Livro ‘Bagagem’ por Adélia Prado

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Primeiro livro de Adélia Prado, mostra em suas páginas o talento que faria da escritora uma das mais aclamadas poetisas da literatura brasileira. Publicado originalmente em 1976, Bagagem foi lido e recebido com empolgação por Carlos Drummond de Andrade, um dos entusiastas da obra de Adélia e que indicou sua publicação. O livro traz textos repletos de emoções que, para a autora, são inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. O sentido de religiosidade também está presente em grande parte dos poemas, retratando parte da realidade da vida no interior do Brasil. Muitas vezes, Adélia opta por expor conflitos entre o sagrado e o profano, observados a partir de coisas simples da natureza ou até mesmo da leitura de um texto religioso. Os poemas de Bagagem nasceram de um período em que Adélia escrevia incessantemente. “Os poemas praticamente irromperam, apareceram cargas e sobrecargas de poemas…

Editora: ‎Record; 41ª edição (26 fevereiro 2003); Páginas: ‎144 páginas; ISBN-10: ‎ 850106503X; ISBN-13: ‎978-8501065032; ASIN: ‎B09DXBW8C4

Leia trecho do livro

Apesar de escrever sonetos desde os 14 anos, Adélia Prado só publicou seu primeiro livro – ‘Bagagem’, em 1976, aos 40 anos […]. O motivo está na autocrítica que ela faz da sua obra: «Tudo que escrevi até ‘Bagagem’ não têm nenhum valor literário. São coisas que têm importância, para mim, afetiva, de um bom tempo da minha vida.» Lido e recebido com empolgação por Carlos Drummond de Andrade – que indicou a publicação do livro – ‘Bagagem’ foi escrito num entusiasmo de fundação e descoberta. Emoções que, para a autora, são inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas
vezes, do sofrimento. Os poemas também mostram sua profunda  religiosidade, que pode nascer do impacto da leitura de um texto sagrado, de um olhar amorosos sobre um personagem ou da observação das coisas simples da natureza.

Do ponto de vista estilístico, destaca-se a combinação dos contrários, como tristeza e alegria, tanto quanto do lirismo e da ironia. […]

Em Bagagem, os poemas são distribuídos em quatro grandes seções. Essas seções (O modo poético, Um jeito e amor, A sarça ardente – I e II e Alfândega) se configuram segundo um variado mapa existencial, que se divide entre as coordenadas da ‘poesia’, do ‘amor’ e da ‘memória’, além daquela ‘alfândega’, de sentido mais escorregadio mas nem por isso menos sugestivo (pensemos num contraponto com o título do livro). O cotidiano é, sumariamente descrito, o espaço próprio das vivências imediatas, recebendo freqüentemente a carga do trivial, que é a polaridade ‘terrena’ das ofegantes aspirações ao sublime. […]

É a poesia do cotidiano, não do grandiloqüente. Claro que muitos escritores brasileiros já tinham praticado ou pregado a poetização do cotidiano antes dela – dos modernistas a Mário Quintana –, mas em Adélia Prado a transformação do ordinário em extraordinário é soberba, não fosse esse um adjetivo que ela abominaria. A notar, ainda, a sensualidade que ela empresta à religiosidade. […]

A questão do feminino surge na poesia adeliana no modo como ela dá a ler um conjunto de práticas culturalmente marcado, de modo que o sujeito lírico ora com ele se identifica, ora dele se afasta, num movimento pendular entre a tradição e a ruptura, o diálogo com os poetas masculinos e a explicitação de sua diferença, de que o poema ‘Com licença poética’, que inicia Bagagem, é exemplar.

Louvai o Senhor, livro meu irmão, com vossas letras e palavras, com vosso verso e sentido, com vossa capa e forma, com as mãos de todos que vos fizeram existir, louvai o Senhor. 

        Da imitação do “Cântico das criaturas” de São Francisco de Assis, a quem devo a graça deste livro

O MODO POÉTICO

Chorando, chorando, sairão espalhando as sementes.
Cantando, cantando, voltarão trazendo os seus feixes.
Escrito nos salmos

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

GRANDE DESEJO

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro
e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz pra cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.

SENSORIAL

Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo,
mastigo à boca nua e me regalo.
Amor, tem que falar meu bem,
me dar caixa de música de presente,
conhecer vários tons pra uma palavra só.
Espírito, se for de Deus, eu adoro,
se for de homem, eu testo
com meus seis instrumentos.
Fico gostando ou perdôo.
Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.

ORFANDADE

Meu Deus
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.

RESUMO

Gerou os filhos, os netos,
deu à casa o ar de sua graça
e vai morrer de câncer.
O modo como pousa a cabeça para um retrato
é o da que, afinal, aceitou ser dispensável.
Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrição:
1906-1970
SAUDADE DOS SEUS, LEONORA.

CÍRCULO

Na sala de janta da pensão
tinha um jogo de taças roxo-claro,
duas licoeiras grandes e elas em volta,
como duas galinhas com os pintinhos.
Tinha poeira, fumaça e a cor lilás.
Comíamos com fome, era 12 de outubro
e a Rádio Aperecida conclamava os fiéis
a louvar a Mãe de Deus, o que eu fazia
na cidade de Perdões, que não era bonita.
Plausível tudo.
As horas cabendo o dia,
a cristaleira os cristais
— resíduo pra esta memória —
sem uma palavra demais.
foi quando disse e entendi:
cabe no tacho a colher.
se um dia puder,
nem escrevo um livro.

NO MEIO DA NOITE

Acordei meu bem pra lhe contar um sonho:
Sem apoio de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas de um escudo.
Não fosforescia nem cheirava nem eram alvas.
Eram brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro a única visível coisa, o próprio ato de ver.
Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam:
«A ressurreição já esta sendo urdida, os tubérculos
da alegria estão úmidos vão brotar sinos».
Doía como um prazer.
Vendo que não mentia ele falou:
as mulheres são complicadas. Homem é tão singelo.
Eu sou singelo. Fica singela também
Respondi que queria ser singela e na mesma hora,
singela, singela, comecei repetir singela.
A palavra destacava-se novíssima
como as buganvílias do sonho. Me atropelou
— O que foi? — ele disse:
— As buganvílias…
Como nenhum de nós podia ir mais além,
solucei alto e fui chorando, chorando,
até ficar singela a dormir de novo.

MÓDULO DE VERÃO