Livro ‘Como Se Fosse Magia’ por Bianca Briones

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Eva nasceu com o dom de passar todos os seus sentimentos para o papel, e com isso conquistou milhares de leitores pelo mundo. Agora, ela precisa escrever o último livro da sua série de fantasia, mas está com bloqueio criativo há um ano e não sabe o que fazer. Enquanto tenta se reconectar a seus personagens, a vida coloca em seu caminho um homem idêntico a um dos seus protagonistas. O problema é que o desconhecido surge sem nenhuma lembrança de quem ele é.Enzo está muito confuso. A princípio, ele duvida da conversa maluca de Eva. Mas mesmo com dificuldade em acreditar, ele não pode negar que se sente extremamente ligado a ela.Envolvidos por esse curioso e estranho mistério, Eva e Enzo estão prestes a descobrir que, às vezes, para que duas pessoas se encontrem, mundos inteiros são capazes de colidir.

Páginas: 208 páginas; Editora: Gutenberg; Edição: 1 (25 de agosto de 2016); ISBN-10: 8582353960; ISBN-13: 978-8582353967; ASIN: B01M62FXEC

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E fim.

Olho para a tela preenchida pelas letras, enquanto lágrimas escorrem pelo meu rosto e se perdem em uma gargalhada que mistura emoção e alívio. Terminei o livro no último dia do prazo.

Empurro a cadeira para trás e inicio a minha dancinha da comemoração, erguendo os braços para cima e rebolando sob o olhar de Lois Lane e Clark Kent, meus gatos.

Parece loucura, mas sou só uma escritora que conseguiu concluir um projeto que estava travado e tinha ultrapassado todos os deadlines possíveis. E confesso que faço essa dancinha toda vez que termino um livro novo.

Clark pula da poltrona e começa a se esfregar nas minhas pernas. Me abaixo para pegá-lo e o rodopio no ar. Ele fecha os olhos e o aninho em meu peito, caindo no sofá. Ele corre para longe, visivelmente indignado com minha petulância. Lois me encara fixamente como se me desafiasse a fazer o mesmo com ela. Não sou nem doida!

Me levanto para procurar meu celular, para ligar para o meu agente, mas não o encontro sobre a mesa e nem entre as almofadas do sofá. Minha visão fica um pouco turva e me sento. Deve ser o cansaço das últimas semanas. Onde já se viu escrever mais de 400 páginas em menos de um mês?

Aperto a cabeça entre as mãos e Lois se aproxima, sorrateiramente. O que essa gata está tramando?

Uma buzina estridente toca e olho ao redor assustada. Espera… por que tem uma mesa de escritório no meio da minha sala? O que está acontecendo? Ah, não. Não pode ser!

A música do despertador começa a tocar num volume insuportável e me ergo na cama, de repente.

– Não acredito que era sonho! – murmuro, dando um tapa na testa. – Por quê? Por quê?!

Acordar significa que despertei para o meu pesadelo da vida real chamado: “tenho um livro para escrever e não sai nem uma única palavra da minha cabecinha”.

– Por favor, Deus… me ajuda? Nunca te pedi nada… – minto descaradamente e resolvo acrescentar –, hoje. Não te pedi nada hoje. – Entrelaço os dedos e faço biquinho para o teto do meu apartamento, como se ele fosse se abrir e a luz da inspiração pudesse pousar no meu cérebro inútil.

Tenho que dar um jeito de romper esse bloqueio, mas primeiro preciso descobrir quem é esse cara roncando na minha cama.

Observo o estranho atentamente. Não me lembro o nome dele, mas sei que o conheci na noite passada, quando fui com o Thiago em um barzinho na rua Augusta.

Por que é que eu trouxe ele para cá? Não namoro ninguém há um ano e de vez em quando o Thiago me convence a sair. A última vez já tem três meses. Mas eu nunca trago ninguém para o meu apartamento. Se a gente tomasse juízo em vez de tequila, nada disso aconteceria.

As lembranças da noite anterior se amontoam em minha mente.

– Tenho mesmo que ir? – Tentei desistir do programa antes mesmo de começar, enquanto ainda estávamos no táxi. – Você não devia me forçar a ir onde não quero. Você é meu melhor amigo, poxa.

Eu estava apelando e sabia disso. Ninguém me forçaria a nada se eu realmente não quisesse.

– Sou seu único amigo, garota – ele respondeu, mexendo no celular sem nem olhar para mim.

Que belo (único) amigo eu tenho.

– Mas que desnecessário dizer isso.

Te chamar de garota? – Ele ergueu o olhar e balançou a cabeça, confuso.

– Não, não isso. – Apesar de eu ter 30 anos nas costas e não ser mais uma garota. – A outra parte.

– Que sou seu único amigo?

– É, isso aí. – Cruzei os braços.

– Estou mentindo, por um acaso?

– Não, mas…

– Sem mas… O motivo de eu ser seu único amigo é justamente você ficar enfiada em casa todos os dias. Você é uma escritora, não uma eremita.

– Não ligo que você seja o único. Gosto muito disso, na verdade. E, bem lembrado! Tenho um livro para escrever. Preciso trabalhar – digo, tentando me justificar.

– Não me venha com essa. Mesmo quando entregou o anterior, você se enfiou na Batcaverna e não saiu de lá. – Ele começou a se referir assim ao meu apartamento, desde a primeira vez em que fiquei um mês sem sair com ele.

– Caramba, teve a turnê e depois eu precisava descansar. Você precisa entender que eu tenho um compromisso às sextas-feiras, sábados e domingos e levo isso muito a sério. Não sou obrigada a sair.

– Compromissos com a Netflix não contam, Eva!

– O Netflix. O! Eu sei que o pessoal que cuida das redes sociais disse que a Netflix é menina, mas ela mudou de sexo. É menino agora e vamos nos casar. E é lógico que esses compromissos contam.

Você quer que eu vá a bares pra quê? Pra ficar com um desconhecido?

– E isso é ruim? Queria eu ter a sua facilidade pra encontrar alguém.

– Às vezes é bom, admito.

– Você precisa se abrir mais. Precisa se dar outra chance de se apaixonar. Há homens legais no mundo e não apenas os babacas que já passaram pela sua vida. Ainda que dê errado depois, pelo menos você vive um pouco. Não aguento mais ver você se fechando. Sem contar que isso é péssimo para os livros. – Ele volta a atenção para o celular, abrindo o e-mail.

– Você não está falando sério!

– Claro que eu estou! Além de ser seu melhor amigo, sou seu agente. Sempre que você sofre por amor, ganhamos um best-seller, e desde que você parou de namorar, há um ano, você não escreveu nada novo. Partiram seu coração e cadê meu livro? Entenda, não quero que sofra muito. Só o suficiente para o livro sair. – Ele me provoca.

Foi uma barra quando tudo aconteceu, mas hoje em dia fazemos graça com aquilo. É assim entre nós, melhor rir do que chorar, certo?

– Idiota. – Não fiquei brava. Nós brincávamos com isso o tempo todo. Não há dúvida de que já escrevi livros maravilhosos enquanto sofria loucamente. Que tragédia…

– Vem cá. – Ele me puxou para um abraço e beijou minha testa. – Você sabe que eu te amo, Eva.

Não posso deixar você se esconder do mundo.

– Eu sei. – Me aconcheguei em seu abraço. – Eu tenho você e ainda acho que não preciso de mais ninguém. Mas vamos para esse bar, então, escolher a dedo o cara com quem vou ficar só pra ele se mostrar um belo idiota e me magoar.

– Ah, para de tentar prever o futuro. Quando menos esperar, o cara certo vai cair na sua cama. – Caras certos não existem, Thi. – Suspiro, sentindo o perfume cítrico dele.

– Os caras certos são casados ou gays, como você, o que os torna errados para mulheres solteiras.

– Existem, sim. Não perca a fé. Você escreve sobre eles o tempo todo.

– Exatamente. Eles estão nos livros. E nenhum deles vai sair de lá e aparecer na minha vida. É mais fácil os idiotas continuarem chegando.

E aqui estou eu, olhando para o cara em questão, que até que é bonitinho, devo confessar. Mas não tem nada a ver com os personagens dos meus livros. Até porque meus meninos são deuses do sexo e esse cara foi bem mediano… pra menos.

Estico o dedo indicador para tocar seu peito e tentar acordá-lo, mas depois desisto. Deixo-o dormir e vou preparar uma xícara de café.

Abro a porta do quarto. Clark semicerra os olhos e me encara, me julgando por deixá-los dormir do lado de fora. Só Deus sabe onde está Lois. Ela fica uma fera quando não dorme no meu quarto e passa o dia se escondendo pelos cantos.

– Hummmm… – murmuro, fazendo Clark me seguir até a cozinha. Ele sabe que vou dar seu patezinho. Normalmente, Lois também viria, mas vai demorar para passar a raiva. Então coloco o patê para ela num potinho no canto da sala e volto para a cozinha com Clark atrás de mim.

Coloco o pó e a água na cafeteira e sinto um calafrio. Estou vestindo só uma regata e calcinha.

Uma rajada de vento entra pelo apartamento, fazendo com que a embalagem de café, que eu tinha deixado aberta, tombe sobre a pia e derrame quase todo seu conteúdo no pelo cinza claro do Clark, que bufa, me olhando contrariado.

Dou um pulo e corro para fechar a janela. É o tempo que Clark leva para sair como um raio da cozinha e correr para o meu sofá branco.

Quero morrer quando vejo o estrago. Lois pula de cima da estante e juro que posso vê-la sorrindo.

– Saiu do esconderijo só para vir caçoar, né? – Ela se deita na parte limpa do sofá e me olha, zombeteira. – Não te adotei para receber esses olhares não, viu, mocinha?

– Tem alguém aí? – O cara aparece vindo do quarto. – Você tá falando com seus gatos? – Ele parece surpreso de verdade.

– E alguém que tem gatos não fala com eles? – respondo sem me virar, enquanto tento limpar o pó de café do sofá e do Clark.

– É meio maluco.

– Não acho. – Me ergo e o encaro.

Ele está nu na minha sala. Decididamente, não é como um dos meus personagens e não foi abençoado pela natureza nas partes baixas. Ainda bem que tinha muito álcool envolvido na noite passada.

– Já que a chance de rolar outra vez é mínima, estava querendo dar uma rapidinha antes de ir embora. Topa?

Minha vontade é perguntar: “Meu filho, eu pareço bêbada?”, mas apenas nego com a cabeça e volto minha atenção para o sofá imundo. Vou ter que chamar alguém para limpar essa porcaria.

Lois encara o idiota e depois dirige o olhar a mim, como se dissesse: “Foi por isso aí que eu dormi aqui fora?”.

E é assim que começa esse sábado: 1 x 0 para a minha gata.


1 Eu fiz besteira esta noite/ Perdi outra luta/ Tiro a poeira do meu corpo e começo de novo/ Eu continuo caindo/ Mantenho uma mão no chão/ Sempre temo não ver o que virá em seguida.


Me deito na cama, gemendo de dor e querendo me matar por ter aceitado ir ao bar ontem. Devo ter comido algo que me fez mal, ou talvez seja só ressaca tardia.

A televisão está ligada e o Netflix aberto. O que não quer dizer muita coisa, já que não consigo me decidir o que assistir. Estou muito inclinada a rever todas as temporadas de Grey’s Anatomy disponíveis. Bora acrescentar drama a uma vida quase nada dramática.

Com muito custo, estico o braço e pego o celular no criado-mudo.

Thiago responde na mesma hora.

Deixo o celular de lado e puxo o edredom até estar coberta. Lois e Clark vão se ajeitando sobre minhas pernas e aperto o play para o primeiro episódio começar. Sorrio. Esse momento é quase sagrado. Todos os meus problemas são deixados de lado. Até mesmo esse prazo maldito que está correndo atrás de mim. Prometo que na segunda-feira vou me concentrar em quebrar o bloqueio e começar a escrever uma história nova, que satisfaça a editora e que, sobretudo, encante os leitores.

Afinal, são eles que importam. É para eles que escrevo. Sei que estou em falta, mas não imagino como sair desse buraco.

Está decidido: quando a semana começar, não terei mais desculpas.

Agora que tenho um problema a menos, posso relaxar e me entregar ao Net Mozão Flix. Aliás, a gente podia se casar mesmo. Acho que a satisfação é mais garantida que muitos caras por aí.

McDreamy aparece e suspiro, apertando a mão contra o peito. Quanto amor.

Vivo uma relação de amor e ódio com a roteirista da série. Amo seus enredos e o modo como suas histórias agem como terapia em minha vida. Mas ela também é Shondanás, o capeta que tira de mim meus personagens favoritos. Mesmo assim, não consigo resistir a ela. Vai entender.

Às vezes, tudo o que uma escritora quer é poder se esquecer de todas as suas histórias e mergulhar no universo criado por outro alguém.


[2] Se não é como nos filmes/ É assim que deveria ser, sim/ Quando ele for o escolhido/ Eu vou me derreter/ E o meu mundo vai parar de girar/ E isso será apenas o começo, sim.


Estou no escritório do Thiago, na agência, relendo minhas anotações e tentando me preparar para uma reunião com o pessoal da editora daqui três dias. Ele está falando ao telefone com alguém do marketing da editora e não presto atenção. Essa conversa provavelmente vai me gerar problemas, então vamos deixá-la para depois.

Uma notificação do Facebook faz com que eu feche o arquivo do livro novo. Ao abrir a rede social, vejo que uma leitora me marcou em um desenho que ela fez de um dos meus protagonistas.

Passo os dedos sobre a tela e sorrio ao observar o rosto do Enzo, perfeitamente detalhado. Ela captou a essência do personagem ao desenhar até o modo como ele franze a testa na história. Abaixo do desenho está uma das falas mais marcantes dele: “Não importa o tempo que passe, eu sempre voltarei para você”.

Já me perguntaram em várias entrevistas qual é meu protagonista preferido entre tantos livros que escrevi, mas nunca confessei que se eu tivesse que escolher um seria o Enzo. Talvez seja por isso que eu não consiga escrever o quarto e último livro da série de fantasia que ele protagoniza. Não quero me despedir…

Ainda me lembro, como se tivesse acabado de acontecer. Estava olhando pela janela do meu apartamento, a música tocava no rádio e no meio daquele céu estrelado surgiu um mundo novo em minha mente. Um homem capaz de viajar pelas páginas dos livros. Ele seria real ou apenas um personagem que caiu de uma história e precisa encontrar seu rumo? Essa é a premissa da série, que deve ser resolvida no último volume, junto a um monte de pontas que preciso amarrar.

– Então, ele vai viver ou não? – Thiago pergunta, me trazendo para o momento presente.

– O quê? – Me ajeito na cadeira, colocando o celular sobre a mesa.

– Enzo! Você precisa decidir se ele vai viver ou não. Precisamos dar um fim a essa história. O pessoal do marketing está me pressionando para que eu entregue algum material, para que eles comecem as ações com o livro. Precisa estar pronto para ser lançado na Bienal do Livro.

– Eu sei disso – expiro ruidosamente –, só não sei o fim da história.

– Meu anjo, não quero te pressionar. Sabe disso. Mas estamos em junho, você precisa entregar em até 15 dias, sem falta. Por mim, você teria o tempo que fosse necessário, mas seus livros vendem como água e precisamos disso. Ninguém consegue entender como alguém que escreve livros imensos em menos de um mês esteja com um bloqueio há quase um ano. Você já tinha mais da metade escrito. É horrível que tenha travado assim. E a terapia, você tem ido?

– Você sabe que sim.

– E nem isso está ajudando, certo?

– Nem isso…

– O que acha de fazer uma viagem? Pode ser que um retiro te ajude.

– Pode ser…

– Bom, vou conversar com o pessoal sobre isso e fechamos algo que você goste. Precisamos dar um jeitinho de abrir a sua mente. O cara do bar não funcionou. Serviu para abrir outras coisas só.

– Ele ri e eu reviro os olhos, mas acabo rindo também.

– Voltando ao que interessa, estou com o primeiro livro na bolsa. Saindo daqui vou parar na cafeteria, me encher de açúcar e café, e iniciar uma releitura. Quem sabe assim eu volto a me conectar com os personagens?

– Nem sinal da Elena também? – Ele se refere à minha protagonista.

– Nem sinal da nossa escritora e leitora compulsiva.

– Ah, que história maravilhosa. – Thiago suspira, apontando para as capas dos três primeiros volumes da série que preenchem sua parede. – Uma escritora e leitora compulsiva que se apaixona por um cara que entra e sai dos seus livros favoritos. Não é à toa que é sucesso.

– Mas ainda preciso terminar o último livro.

– E vai conseguir.

Balanço a cabeça e o sorriso confiante do Enzo preenche meus pensamentos.

Por favor, Enzo, me conta o final da sua história… Por favor. Por favor.


3 Você espera pelo silêncio/ Eu espero por uma palavra/ Deitada ao lado de seu quadro/ Menina não observada/ Você pode mudar de posição/ Você está me mudando/ Moldando essas sombras/ Onde elas não deveriam estar.


Enzo abriu os olhos e balançou a cabeça, confuso. Apertou o rosto com as mãos e tentou acostumar a visão à escuridão. Onde estava? Que terra estranha seria aquela?

Sorrio ao voltar ao mundo do Enzo. Meu mundo. Universo que criei e parece tão real. Quando me perguntam de onde tiro essas histórias, não sei responder. Sinto como se elas existissem por aí em algum lugar. Com “Universos Paralelos”, nome da série protagonizada pelo Enzo e a Elena, sinto como se tivesse voltado para casa.

Bebo um gole do meu cappuccino e volto a reler.

O silêncio era quebrado por sapos coaxando e insetos em sua rotina noturna. Um pouco tonto, Enzo tentava se lembrar onde estava quando o apagão aconteceu. Em um segundo, estava no salão principal conversando com Rowen, e no outro, estava no meio do que parecia uma floresta.

Apertando os olhos, espantou-se com as luzes que surgiam entre as árvores. Quantas velas eram necessárias para clarear a noite daquele jeito?

Fecho o livro e o abraço, apertando-o contra o peito. A inocência do Enzo ao chegar ao nosso mundo era encantadora.

A garçonete sorri, do outro lado do balcão. Escrevi grande parte das minhas histórias neste lugar, e provavelmente devo estar com aquela minha expressão sonhadora, o que costumava render bastante.

Leio mais algumas páginas, envolvida pelo que descrevi. É estranho reler meus livros. Eu me perco entre as palavras como se elas existissem desde muito antes de mim. Há uma carga emocional em meu texto, fruto de tudo o que vivi até chegar até esse momento.

– Mais cappuccino? – a garçonete oferece, substituindo a xícara vazia pela cheia e fumegante.

Pisco os olhos e uma personagem surge em meus pensamentos. Preciso me concentrar para responder. Tudo o que consigo é ter um vislumbre de seus cabelos coloridos: mechas azuis e cor-de-rosa.

– Obrigada – digo e a garçonete se afasta.

Aos poucos, a tarde vai se transformando em noite. Tomo o cappuccino, folheando mais algumas páginas e engasgo ao ler uma cena em que um saco de farinha que Elena usava para fazer uma torta cai sobre sua gata preta. Lola, a gata, corre com as patas cheias de farinha e pula no sofá preto. Exatamente como o que vivi essa manhã.

– Como não me lembrei disso na hora? – sussurro, entre assustada e curiosa com a coincidência.

– Que coisa estranha. – Balanço a cabeça, guardando o livro na bolsa e passando no caixa para pagar a conta.

Decido voltar de metrô, porque ali sempre rende boas histórias e preciso de toda a inspiração possível. Estou distraída, caminhando apressada. Trombo com alguém e seu perfume amadeirado preenche minhas narinas, mas não paro para ver quem é.

Aquela jovem de cabelos coloridos preenche a minha mente e, outra vez, começo uma das minhas conversas com personagens. Isso faz com que eu pareça uma maluca para as pessoas.

Felizmente, não falo em voz alta, afinal estou em público.

– Não sei quem você é e não posso conversar agora. – Caminho apressada, como se pudesse fugir do que está na minha cabeça. – Preciso terminar a história de Elena e Enzo.

– Mas é sobre isso que quero falar. – Ela tenta se materializar na minha frente e quase posso sentir o seu perfume.

– Como assim? – Diminuo o passo, chegando perto da escada que vai me levar ao metrô. – Nunca te vi naquele universo.

Pessoas passam por mim sem entender a mudança brusca de velocidade.

– Você precisa olhar atentamente. Por que silenciou seu coração? Sua voz vem dele. Nós viemos dele!

– Eu não fiz isso. – Nego o que no fundo sei que é verdade.

– Claro que fez. Tem noção de há quanto tempo estou tentando falar com você?

Paro de vez, com a mão no corrimão, no topo da escadaria. Não consigo me lembrar de quando foi a última vez que um personagem me visitou assim com tanta força. Estou tentando contato com Enzo e Elena há meses e nada.

– Mas por que você? O que você tem a ver com a história que preciso escrever? Você faz parte dela?

Ela sorri e seus cabelos mudam do azul para um lilás vibrante.

– Tudo está interligado.

– Como assim? – Meu coração está disparado e tudo ao meu redor fica turvo. Respiro profundamente. Esses surtos de inspiração ainda vão fazer com que eu desmaie no meio da rua.

Ela abre a boca para responder e alguém apressado tromba comigo, quase me fazendo cair. Ah, São Paulo. Se bem que nunca sei se o problema com as trombadas é meu, por não prestar atenção em nada, ou se das pessoas por quererem passar por cima de todos. No susto, tentando não cair e rolar escadaria abaixo, perco a conexão com a personagem.

Pressiono a testa com uma das mãos, tentando ouvir meu coração. Tentando buscar as palavras que sei que vão me salvar, não apenas para cumprir o prazo, mas para continuar vivendo em um mundo que eu não consigo compreender. Um mundo que parece ser tão distante de casa. – Tudo está interligado.


4 Eu era uma menininha sozinha no meu mundinho/ que sonhava com uma pequena casa pra mim/ Eu representava fingindo entre as árvores/ e carregava cascas e folhas para minha casa de hóspedes/ e dava risadas na minha linda cama verde/ Eu tinha um sonho/ De que eu poderia voar/ do mais alto balanço/ Eu tinha um sonho.


Entro em casa apressada e bato a porta.

– Clark, Lois, eu vi uma personagem! – digo aos meus gatos que estão parados em frente à porta. É claro que eles sabiam que eu estava chegando.

Me jogo no sofá e relato a eles o que aconteceu, conforme digito tudo para o Thiago.

Thiago é o único com quem falo sobre esses eventos. Tentei com outras pessoas algumas vezes e em todas o resultado foi horrível. Já o Thiago diz que ver os personagens com tanta intensidade é o que faz com que eles sejam tão reais nos meus livros.

Mais tarde, a caminho do quarto, envio um áudio para ele contando sobre a coincidência de Clark ter feito o mesmo que Lola faz no livro. Talvez tenha sido isso o gatilho que trouxe minha conexão com meus personagens de volta.

Confirmo o almoço para o dia seguinte, antes da reunião com a editora, e conversamos sobre o dia dele e as coisas na agência. Sem que percebamos, a conversa se estende por horas. É sempre assim.

Desço do Uber em frente ao prédio do Conjunto Nacional, na Paulista, onde fica a editora.

Thiago e Silvana, minha editora, me aguardam em frente. Vamos almoçar em um restaurante magnífico que tem ali perto. Ideia da Silvana, que é uma mulher maravilhosa e a melhor editora com quem já trabalhei. Mesmo o prazo estourando, ela tem plena certeza de que vou conseguir entregar. É uma mulher de fé, preciso confessar.

Enquanto caminhamos, não consigo evitar a sensação de estar sendo observada.

– Eva tem andado bem inspiradinha, acho que agora sai – Thiago diz e Silvana vibra.

– Maravilha! Mal posso esperar para você me mandar o arquivo. Já sabe quando vai enviar?

– Em breve – Thiago responde e sorrio, lembrando-me de algo que ele me disse certa vez: “Em caso de pânico por não saber o que dizer, acene e sorria, que eu cuido do resto.” – Conversamos bastante sobre isso nos últimos dias, e logo, logo, a Eva será possuída pelo ritmo ragatanga e vai terminar essa série.

No restaurante, pedimos a comida e Silvana começa a falar sobre o plano de marketing e ações que já estão engatilhadas. Também sobre como os livreiros estão empolgadíssimos, já falando de exposição da série toda na vitrine. Fico feliz por eles se animarem tanto com algo que nem existe ainda.

– É resultado do seu trabalho incrível – Silvana diz, com um sorriso capaz de iluminar o restaurante inteiro.

Comemos, rimos, conversamos e a sensação de que alguém me observa não passou.

Estamos pagando a conta quando uma criança chama a minha atenção, puxando a saia do meu vestido amarelo rodado. Eu olho para baixo. O garotinho não deve ter mais do que 7 anos.

– Você não tem uma história para contar?

Meu corpo inteiro fica arrepiado e o sangue parece congelar. Thiago me olha, também confuso.

Pela expressão dele, sei que se lembrou de uma passagem do livro, quando Elena está no mercado e um garoto se aproxima dela, da mesma forma, para perguntar a mesma coisa.

Thiago e eu não conseguimos dizer nada e Silvana, que estava passando o cartão e não o ouviu, nos salva sem querer: – De quem é esse garotinho lindo? Você o conhece, Eva?

– Não, não conheço. – Acaricio a cabeça do menino, mas preciso sair daqui. – Meu celular está vibrando – minto. – Vou atender lá fora.

Uma mulher se aproxima e o pega pela mão um segundo antes que eu vire as costas. Imagino que seja a mãe.

Não demora muito e o Thiago aparece.

– Mas o que foi aquilo? Já foi estranho aquela história do gato, agora podemos acrescentar isso à listinha.

– Não sei o que dizer.

Silvana sai um pouco depois e nos conta que a mãe do garoto é minha leitora e gostaria de uma foto. Tiro a foto ainda gelada, tentando me convencer de que foi uma coincidência. Talvez a mãe tenha pedido a ele para me perguntar aquilo.


5 Somente um desejo em seu coração/ E qualquer coisa pode acontecer/ Um simples desejo irá te achar/ Onde você estiver/ Somente um desejo em uma estrela/ Pode te segurar para sempre/ E tudo começa/ Com somente um desejo.


A reunião na editora se estendeu por mais duas horas. Depois voltei com meu livro para a cafeteria. Quero terminá-lo antes de tentar escrever a continuação.

A lua cheia iluminava o céu. Não havia estrelas e as nuvens escuras davam à noite uma aparência mística. Um trovão fez com que Elena se sobressaltasse e apertasse o passo pela rua curiosamente vazia. Um pingo, dois pingos, três pingos foram o aviso antes de a tempestade desabar.

Elena pensou em parar, mas o medo a impulsionou para frente. Enquanto decidia se buscava a proteção de um toldo para chamar um táxi ou se corria a pé mesmo para casa, um raio iluminou o céu, seguido de um trovão estrondoso.

Releio a primeira vez que Elena viu Enzo com uma melancolia apertando no peito. A verdade é que me apaixonei por meu personagem tanto quanto minha protagonista e sinto uma falta danada dele, mas não estou pronta para deixá-lo vir e me despedir definitivamente. A cada página da releitura fica evidente o quanto aquela história é importante e como aquele universo é onde eu gostaria de viver.

É meu livro. Descrevi Elena como eu sou: pele clara, olhos castanhos, cabelos loiros e até a mancha de nascença em forma de amendoim que tenho no antebraço direito. Eu quis ser Elena, por isso escolhi um nome com a mesma inicial do meu.

Você está apaixonada por uma fantasia! As palavras do último namorado vieram no meu pensamento.

Fiquei revoltada quando o ouvi dizer um absurdo desses, mas pensando agora, não parecia tão distante da verdade: eu me apaixonei pelo Enzo. Não apenas por ele, mas por todo o universo em que ele vivia.

Ah, se meus leitores soubessem do nível da minha loucura. Rio sozinha e outros clientes da cafeteria me olham. Ai, Senhor, olha aí eu confirmando minha falta de sanidade. Sou um caso perdido…

Volto a ler, ignorando os outros. Sou envolvida pelos personagens de tal modo que não estou mais na cafeteria. Estou nas páginas do livro, vivendo a história que queria para mim. Sendo amada por um homem que não existe na vida real. Os minutos se transformam em horas… Quando me dou conta estou nas últimas páginas do primeiro volume e o pessoal da cafeteria está colocando os bancos sobre as mesas, para começar a limpeza.

Recolho minhas coisas, apressada, pago a conta e deixo o lugar, decidida a apertar o passo até o metrô. O dia anterior rendeu bem, então vamos tentar de novo. Caminho procurando qualquer inspiração. A noite está bem bonita. Mesmo sendo final de outono, a temperatura está muito agradável e o céu estrelado, mas há algo na maneira como o vento se agita que me diz que vai chover. Preciso chegar logo em casa.

As estações do metrô passam uma depois da outra. Observo as pessoas e começo a construir histórias sobre elas. É inevitável. Sei que por trás de qualquer rosto pode haver uma grande história.

Quase perco uma estação, analisando um casal de namorados e criando um livro inteiro sobre como eles podem ter se conhecido.

Desço correndo, subo pelas escadas rolantes, passo a catraca, sigo por mais escadas e saio da estação. O clima de São Paulo é tão maluco que parece que desci em outro país. A lua cheia mal aparece no céu e não há sinal de estrelas. O vento corta gelado. Se eu correr, chego em casa em cinco minutos. Mas estou na metade do caminho quando a chuva desaba.

Aperto a bolsa, esperando que seu conteúdo não molhe, procurando um toldo que obviamente não encontro.

– Ali na esquina – murmuro para mim mesma.

Caminho apressada e quase escorrego várias vezes até conseguir me abrigar sob o toldo.

– É só uma chuva rápida. Já vai parar e vou poder voltar para casa – digo em voz baixa. Não há uma alma na rua. – Bom, pelo menos ninguém vai me achar louca por falar sozinha.

Pego o celular na bolsa e vejo que só tenho três por cento de bateria. Lanço um olhar irônico para o céu.

– É piada isso?

A tempestade não dá trégua e ouço um barulho vindo da rua ao lado. Espio com cuidado. Só me faltava ser assaltada agora.

– Ah, meu Deus! – exclamo e tampo a boca com a mão. Por que fui pensar isso?

De repente, algo acontece muito rápido. Um homem aponta uma arma para outro, que ergue as mãos. O assaltante puxa a bolsa do rapaz com força. Um raio. Um trovão. Assustado, o cara armado dá outro puxão e desequilibra o rapaz, que escorrega e cai, batendo a cabeça com força na guia. Fico congelada até ver o sujeito armado sumir de vista, virando uma esquina.

Não sei o que fazer. Pego o celular para ligar para a polícia e ele apaga de vez. Não há ninguém para ajudar e os segundos se arrastam lentamente…

Então, a garota de cabelos coloridos surge do outro lado da rua, apontando para o rapaz caído, como se quisesse que eu fosse até ele. Isso é hora para uma personagem aparecer?

– Você só pode estar louca. E se o bandido voltar?

A garota revira os olhos e continua insistindo. Apesar de querer fugir dali, não posso deixar um inocente caído sem socorro. Mesmo que quem tenha me convencido a ir até ele seja uma personagem que nem existe e que já desapareceu outra vez.

Um passo depois do outro, morrendo de medo, eu me aproximo. O sujeito está caído de bruços.

Ele é grande e forte, certamente não teria sido derrubado se o outro não estivesse armado.

Eu me abaixo e preciso fazer força para virá-lo devagar. Meu coração para um segundo, tamanha a minha surpresa. A primeira vez que Elena encontrou Enzo se sobrepõe ao que estou vivendo. Assim como ela, me recrimino por, num momento como esse, reparar no quanto o cara à minha frente é lindo. Mas, para mim, o choque é ainda maior porque ele é assustadoramente parecido com meu personagem.

Que coincidência é essa?!

Meu coração está aos solavancos quando o ouço gemer e entreabrir os olhos para me olhar.

– Enzo? – A palavra não é mais do que um sussurro.

Aproximo os dedos, tremendo, e toco a área do ferimento em sua testa. Um filete de sangue se mistura à chuva e ele geme baixinho outra vez antes de segurar minha mão e dizer: – Oi…


6 Eu tenho tanta coisa para dizer/ Mas não posso parar de sentir como se estivesse camuflada/ Uma fortaleza ao redor do meu coração.


Fim da amostra


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