Livro ‘Eu Sou Dinamite!’ por Sue Prideaux

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Um filósofo como nenhum outro. O trabalho de Friedrich Nietzsche abalou a base do pensamento ocidental e continua a permear nossa cultura. Mesmo assim – ou talvez por isso - ele é um dos filósofos mais mal compreendidos e enigmáticos da História. Sua descrença nos valores da sociedade, sua ideia de que “Deus está morto” e seu conceito sobre o super-homem, que encara a vida sem as muletas da religião e da moral, influenciam gerações até hoje. Mas o que a maioria das pessoas realmente sabe de Nietzsche - além do bigode, da carranca e da persistente associação com o niilismo e o fascismo?...
Editora: Crítica; 1ª edição (30 maio 2019)  Páginas: 440 páginas  ISBN-10: 854221644X  ISBN-13: 978-8542216448  ASIN: B07RGS5WJ1 

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Sobre o autor: Sue Prideaux é anglo-norueguesa. Sua primeira biografia Edvard Munch: Behind the Scream (Yale University Press) ganhou o James Tait Black Memorial Prize e ela falou sobre Munch para o World Monuments Fund, em festivais literários, na Royal Academy em Londres e no MOMA em Nova York para televisão CBS e para a TV coreana. Ela escreveu sobre Munch para a Royal Academy, Sotheby’s, Art Newspaper e outras publicações. Enquanto escrevia sobre Munch, Sue ficou cada vez mais fascinada por seu amigo August Strindberg.  Strindberg: A Life  foi publicado pela Yale em março de 2012. Foi selecionado para o prêmio Samuel Johnson de não ficção e ganhou o prêmio Duff Cooper.

Leia trecho do livro

1

Uma noite musical

Para fugir de uma pressão insuportável você precisa de haxixe. Bem, então, eu preciso de Wagner. Wagner é o antídoto para tudo que é alemão.

Ecce homo, “Por que sou tão inteligente”, seção 6

Em 9 de novembro de 1868, com 24 anos, Nietzsche contou urna história cômica a Erwin Rohde, seu amigo e colega na Universidade de Leipzig. Ele escreveu:

Os atos na minha comédia são intitulados:
1. Uma reunião noturna da sociedade, ou o professor assistente.
2. O alfaiate expulso.
3. Um encontro com X.
O elenco inclui algumas senhoras.

Na noite de quinta-feira Romundt me levou ao teatro, que me desperta sentimentos cada vez mais frios E…) acomodamo-nos como deuses entronados no Olimpo para julgar uma peça medíocre chamada Graf Essex. Claro que reclamei com meu sequestrador […]

A primeira palestra do semestre da Sociedade Clássica foi marcada para a noite seguinte e fizeram a cortesia de me convidar a fazer parte. Precisei me munir de um estoque de armas acadêmicas, mas logo estava preparado, e tive o prazer de encontrar, ao entrar no salão em Zaspel, uma missa negra de quarenta ouvintes […] Falei bem à vontade, auxiliado apenas por anotações em um pedaço de papel (…) Acho que vai dar certo, essa carreira acadêmica. Quando cheguei em casa encontrei um bilhete a mim endereçado, com umas poucas palavras: “Se você quiser conhecer Richard Wagner, esteja às 15h45 no Café Théâtre. Windisch”.

Essa surpresa causou um turbilhão em minha mente […] claro que saí correndo para encontrar nosso honorável amigo Windisch, que me deu mais informações. Wagner encontrava-se estritamente incógnito em Leipzig. A imprensa não sabia de nada e os criados foram orientados a se manter em silêncio como túmulos de libré. Acontece que a irmã de Wagner, Frau Professor Brockhaus, i aquela mulher inteligente que nós dois conhecemos, apresentou ao irmão sua boa amiga, Frau Professor Ritschl. Na presença de Frau Ritschl, Wagner toca “Meisterlied” [a ária de Walther para a mais recente ópera de Wagner, Die Meistersinger, que havia estreado alguns meses antes] e a boa mulher diz a ele que já conhece bem essa melodia. [Ela já a tinha ouvido sendo tocada e cantada por Nietzsche, apesar de a partitura musical ter sido publicada muito recentemente.] Alegria e surpresa da parte de Wagner! Declara sua suprema vontade de encontrar-se comigo incógnito; sou convidado para a noite de domingo […]

Durante os dias intervenientes meu estado de espírito pareceu coisa de um romance: acredite em mim, os preliminares para esse encontro, considerando o quanto esse homem excêntrico é inacessível, pareciam quase um conto de fadas. Acreditando que muitas pessoas seriam convidadas, resolvi me vestir de forma muito elegante, e por isso fiquei feliz por meu alfaiate ter prometido meu novo terno de gala para aquele mesmo domingo. Foi um dia terrível de chuva e neve. Tremia só de pensar em sair de casa, por isso fiquei contente quando Roscher me fez uma visita à tarde para me dizer algumas coisas sobre a Eleática [uma antiga escola de filosofia grega, provavelmente do século vi a.C.] e sobre Deus na filosofia. Afinal o dia começou a escurecer, o alfaiate não apareceu e chegou a hora de Roscher ir embora. Eu saí com ele para ir até o alfaiate pessoalmente. Lá encontrei seus escravos extremamente ocupados com o meu terno; eles prometeram enviá-lo em três quartos de hora. Saí de lá contente, passei pelo Kintschy’s [um restaurante de Leipzig muito frequentado por estudantes], li a Kladderadatsch [uma revista satírica ilustrada] e tive o prazer de ler uma notícia de que Wagner estava na Suíça. O tempo todo eu sabia que iria me encontrar com ele naquela mesma noite. Também sabia que ontem ele tinha recebido uma carta de um reizinho [Ludwig ti da Baviera] assim endereçada: “Ao maior compositor alemão, Richard Wagner”.

Em casa não vi nenhum alfaiate. Dei uma lida na dissertação sobre Eudóxia, vez ou outra perturbado por uma campainha alta porém distante. Finalmente cheguei à conclusão de que havia alguém em frente ao patriarcal portão de ferro forjado; estava trancado, assim como a porta da frente da casa. Gritei para o homem e disse para ele entrar por trás. Era impossível se fazer entender com aquela chuva. A casa inteira estava agitada. Finalmente o portão foi aberto e um velhinho chegou ao meu quarto com um pacote. Eram seis e meia, hora de me vestir e me preparar, pois eu moro um pouco longe. O homem está com as minhas roupas. Eu as experimento; elas servem. Um momento ominoso: ele apresenta a conta. Aceito-a com delicadeza; ele quer ser pago contra a entrega dos artigos. Fico surpreso e explico que não vou tratar com ele, um empregado, apenas com o próprio alfaiate. O homem me pressiona. O tempo me pressiona. Pego as coisas e começo a vesti-las. Ele as agarra, não me deixa vesti-las – força do meu lado; força do lado dele. Cena: estou lutando só de camisa, tentando colocar minhas calças novas.

Uma demonstração de dignidade, uma ameaça solene. Amaldiçoando meu alfaiate e seu assistente, juro vingança. Enquanto isso ele está indo embora com minhas coisas. Fim do segundo ato. Fico matutando no sofá, só de camisa, considerando se um veludo preto será suficiente para Richard.

Lá fora a chuva está forte. Um quarto para as oito. Combinamos de nos encontrar no Café Théâtre às sete e meia. Saio para a noite de vento e chuva, um homenzinho de preto sem um traje de gala.

Entramos na confortável sala de visita de Brockhaus; ninguém no local além do círculo familiar, Richard e eu. Sou apresentado a Richard e me dirijo a ele com umas poucas palavras respeitosas. Ele quer saber detalhes exatos de como fiquei conhecendo sua música, amaldiçoa todas as apresentações de suas óperas e zomba dos maestros que orientam suas orquestras com voz branda: “Senhores, aqui é mais passional. Meus bons companheiros, um pouco mais passional!”[…]

Antes e depois do jantar, Wagner tocou os principais trechos de Meistersinger, imitando todas as vozes com grande exuberância. Realmente ele é um homem fabuloso, vivaz e fogoso, que fala muito depressa, é muito espirituoso e transforma uma reunião íntima como essa em um acontecimento muito divertido. Entrementes, tive uma conversa meio longa com ele sobre Schopenhauer; você vai entender o quanto apreciei ouvi-lo falar sobre Schopenhauer com um entusiasmo indescritível, sobre o quanto o reconhecia como o único filósofo que entendia a essência da música.

Os textos de Schopenhauer eram à época pouco conhecidos e não muito valorizados. As universidades se mostravam relutantes em reconhecê-lo como filósofo, mas Nietzsche se entusiasmou fervorosamente por Schopenhauer, tendo descoberto recentemente O mundo como vontade e representação por acaso, o mesmo acaso ou, como ele preferia dizer, a mesma cadeia de coincidências fatídicas que pareciam ser organizadas pela infalível mão do instinto que o levara a esse encontro com Wagner na casa de Brockhaus.

O primeiro elo da corrente fora forjado um mês antes do encontro, quando Nietzsche ouviu os prelúdios das duas mais recentes óperas de Wagner, Tristão e Isolda e Die Meistersinger von Nürnberg [Os mestres cantores de Nuremberg]. “Todas as fibras, todos os nervos do meu corpo estremeceram”, escreveu no mesmo dia, preparando-se para aprender os arranjos para piano. Depois disso, Ottilie Brockhaus ouviu-o tocar e transmitiu a informação ao seu irmão Wagner. E o terceiro elo: a grande admiração de Wagner pelo filósofo obscuro cujos textos serviram de consolo para Nietzsche três anos antes quando ele chegou a Leipzig, sozinho e infeliz.

Eu [Nietzsche] vivia então em um estado de indecisão e impotência, sozinho e sob certas experiências e decepções dolorosas, sem princípios fundamentais, sem esperança e sem uma única lembrança prazerosa […] Um dia encontrei este livro em uma livraria de segunda mão, peguei-o como algo bem desconhecido para mim e virei suas páginas. Não sei que demônio me sussurrou: “Leve este livro para casa”. Foi o oposto de minha atitude habitual de hesitar em comprar algum livro. Ao chegar em casa, me joguei no sofá com o tesouro recém-adquirido e comecei a deixar aquele gênio energético e sombrio operar sobre mim […] Vi ali um espelho de como eu via o mundo, a vida e minha própria natureza com uma grandiosidade aterrorizante […] vi ali doença e saúde, exílio e refúgio, o Inferno e o Céu.

Mas naquela noite na casa de Brockhaus não houve tempo para falar mais sobre Schopenhauer, pois o que Nietzsche descreveu foram as espirais de linguagem de Wagner, sua genialidade para moldar nuvens, seus rodopios, volteios e gesticulações, como ele conseguia estar em toda parte e em lugar nenhum.

A carta continua:

Depois [do jantar] ele [Wagner] leu um trecho da autobiografia que está escrevendo, uma cena extremamente deliciosa de seus tempos como estudante em Leipzig, dos quais ainda não consegue pensar sem dar risada; ele também escreve com uma inteligência e uma habilidade extraordinárias. Finalmente, quando estávamos nos preparando para sair, ele apertou minha mão calorosamente e me convidou muito cordialmente para visitá-lo, para fazer música e conversar sobre filosofia; também me confiou a tarefa de falar sobre sua música com sua irmã e parentes, o que me comprometi solenemente a fazer. Você vai saber mais quando eu puder pensar nesta noite de forma mais objetiva e distanciada. Por hoje, um cálido até logo e desejos de melhora à sua saúde. F. N.

Quando saiu da sólida e muito bem localizada mansão de esquina da professora Brockhaus, Nietzsche foi saudado por rajadas de vento e salpicos de neve durante toda sua enregelante caminhada até a Lessingstrasse 22, onde alugava um quarto grande e não mobiliado do professor Karl Biedermann, editor do jornal liberal Deutsche Allgemeine Zeitung. Ele descreve seu estado de espírito como uma alegria indescritível. “Pensando bem, minha juventude teria sido intolerável sem a música de Wagner”, escreveu, e ele nunca se esqueceria do fascínio exercido pelo compositor. Wagner é mais citado que qualquer outra pessoa nos textos de Nietzsche, incluindo Cristo, Sócrates e Goethe. Seu primeiro livro foi dedicado a Wagner. Dois de seus catorze livros têm Wagner no título. Em seu último livro, Ecce homo, Nietzsche escreveu que continuava procurando em vão em todos os campos da arte por uma obra “tão perigosamente fascinante, de uma infinidade exótica e meiga como Tristão“.

Desde cedo a ambição de Nietzsche era se tornar músico, mas como aluno extraordinariamente inteligente de uma escola extraordinariamente acadêmica, em que palavras estavam acima da música, aos dezoito anos ele abandonou a ideia, de forma relutante. Na ocasião de seu encontro com Wagner, Nietzsche ainda não era um filósofo, mas apenas um aluno da Universidade de Leipzig, onde estudava filologia clássica, a ciência das linguagens clássicas e da linguística.

Era um jovem bem empertigado, solene, culto e de boa índole, corpulento sem ser gordo. Nas fotografias, a impressão é que usava roupas emprestadas; os cotovelos e joelhos das vestimentas não estão nos lugares certos e os paletós repuxam nos botões. Baixo e de aparência comum, salvava-se do anonimato pelos olhos peculiarmente cativantes. Uma das pupilas era ligeiramente maior que a outra. Alguns dizem que as íris eram castanhas, outros que eram cinza-azuladas. Observavam o mundo com a incerteza difusa de uma extrema miopia, mas, quando focado, seu olhar era definido como intenso, penetrante e perturbador; fazia as mentiras entalarem na garganta do interlocutor.

Atualmente nós o conhecemos por fotografias, bustos e retratos de quando era mais velho, quando a boca e quase todo o queixo estavam totalmente recobertos pelo grande bigode em forma de chifre de carneiro, mas fotos tiradas com colegas estudantes durante os anos na Universidade de Leipzig nos mostram que, numa época em que pelos faciais predominavam, os dele eram comparativamente inexpressivos. Podemos ver que os lábios eram cheios e bem torneados, um fato confirmado mais tarde por Lou Salomé, uma das poucas mulheres que o beijaram, e podemos ver ainda que seu queixo era firme e arredondado. Assim como a voga intelectual anterior fora de melenas fluentes e gravatas-borboletas de seda frouxas que propagavam as credenciais do romantismo, Nietzsche anunciava seu racionalismo pós-romântico destacando sua testa impressionante, ocupada por um cérebro impressionante, escondendo os lábios sensuais e o queixo decidido.

Nietzsche vinha se sentindo cada vez mais insatisfeito como filólogo. Em carta escrita onze dias antes do encontro com Wagner, ele se define e a seus colegas filólogos como “a efervescente estirpe de filólogos do nosso tempo, tendo a cada dia de observar todas as suas pululantes verrugas, as bochechas caídas e os olhos cegos, felizes em capturar minhocas e indiferentes aos verdadeiros problemas, aos urgentes problemas da vida”. Um agravante adicional ao seu pessimismo era o fato de ser excepcionalmente bom nas verrugas pululantes que desprezava, e logo seria convidado a ocupar a cadeira de filologia clássica na Universidade de Basileia, tornando-se o mais jovem professor de todos os tempos. Mas essa glória ainda não havia chegado na noite em que Wagner o tratou como igual e deu mostras de que gostaria de continuar a amizade com ele. Foi uma honraria extraordinária.

Conhecido simplesmente como “o Mestre”, o compositor estava na casa dos cinquenta anos e gozava de notoriedade em toda a Europa. Todos os seus movimentos eram noticiados na imprensa, como Nietzsche descobrira pouco antes daquela noite ao ler a revista Kladderadatsch na cafeteria. Se Wagner fosse à Inglaterra, a rainha Vitória e o príncipe Albert o convidavam para um passeio. Em Paris, a princesa Pauline Metternich cuidaria de tudo. O rei Ludwig da Baviera se dirigia a Wagner como “meu adorado e angélico amigo” e tinha planos de remodelar totalmente a cidade de Munique em homenagem à música dele.

Ludwig morreu antes que o extravagante esquema fosse realizado (possivelmente assassinado, para impedir que seus insanos projetos de construção levassem o país à bancarrota), mas ainda podemos ver seus planos arquitetônicos: uma nova avenida cortando o centro da cidade, atravessando o rio Isar por uma nobre ponte de pedra semelhante à ponte do arco-íris de Wotan, que levava ao Valhala em Der Ring des Nibelungen [O anel do nibelungo] de Wagner, concluindo com uma enorme casa de ópera que lembrava o Coliseu, fatiada verticalmente na metade com um par de asas de cada lado. Para o rei Ludwig, a música de Wagner era “minha mais linda, suprema e única consolação”, um sentimento ecoado com frequência por Nietzsche.

Desde seus primeiros anos, Nietzsche se mostrou extraordinariamente sensível à música. Relatos da família sobre sua infância sugerem que para ele a música era mais importante que o discurso: uma criança tão calada que era a única presença que o pai, o pastor Karl Ludwig Nietzsche, admitia em seu escritório forrado de lambris enquanto trabalhava em assuntos da paróquia e escrevia seus sermões. Pai e filho passavam horas e dias juntos numa suave monotonia, mas, como muitos garotos de dois e três anos, o pequeno Friedrich às vezes era acometido por violentos paroxismos de raiva, gritando e agitando braços e pernas furiosamente. Nesses momentos nada o aplacava, nem a mãe ou brinquedos, nem comida ou bebida, a não ser quando o pai abria a tampa do piano e tocava alguma música.

Em um país musical, o pastor Nietzsche era extremamente habilidoso no teclado; pessoas viajavam quilômetros para ouvi-lo tocar. Era pastor luterano na paróquia de Rõcken, ao sul de Leipzig, onde J. S. Bach ocupou o cargo de diretor musical por 27 anos, até sua morte. Karl Ludwig era conhecido por seus recitais de Bach. Fato ainda mais incomum, era admirado por seu excepcional talento de improvisação, um talento que Nietzsche herdaria.

Os antepassados de Nietzsche eram gente modesta da Saxônia, açougueiros e trabalhadores rurais que ganhavam a vida nos arredores da cidade que abrigava a catedral de Naumburg. O pai de Karl Ludwig, Friedrich August Nietzsche, ascendeu socialmente com a família ao adotar o Sacramento das Ordens Sagradas e melhorou ainda mais sua posição ao se casar com Erdmuthe Krause, filha de um arquidiácono. Simpática às ideias de Napoleão, Erdmuthe deu à luz o pai de Nietzsche, Karl Ludwig, em 10 de outubro de 1813, alguns dias antes da Batalha das Nações, também chamada de Batalha de Leipzig, nas imediações da região onde Napoleão foi derrotado. Nietzsche adorava contar essa história. Considerava Napoleão o último grande imoralista, o último detentor de poder sem consciência, uma síntese de super-homem e monstro, e essa tênue ligação lhe conferia, segundo sua imaginação, a razão fisiopsicológica pré-natal de seu fascínio pelo herói. Uma das ambições não realizadas de sua vida foi fazer uma viagem à Córsega.

Karl Ludwig estava, naturalmente, destinado a seguir o pai no serviço à Igreja. Estudou na Universidade de Halle, perto de sua casa, havia muito renomada pelo ensino de teologia. Lá ele aprendeu, além de teologia, latim, grego e francês, história da Grécia e dos hebreus, filologia clássica e exegese bíblica. Não foi um estudante destacado, mas tampouco medíocre. Era conhecido como aluno esforçado e ganhou um prêmio por sua oratória. Ao sair da universidade, com 21 anos, arrumou um emprego como tutor na grande cidade de Altemburg, a uns cinquenta quilômetros ao sul de Leipzig.

Karl Ludwig era monarquista e conservador. Essas sólidas características chamaram a atenção do governante, José, duque de Saxe-Altemburg, que o contratou como supervisor da educação de suas três filhas, Therese, Elisabeth e Alexandra. Karl Ludwig tinha pouco mais de vinte anos, mas conseguiu exercer seu trabalho de forma admirável, e sem qualquer envolvimento romântico.

Depois de sete anos como tutor, candidatou-se ao posto de pastor da paróquia de Rõcken, em uma planície fértil porém árida a aproximadamente 25 quilômetros de Leipzig. Em 1842, mudou-se para a residência paroquial com a mãe, Erdmuthe, então viúva. A residência era bem próxima de uma das igrejas mais antigas da província da Saxônia, uma velha igreja-fortaleza datada da primeira metade do século XXI. Sob Frederico Barbarossa, sua torre alta e retangular dobrou de tamanho para servir como mirante para a extensa planície defendida pelos Cavaleiros de Kratzsch. A sacristia abrigava uma enorme efígie de pedra de um dos cavaleiros. A estátua aterrorizava o garoto Nietzsche quando o sol iluminava os olhos incrustrados de rubis, fazendo-os brilhar e piscar.

Em uma visita à paróquia de Pobles, os olhos do pastor Karl Ludwig, de 29 anos, foram capturados pela filha de dezessete anos de um padre local. Franziska Oehler não tinha muita cultura, mas era dotada de uma simples e profunda fé cristã e não desejava nenhum destino mais glorioso do que apoiar seu marido através deste vale de lágrimas mortal.

Os dois se casaram quando Ludwig completou trinta anos, em io de outubro de 1843. Karl Ludwig levou sua noiva para a residência paroquial de Rõcken, que era dominada por Erdmuthe, então uma intransigente materfamilias de 64 anos que ainda usava o ameaçador chapéu amarrado ao queixo e as falsas melenas laterais, típicas da geração anterior. Ela adorava o filho, controlava suas despesas e também a casa, baseada em seu “ouvido delicado”, que exigia manter os sons em volume permanentemente pianissimo.

Os outros membros da residência eram as duas meias-irmãs mais velhas do pastor, adoentadas e neuróticas, e as tias Augusta e Rosalie. Tia Augusta era uma mártir da domesticidade, que não permitia que a recém-casada Franziska fosse útil na cozinha para não amenizar seus problemas. “Deixe-me esse último refúgio”, dizia tia Augusta quando Franziska oferecia alguma ajuda. Tia Rosalie era um tipo mais intelectual; martirizava-se por causas de caridade. As duas tias eram afligidas pela difundida queixa contemporânea de doenças nervosas e estavam sempre a cinco passos de distância do armário de remédios, que nunca as curava. Esse triunvirato de mulheres mais velhas realmente transformaram Franziska, a noiva, numa inútil em sua própria casa. Felizmente, alguns meses depois do casamento, ela se viu grávida de Friedrich.

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 e foi batizado na igreja de Rõcken por seu pai, que escolheu o nome em homenagem ao rei na época, Friedrich Guilherme iv da Prússia. Dois anos depois, em io de julho de 1846, nasceu uma menina que ganhou o nome de Therese Elisabeth Alexandra, em homenagem às três princesas que o pai havia orientado, que sempre foi conhecida como Elisabeth. Dois anos mais tarde nasceu outro garoto, em fevereiro, sendo chamado de Joseph em homenagem ao duque de Altemburg.

O pastor era devoto e patriota, mas não isento dos distúrbios nervosos que afligiam a mãe e as meias-irmãs. Trancava-se em seu estúdio durante horas, recusando-se a comer, beber ou falar. Mais alarmante ainda, era dado a misteriosos acessos, quando seu discurso era interrompido abruptamente no meio de uma sentença e ele ficava olhando para o vazio. Franziska corria para despertá-lo, mas quando “acordava” ele não tinha consciência do que acontecera.

Franziska consultou o dr. Gutjahr, o médico da família, que diagnosticou uma “doença nervosa” e receitou repouso, mas os sintomas se agravaram, afinal obrigando o pastor a se afastar de seus deveres paroquiais. Os misteriosos paroxismos foram diagnosticados como “amolecimento do cérebro”, e durante meses ele foi acometido por prostração, agonizantes dores de cabeça e acessos de vômito, enquanto sua visão deteriorava drasticamente, até quase a cegueira. No outono de 1848, aos 35 anos e casado havia apenas cinco anos, não conseguia mais sair da cama, o que efetivamente cessou sua vida ativa.

A vida de Franziska era sufocante sob Erdmuthe, as duas tias neuróticas e a debilidade cada vez maior do marido. Carrancas sombrias e sinais dissimulados eram trocados entre os adultos na residência paroquial, mas de alguma forma Franziska conseguiu proteger os filhos dessa atmosfera mórbida. Memórias de infância escritas por Friedrich e Elisabeth falam da liberdade e da leveza da vida que irmão e irmã encontravam em seu parquinho aparentemente ilimitado, abrangendo a grande torre da igreja, o terreno da fazenda, o pomar e o jardim de flores. Havia lagoas rodeadas por salgueiros e grutas verdejantes onde os dois entravam para ouvir os passarinhos e observar os velozes peixes dardejando sob a cintilante superfície da água. Consideravam o cemitério gramado atrás da casa “amigável”, mas não brincavam entre as antigas tumbas por causa de três janelas de águas-furtadas no teto daquele lado da casa, que pareciam observá-los como os olhos de um Deus que tudo vê.

Os sofrimentos de Karl Ludwig se agravaram; ele deixou de falar, e afinal sua visão deteriorou até a cegueira total. Morreu em 30 de julho de 1849, com apenas 35 anos.

“A paróquia preparou uma cripta de pedra para ele […] Oh, nunca mais o som profundo e gutural daqueles sinos abandonaram meu ouvido; nunca me esquecerei da triste melodia do hino ‘Jesus, meu consolo’! Pelos espaços vazios da igreja os sons do órgão rugiam”, escreveu Nietzsche com treze anos em uma lembrança de sua infância.

Nessa época, certa vez sonhei que ouvia música de órgão na igreja, a música que tinha ouvido no funeral do meu pai. Quando percebi o que havia por trás daqueles sons, um túmulo subitamente se abriu e meu pai, envolto numa mortalha de linho, apareceu. Correu para dentro da igreja e voltou um momento depois com uma criança nos braços. A tumba escancarou-se mais uma vez, ele entrou e a tampa se fechou sobre a abertura. Os estertorosos sons do órgão cessaram instantaneamente e eu acordei. No dia seguinte a essa noite, o pequeno Joseph adoeceu de repente, acometido por graves cólicas, e morreu poucas horas depois. Nossa tristeza não conheceu limites. Meu sonho havia sido completamente confirmado. O corpinho dele foi posto para descansar nos braços do pai.


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