntar ao grupo, dizendo que “lamentava ver-se obrigada a me deixar de lado, mas até que Bessie lhe dissesse (e ela própria pudesse observar) que eu estava me esforçando ardentemente para adquirir uma disposição mais sociável e inocente, um comportamento mais afável e alegre – uma atitude mais leve, mais franca, mais natural, por assim dizer –, realmente teria que me excluir dos privilégios destinados apenas a criancinhas satisfeitas e felizes”.
– O que Bessie disse que eu fiz? – perguntei.
– Jane, eu não gosto de gente crítica nem respondona; além disso, é muito desagradável uma criança que se comporta desse modo com os mais velhos. Vá se sentar em algum lugar; até que seja capaz de falar como convém, fique calada.
Havia uma saleta contígua ao salão; esgueirei-me para lá. Nela havia uma estante de livros: logo me apossei de um volume, tomando o cuidado de escolher um recheado de imagens. Fui para junto da janela: levantando os pés, sentei-me de pernas cruzadas, como um turco, e, depois de fechar quase por completo a pesada cortina vermelha, entreguei-me a um duplo isolamento.
Dobras de pano escarlate tapavam minha visão à direita; à esquerda estavam as vidraças transparentes, que me protegiam do dia de novembro, mas não me separavam dele. De vez em quando, ao virar as páginas do meu livro, eu estudava o aspecto daquela tarde de inverno. À distância, ela oferecia um pálido borrão de névoa e nuvem; mais perto, o cenário era o gramado molhado e os arbustos açoitados pelo temporal, a chuva incessante varrendo tudo com violência antes de uma longa e terrível rajada de vento.
Voltei ao livro – a História dos pássaros britânicos, de Bewick. O que estava impresso ali pouco me importava, de modo geral; contudo, havia certas páginas introdutórias que, mesmo sendo a criança que era, eu não conseguia passar com o mesmo desinteresse. Eram aquelas que tratavam da morada das aves marinhas; de “solitários rochedos e promontórios” somente por elas habitados; da costa da Noruega, repleta de ilhas desde a extremidade sul, Lindeness, ou Naze, até o cabo Norte…
Onde o oceano Norte, em vastos turbilhões, ferve ao redor das ilhas áridas e melancólicas da distante Thule; e as ondas do Atlântico se derramam entre as tempestuosas Hébridas
Nem podia passar despercebida a sugestão das sombrias praias da Lapônia, da Sibéria, de Spitzbergen, da Nova Zembla, da Islândia, da Groenlândia, com “a vasta extensão do Ártico e aquelas regiões ermas de espaço lúgubre – aquele reservatório de gelo e neve, onde sólidos campos glaciais, acúmulo de séculos de invernos, vitrificam as alturas alpinas, cercam o polo e concentram os rigores multiplicados do frio extremo”. Desses reinos brancos como a morte formei uma ideia pessoal minha; vaga, como todas as noções malcompreendidas que flutuam no cérebro das crianças, mas estranhamente impressionante. As palavras nessas páginas introdutórias ligavam-se às vinhetas seguintes e davam significado à rocha que se erguia sozinha num mar de ondas e borrifos de água, ao barco quebrado, encalhado numa costa desolada, à lua fria e sinistra espreitando por entre as nuvens um navio naufragado que começava a afundar.
Não sei dizer ao certo que sentimento assombrava o solitário adro da igreja, com sua lápide gravada; seu portão, suas duas árvores, seu horizonte baixo, cercado por um muro em ruínas, e a lua crescente que acabava de nascer, assinalando o cair da noite.
Os dois navios calmos num mar turbulento eu acreditava serem fantasmas marinhos.
Pelo demônio agarrado ao saco que o ladrão levava às costas passei rapidamente: era uma imagem aterrorizante.
Como também era aquela criatura preta, de chifres, sentada isolada numa rocha, observando a multidão ao longe em torno de um patíbulo.
Cada imagem contava uma história; misteriosa, muitas vezes, para a minha compreensão pouco desenvolvida e meus sentimentos imperfeitos, mas ainda assim profundamente interessante: tão interessante quanto os contos que Bessie às vezes narrava nas noites de inverno, quando calhava de estar de bom humor; e quando, tendo trazido a tábua de passar para junto da lareira, permitia que nos sentássemos ao redor e, enquanto passava os babados de renda da sra. Reed e frisava os debruns de suas toucas de dormir, alimentava nossa ansiosa atenção com passagens de amor e aventura extraídas de antigos contos de fadas e baladas mais antigas ainda; ou (como mais adiante vim a descobrir) das páginas de Pamela e Henry, conde de Moreland.
Com o Bewick no colo, eu me sentia feliz, pelo menos ao meu modo. Só o que temia era ser interrompida, e isso aconteceu pouco depois. A porta da saleta se abriu.
– Buuu! Madame Boboca! – exclamou a voz de John Reed; logo ele se calou: a sala estava aparentemente vazia.
– Onde diachos ela está? Lizzy? Georgy! – chamou as irmãs –, Joan não está aqui: digam à mamãe que saiu na chuva, aquela peste!
“Ainda bem que fechei a cortina”, pensei, e desejei ardorosamente que ele não descobrisse meu esconderijo. John Reed não o haveria de encontrar sozinho: nem sua visão nem suas ideias eram sagazes; mas Eliza colocou a cabeça na porta e disse, sem demora:
– Ela deve estar no banco da janela, Jack.
E eu saí imediatamente, pois temia a ideia de ser arrastada para fora dali pelo dito Jack.
– O que você quer? – perguntei, com incômoda desconfiança.
– Diga “o que o senhor quer, sr. Reed” – foi a resposta. – Quero que venha até aqui.
E, sentando-se numa poltrona, intimou-me com um gesto a me aproximar e ficar de pé diante dele.
John Reed era um rapaz de quatorze anos, e ia à escola. Quatro anos mais velho que eu, que só tinha dez, ele era grande e robusto para sua idade, com a pele pardacenta e enfermiça; tinha feições grosseiras num rosto largo, braços e pernas pesados, mãos e pés grandes demais. Tinha o hábito de se empanturrar à mesa, o que o deixava irritadiço e lhe conferia um olhar turvo e apagado, e bochechas flácidas. Deveria estar na escola, mas sua mãe o havia trazido para casa por um ou dois meses, “por conta de sua saúde frágil”. O sr. Miles, diretor da escola, afirmara que lhe faria muito bem comer menos dos bolos e doces que lhes eram enviados de casa, mas o coração da mãe recuava diante de tão severa opinião, e pendia à ideia mais refinada de que a palidez de John se devia ao excesso de aplicação aos estudos e, talvez, a saudades de casa. John não tinha muito afeto por sua mãe e suas irmãs, e a mim ele detestava. Atormentava-me e me castigava, e isso não acontecia uma ou duas vezes por se mana, nem uma ou duas vezes por dia, mas continuamente: cada nervo meu o temia, e cada pedaço de carne sobre meus ossos se encolhia quando ele se aproximava. Havia momentos em que eu me sentia atordoada pelo terror que ele inspirava, porque não tinha quem me defendesse de suas ameaças ou de seus castigos. Os criados não queriam ofender seu jovem senhor tomando meu partido, e a sra. Reed se fazia de desentendida em relação ao assunto: nunca via o filho me bater e nunca o ouvia me maltratar, embora ele fizesse ambas as coisas vez por outra em sua presença; com mais frequência, porém, fazia-o às suas costas.
Em geral obediente a John, fui até sua poltrona: ele passou uns três minutos esticando a língua para mim tanto quanto conseguia sem machucar o freio. Eu sabia que ele logo haveria de me agredir, e embora temesse o golpe fiquei contemplando o aspecto feio e repugnante daquele que em breve haveria de desfechá-lo. Talvez ele tenha lido em meu rosto esses pensamentos, pois no mesmo instante, sem dizer uma palavra, deu uma forte bofetada. Cambaleei, e ao recobrar o equilíbrio recuei um ou dois passos, afastando-me da sua poltrona.
– Isso é pela sua impertinência ao responder à mamãe há pouco – disse ele –, e por esse seu jeito furtivo de ir se esconder atrás das cortinas, e por essa expressão que tinha no olhar há dois minutos, garota desprezível!
Acostumada aos maus-tratos de John Reed, nunca me ocorria reagir: minha preocupação era como resistir à pancada que certamente haveria de se seguir ao insulto.
– O que você estava fazendo atrás da cortina?
– Estava lendo.
– Deixe-me ver o livro.
Fui até a janela e o apanhei.
– Você não tem nada que pegar os nossos livros; é uma dependente, é o que a mamãe diz. Não tem dinheiro, seu pai não lhe deixou nada. Você devia estar mendigando, e não vivendo aqui com filhos de gente de bem como nós, comendo as mesmas refeições que comemos, usando roupas à custa da mamãe. Vou ensiná-la a não ficar mexendo nas minhas estantes de livros: porque são minhas, a casa toda me pertence, ou vai pertencer dentro de alguns anos. Vá para junto da porta, longe do espelho e das janelas.
Obedeci, sem saber ao certo, a princípio, quais eram suas intenções; mas quando vi que erguia o livro e se preparava para arremessá-lo, instintivamente saltei para o lado com um grito alarmado. Tarde demais, porém; ele atirou o livro e me acertou, e eu caí, batendo a cabeça na porta e me ferindo. O corte sangrava, a dor era aguda: meu terror já ultrapassara o clímax, e outros sentimentos se sucederam.
– Garoto malvado e cruel! – eu disse. – Você mais parece um assassino, parece um senhor de escravos… parece um imperador romano!
Eu tinha lido a História de Roma de Goldsmith, e formara minha opinião sobre Nero, Calígula e os demais. Também traçara, em silêncio, paralelos que nunca teria pensado em declarar assim, em voz alta.
– O quê?! O quê?! – exclamou ele. – Ela me disse mesmo isso? Eliza e Georgiana, ouviram? Acha que não vou contar à mamãe? Mas antes…
E ele correu impetuosamente na minha direção: senti-o agarrar meu cabelo e meu ombro: altercava-se com uma criatura desesperada. Eu via mesmo nele um tirano: um assassino. Senti uma ou duas gotas de sangue escorrendo da minha cabeça para o pescoço, e me dominou uma dor pungente; tais sensações pela primeira vez sobrepujaram o medo, e eu estava pronta para ele, fora de mim. Não sei muito bem o que fiz com as mãos, mas ele me chamou de “Desgraçada! Desgraçada!” e começou a berrar. O socorro estava próximo: Eliza e Georgiana tinham ido correndo chamar a sra. Reed, que fora para o andar de cima; ela regressava e se deparava com a cena, seguida por Bessie e sua criada Abbot. Separaram-nos. Ouvi as palavras:
– Minha nossa! Com que fúria ela ataca o sr. John!
– Onde já se viu tamanha demonstração de cólera
! Então a sra. Reed acrescentou:
– Levem-na para o quarto vermelho, e podem trancá-la ali.
Quatro mãos se apoderaram imediatamente de mim, e fui levada lá para cima.
Capitolo 2
RESISTI DURANTE TODO o caminho: uma atitude nova para mim, e uma circunstância que reforçava em muito a opinião negativa que Bessie e a srta. Abbot estavam predispostas a ter a meu respeito. O fato é que eu estava um tanto fora de controle; ou fora de mim, como diriam os franceses: tinha consciência de que a momentânea insubordinação já me expusera a punições fora do comum, e, como qualquer outro escravo rebelde, estava decidida, em meu desespero, a ir até as últimas consequências. — Segure os braços dela, srta. Abbot: está que mais parece uma gata selvagem.
— Que vergonha, que vergonha! — exclamou a criada. — Que conduta mais indecorosa, srta. Eyre, bater num jovem cavalheiro, o filho de sua benfeitora! O seu jovem senhor.
— Senhor! Desde quando ele é meu senhor? Por acaso sou uma criada?
— Não; a senhorita é menos do que uma criada, pois não faz nada para ganhar seu sustento. Muito bem, sente-se aí, e vá pensar sobre sua perversidade.
A essa altura já tinham me levado ao quarto indicado pela sra. Reed, e me jogado em cima de um banco: meu impulso foi saltar dali feito uma mola; os dois pares de mãos me seguraram imediatamente.
— Se não ficar quieta, terá de ser amarrada — disse Bessie. — Srta. Abbot, empreste-me as suas ligas. As minhas ela arrebentaria no mesmo instante.
A srta. Abbot se virou para tirar da perna robusta a liga solicitada. Esses preparativos que faziam para me amarrar, e a ignomínia adicional que implicavam, abrandaram um pouco minha excitação.
— Não precisa tirá-las — exclamei. — Vou me aquietar.
Para convencê-las do que dizia, agarrei com as mãos o banco.
— É melhor mesmo — disse Bessie; e quando teve certeza de que eu estava de fato me acalmando, soltou-me.
Ela e a srta. Abbot ficaram ali paradas, de braços cruzados, olhando de modo ameaçador e desconfiado para o meu rosto, como se duvidassem da minha sanidade.
— Ela nunca fez isso antes — disse Bessie por fim, voltando-se para a criada.
— Mas sempre teve isso dentro de si — foi a resposta. — Já disse várias vezes à madame qual a minha opinião sobre essa menina, e a madame concordou. É uma coisinha dissimulada. Nunca vi uma menina da sua idade ser tão fingida.
Bessie não respondeu; não tardou a se dirigir a mim, porém, dizendo:
— Precisa se dar conta, mocinha, de que tem dívidas para com a sra. Reed. Ela a está recebendo em sua casa; se a mandasse embora, teria de ir para um orfanato.
Eu não tinha nada a dizer ante essas palavras, que não eram novas para mim: minhas primeiras lembranças da existência incluíam comentários dessa natureza. Palavras de reprovação sobre a minha dependência tinham se tornado uma cantilena vaga e monótona aos meus ouvidos; muito dolorosas e esmagadoras, mas só parcialmente inteligíveis. A srta. Abbot se somou ao coro…
— E não devia pensar em si mesma em termos de igualdade com relação às sitas. Reed e ao sr. Reed, porque a madame gentilmente permite que seja criada com eles.
Terão um bocado de dinheiro e a senhorita não terá nenhum: seu papel é ser humilde, e tentar ser agradável para eles. — O que lhe dizemos é para o seu bem — acrescentou Bessie, numa voz amena. — Deveria tentar ser útil e agradável, e então talvez encontrasse aqui um lar; mas se agir de modo arrebatado e rude, a madame vai mandá-la embora, tenho certeza.
— Além do mais — disse a sita. Abbot —, Deus vai puni-la: poderia fazê-la cair moita no meio de um de seus ataques, e então para onde iria? Venha, Bessie, vamos deixá-la. Eu não gostaria, por nada do inundo, de ter um coração assim. Faça as suas orações, sita. Eyre, quando estiver sozinha; pois se não se arrepender algo muito ruim pode ter permissão de descer pela chaminé e levá-la embora.
Saíram, trancando a porta atrás de si.
O quarto vermelho era um cômodo desocupado, onde raramente alguém dormia: eu poderia dizer nunca, a menos que houvesse um afluxo eventual de visitas em Gateshead Hall e se fizesse necessário o uso de todas as acomodações de que dispunha. Não obstante, era um dos maiores e mais pomposos quartos da mansão. Uma cama apoiada em pilares de mogno maciço, de onde pendia um dossel de damasco vermelho-escuro, destacava-se feito umn tabernáculo no centro. As duas enormes janelas, com as venezianas sempre fechadas, eram parcialmente cobertas por grinaldas e cascatas do mesmo tecido. O tapete era vermelho, a mesa ao pé da cama era coberta por um pano carmim, as paredes eram de uma delicada cor de camurça, com um toque rosado. O guarda-roupa, a penteadeira e as cadeiras eram de mogno polido e pesado. Dessas cores escuras ao meu redor elevava-se num branco reluzente a pilha de colchões e travesseiros da cama, cobertos com uma colcha de alvo piquê. Ligeiramente menos proeminente era uma ampla poltrona almofadada junto à cabeceira da cama, também branca, com um banquinho para os pés e o aspecto, parecia-me, de um trono alvo.
O quarto estava gelado, porque raramente acendia-se ali a lareira; estava silencioso, porque ficava distante dos cômodos das crianças e da cozinha; solene, porque só raramente alguém entrava ali. Só uma criada vinha aos sábados tirar dos espelhos e da mobília a quieta camada de poeira de uma semana. E a própria sra. Reed, a intervalos distantes, visitava-o para revisar o conteúdo de certa gaveta secreta no guarda-roupa, onde mantinha vários pergaminhos, seu baú de joias e um retrato em miniatura de seu finado marido; e nessas últimas palavras jaz o segredo do quarto vermelho — o feitiço que o conservava tão solitário a despeito de sua grandiosidade.
Fazia nove anos que o sr. Reed, o pai, tinha morrido: nesse quarto dera seu último suspiro, e ali fora seu velório; seu caixão em seguida fora trazido pelos homens do agente funerário e, desde então, uma sensação de lúgubre consagração resguardara-o de intrusões frequentes.
Meu banco, ao qual Bessie e a implacável sita. Abbot me haviam deixado presa, era um divã baixo perto da chaminé de mármore; a cama se erguia diante de mim; à minha direita estava o guarda-roupa alto e escuro, com reflexos baços e irregulares sobre a superfície lustrosa da madeira; à minha esquerda ficavam as janelas cobertas; umn imenso espelho entre elas repetia a vaga majestade da cama e do quarto. Eu não tinha certeza absoluta de que tivessem trancado a porta; quando ousei me mexer, levantei-me e fui verificar. Ai de mim! Sim, nenhuma prisão era mais segura. Regressando, tive que passar diante do espelho; meu olhar fascinado explorou involuntariamente as profundezas que revelava. Naquele oco visionário, tudo parecia mais frio e mais escuro do que na realidade. E o pequeno e estranho vulto ali a me fitar, rosto e braços pálidos maculando a escuridão, e olhos cintilantes de medo movendo-se onde tudo mais se encontrava imóvel, teve um efeito verdadeiramente sobrenatural: pensei que era como um daqueles pequeninos fantasmas, metade fada, metade duende, que as histórias que Bessie contava à noite retratavam saindo de solitários vales repletos de fetas nas charnecas e aparecendo diante dos olhos de viajantes tardios. Regressei ao meu banco.
A superstição me acompanhava naquele momento, mas não era ainda seu instante de vitória completa: meu sangue ainda estava quente, o espírito da escrava rebelde ainda se apoderava de mim com seu vigor amargo; tive de conter uma veloz torrente de recordações antes de me retrair no presente soturno.
Toda a violenta tirania de John Reed, toda a indiferença orgulhosa de suas irmãs, toda a aversão de sua mãe, toda a parcialidade das criadas, tudo isso se revolveu em minha mente confusa como um depósito escuro num poço barrento. Por que motivo eu estava sempre sofrendo, por que era sempre intimidada, sempre acusada e sempre condenada? Por que jamais conseguia agradar? Por que era inútil tentar cair nas graças de alguém? Eliza, teimosa e egoísta, era respeitada. Georgiana, que tinha um temperamento mimado, unia malevolência muito pungente e um comportamento ardiloso e insolente, era indiscriminadamente tolerada. Sua beleza, suas faces rosadas e seus cachinhos dourados pareciam deleitar a todos que a contemplavam, e garantir-lhe salvaguarda para cada deslize. A John ninguém frustrava, muito menos punia, embora ele torcesse o pescoço dos pombos, matasse os filhotes de faisão, soltasse os cachorros sobre as ovelhas, arrancasse as uvas das parreiras na estufa e partisse os brotos das melhores plantas que havia ali. Também chamava sua mãe de “velha”, e às vezes a ultrajava por sua pele escura, parecida com a dele. Ignorava categoricamente seus desejos; não era raro que rasgasse e sujasse seus trajes de seda; ainda assim, era “o seu queridinho”. Eu não ousava cometer o menor deslize: esforçava-me em cumprir cada uma de minhas tarefas e era acusada de ser malcriada e maçante, mal-humorada e dissimulada, da manhã até a tarde, da tarde até a noite.
Minha cabeça ainda doía e sangrava do golpe e da queda, mas ninguém censurava John por bater em mim descaradamente; e como eu me voltara contra ele para me proteger de sua violência irracional, o opróbrio geral era contra mim.
“Que injusto! Que injusto!”, dizia a minha mente racional, forçada pelo agonizante estímulo a um vigor precoce porém transitório; e a Determinação, igualmente incitada, instigava algum estranho expediente para tentar escapar da insuportável opressão — como fugir ou, se isso não se pudesse realizar, nunca mais comer ou beber coisa alguma, deixando-me assim morrer.
Que consternação da alma foi a minha naquela tarde terrível! Que tumulto em meu cérebro, e como todo meu coração se insurgia! Mas em que escuridão, em que densa ignorância a batalha mental foi travada! Eu não conseguia responder à incessante pergunta íntima: por que eu sofria dessa maneira; agora, à distância de — não direi quantos anos — vejo tudo com clareza.
Eu destoava em Gateshead Hall; não era ninguém ali, e não tinha nada em comum com a sra. Reed ou seus filhos, ou com a criadagem. Se não me amavam, eu, na verdade, tampouco os amava. Não estavam obrigados a demonstrar afeto por uma criatura que não simpatizava com um único deles; uma criatura heterogênea, oposta a eles em temperamento, em capacidade, em propensões; uma coisinha inútil, incapaz de servir aos seus interesses, ou acrescentar o que fosse aos seus prazeres; uma coisinha nociva, que abrigava os germes da indignação ante o tratamento que recebia deles, e do desprezo diante do seu julgamento. Sei que, se eu fosse uma criança alegre, brilhante, despreocupada, exigente, bonita e brincalhona — ainda que igualmente dependente e sem amigos —, a sra. Reed teria tolerado a minha presença de modo mais complacente; seus filhos teriam tido um pouco mais da cordialidade que se demonstra por um semelhante; os criados seriam menos propensos a fazer de mim o bode expiatório da ala das crianças.
A luz do dia começou a abandonar o quarto vermelho; passava das quatro horas, e a tarde nublada pendia agora a um lúgubre crepúsculo. Eu ainda ouvia a chuva açoitando continuamente a janela da escada, e o vento uivando no bosque atrás da mansão. Fui aos poucos ficando fria como uma pedra, e minha coragem então cedeu. Meu estado de espírito habitual de humilhação, insegurança e desamparada depressão caiu úmido sobre as brasas de minha ira decrescente. Todos diziam que eu era má, e talvez fosse mesmo: pois não estava justamente pensando em deixar de comer até morrer? Isso com certeza era um crime: e estaria eu pronta para morrer? Ou seria o jazigo sob o coro da igreja de Gateshead uma morada convidativa? Nesse jazigo eu fora informada de que estava enterrado o sr. Reed; esse pensamento fez com que eu o evocasse, e me detive nessa evocação com pavor crescente. Não conseguia me lembrar dele, mas sabia que era meu tio — o irmão da minha mãe —, que me trouxera quando eu era uma criança órfã para a sua casa, e que em seus últimos momentos exigira da sra. Reed a promessa de que ia me criar e cuidar de mim como um de seus próprios filhos. A sra. Reed provavelmente achava que tinha cumprido essa promessa, e de fato tinha, até onde sua natureza lhe permitia. Mas como poderia gostar de verdade de uma intrusa, alguém que não tinha o seu sangue nem se unia a ela, após a morte do marido, por qualquer traço que fosse? Devia ter sido bastante penoso ver-se atada, por uma promessa arrancada à força, a fazer as vezes de mãe a uma criança estranha que ela não tinha como amar, e ver uma forasteira antipática intrometendo-se permanentemente em seu núcleo familiar.
Uma ideia singular me ocorreu. Eu não duvidava — nunca duvidara — que se o sr. Reed estivesse vivo ele teria me tratado bem; e agora, sentada ali olhando para a cama branca e as paredes sombrias — ocasionalmente dirigindo meu olhar fascinado ao espelho e sua luz mortiça —, comecei a me lembrar do que ouvira sobre os mortos, perturbados em seus túmulos pela violação de seus últimos desejos, revisitando a terra para punir aqueles que cometeram perjúrio e vingar os oprimidos: e pensei que o espírito do sr. Reed, molestado pelas ofensas da filha de sua irmã, poderia deixar sua morada — fosse ela no jazigo da igreja ou no inundo desconhecido daqueles que já se foram — e surgir diante de mim naquele quarto. Enxuguei minhas lágrimas e calei meus soluços, com medo de que o menor sinal de sofrimento profundo pudesse despertar alguma voz sobrenatural para me reconfortar, ou invocar na penumbra um rosto cercado por um halo, curvando-se sobre mim com estranha compaixão. Senti que a ideia, reconfortante na teoria, seria terrível se concretizada: com todas as forças tentei reprimi-la — procurei ser firme. Sacudindo o cabelo de cima dos olhos, ergui a cabeça e tentei olhar de modo desafiador para o quarto escuro ao meu redor: nesse momento, uma luz reluziu na parede. Seria, eu me perguntei, um raio da lua penetrando por alguma abertura na veneziana? Não, o luar era imóvel, e esse lume se movia; enquanto eu observava, deslizou até o teto e oscilou sobre minha cabeça. Posso agora conjecturar com facilidade que esse facho de luz era, provavelmente, o brilho de alguma lamparina que alguém levava pelo gramado: naquele momento, porém, preparada como estava minha mente para o terror, abalados como estavam meus nervos pela agitação, pensei que o raio veloz era o arauto de alguma visão do outro mundo. Meu coração disparou, minha cabeça ferveu; um som ocupou meus ouvidos, e eu o percebi como um bater de asas: algo parecia próximo de mim; eu estava oprimida, sufocada. A resistência se foi e dei um grito arrebatado e involuntário; corri para a porta e sacudi a tranca num esforço desesperado. Passos se aproximaram pelo corredor; a chave girou, e Bessie e Abbot entraram.
— Sente-se doente, srta. Eyre? — perguntou Bessie.
— Que som terrível! Atravessou meu corpo! — exclamou Abbot.
— Deixem-me sair! Levem-me para a ala das crianças! — foi minha exclamação.
— Por quê? Acaso se machucou? Viu alguma coisa? — perguntou Bessie outra vez.
— Ah! Vi uma luz, e pensei que um fantasma se aproximava — eu agarrara a mão de Bessie, e ela não a retirara.
— Ela gritou de propósito — declarou Abbot, com certa repugnância. — E que grito! Se estivesse sentindo dor poderíamos desculpá-la, mas ela só queria que viéssemos até aqui: conheço seus truques malvados.
— O que está acontecendo? — indagou outra voz peremptoriamente; e a sra. Reed se aproximou pelo corredor, a touca esvoaçando, o vestido farfalhando alto. — Abbot e Bessie, acredito ter dado ordens para que Jane Eyre fosse deixada no quarto vermelho até que eu mesma viesse vê-la.
— A srta. Jane gritou tão alto, madame — alegou Bessie.
— Solte-a — foi a única resposta. — Solte as mãos de Bessie, menina: não vai conseguir sair daqui desse jeito, pode estar certa. Odeio esperteza, particularmente em crianças; é meu dever lhe mostrar que esses truques de nada adiantam: ficará aqui, agora, uma hora a mais, e somente se demonstrar completa submissão e ficar quieta virei soltá-la.
— Ah, tia! Tenha piedade! Desculpe-me! Não posso suportar… castigue-me de outra maneira! Eu vou morrer se…
— Silêncio! Esse arrebatamento é quase repulsivo — e era isso, sem dúvida, que ela sentia. Eu era uma atriz precoce aos seus olhos: ela realmente via em mim um conjunto de paixões virulentas, má índole e perigosa falsidade.
Bessie e Abbot tendo se retirado, a sra. Reed, impaciente diante da minha angústia agora frenética e dos meus soluços convulsivos, jogou-me abruptamente para trás e me trancou ali dentro, sem dizer mais nada. Ouvi o ruído de seu vestido enquanto ela se afastava; pouco depois que me deixara, acho que tive uma espécie de ataque de nervos: a inconsciência encerrou a cena.