Livro ‘As Crônicas Marcianas’ por Ray Bradbury

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Publicadas originalmente em revistas de pulp fiction, no final dos anos 1950, nos Estados Unidos, As crônicas marcianas foram reunidas num livro por seu autor, no início dos anos 1960, e interligadas por pequenas costuras narrativas. As crônicas acabaram formando emocionante panorama imaginário da chegada do homem a Marte e da colonização do planeta pela espécie humana. Livro que pode ser visto como um romance fragmentado ou uma seqüência conceitual de contos.

Editora: Biblioteca Azul; 1ª edição (1 novembro 2013); Páginas: 296 páginas; ISBN-13: 978-8525055552; ASIN: B00BWUXPV8

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Biografia do autor: Ray Bradbury nasceu em 192, em Waukegan, Illinois, EUA. De 1941 a 1945, colaborou nas revistas Weird Tales, Amazing Stories, Astounding Science Fiction e outras revistas populares. Em 1946, um de seus trabalhos aparece na seleção do ano, The Best American Short Stories of 1946. Desde então, escreveu pelo menos um conto por semana. Seus livros tornaram-no um dos autores mais lidos não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil, França, Inglaterra, Alemanha, Itália, Argentina e Rússia. Entre suas obras mais conhecidas estão Carnaval Negro, seu primeiro livro, publicado em 1947; Crônicas Marcianas, O Homem Ilustrado, Os Frutos Dourados Do Sol, Outros Contos Do País De Outubro e F De Foguete. Bradbury também escreveu peças teatrais, roteiros cinematográficos, poesias e programas especiais para televisão. Morreu em 6 de junho de 212.

Leia trecho do livro

Ray Douglas Bradbury nasceu em Waukegan, Illinois, Estados Unidos, em 22 de agosto de 1920. O trabalho de seu pai, técnico em instalação de linhas telefônicas, fez a família se deslocar por muitas cidades do país, até se fixar em Los Angeles, Califórnia, em 1934. Bradbury encerrou os estudos formais em 1938, na Los Angeles High School, mas continuou a estudar como autodidata, enquanto trabalhava como jornaleiro. Estreou na literatura com o conto “Hollerbochen’s dilemma”, que surgiu num fanzine de ficção científica entre 1938 e 1939. Sua primeira publicação paga, o conto “Pendulum”, escrito em parceria com Henry Hasse, apareceu em 1941 na revista Super Science Stories. No ano seguinte, escreveu The lake, obra com a qual fixou seu estilo de escrever, mesclando ficção científica, terror e suspense. Em 1946, tinha seu primeiro conto incluído no Best American Short Stories, o que se repetiria em 1948 e 1952. Em 1947, casou-se com Marguerite McClure e publicou o livro de contos de terror Dark carnival. Três anos depois, lançou Crônicas marcianas, coletânea de vinte e seis contos com a qual consolidou sua carreira de escritor de ficção científica. No ano seguinte, quando também recebeu o Benjamin Franklin Award por seus contos, escreveu Uma sombra passou por aqui, adaptado para o cinema por Jack Smight em 1969. O romance Fahrenheit 451, que o consagrou mundialmente, foi lançado em 1953 e filmado em 1966 por Françoís Truffaut.

Atuando como roteirista desde 1953, recebeu o Oscar em 1956 pelo roteiro de Moby Dick, filme estrelado por Gregory Peck e dirigido por John Huston. Foi agraciado ainda com o Aviation/Space Writer’s Association Award pelo melhor artigo sobre o espaço numa revista norte-americana, em 1967, o World Fantasy Award for Lifetime Achievement, em 1977, e o Grand Master Nebula Award (para escritores norte-americanos de ficção científica), em 1988. Em novembro de 2000, a National Book Foundation Medal for Dístinguished Contribution to American Letters concedeu-lhe o National Book Awards.

Ray Bradbury morreu no dia 6 de junho de 2012, aos 91 anos, em Los Angeles, Califórnia.

Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires, Argentina, no dia 24 de agosto de 1899. Ensaísta, ficcionísta, poeta e tradutor, estudou na Europa de 1914 a 1921, publicando seu primeiro livro, Fervor de Buenos Aires (poemas), em 1922. Diretor da Biblioteca Nacional da Argentina de 1955 a 1973, foi professor de literatura inglesa na Universidade de Buenos Aires. Reconhecido como um dos maiores escritores do século XX, faleceu em Genebra, Suíça, no dia 14 de junho de 1986.

Donizete Gaivão é jornalista e publicitário. Publicou seis livros de poesia. Entre eles, Azul navalha (1988), que recebeu o Prêmio apca e foi indicado ao Jabuti, A carne e o tempo (1997), também indicado ao Jabuti, e Mundo mudo (2003), que esteve entre os vinte nomeados para o Prêmio Portugal Telecom.

Rav Bradburv

As crônicas marcianas

tradução:
Ana Ban

apresentação:
Jorge Luis Borges

prefácio:
Donizete Galvão

Apresentação

No segundo século de nossa era, Luciano de Samósata compôs uma História verídica, que encerra, entre outras maravilhas, uma descrição dos selenitas, os quais (segundo o verídico historiador) fiam e cardam os metais e o vidro, tiram e põem os olhos, bebem sumo de ar ou ar espremido; em princípios do século xvi, Ludovico Ariosto imaginou que um paladino descobre na Lua tudo o que se perde na Terra, as lágrimas e os suspiros dos amantes, o tempo desperdiçado no jogo, os projetos inúteis e os anseios insatisfeitos; no século xvii, Kepler redigiu um Somnium astronomicum, que finge ser a transcrição de um livro lido em um sonho, cujas páginas prolixamente revelam a conformação e os hábitos das serpentes da Lua, que durante os ardores do dia abrigam-se em profundas cavernas, saindo ao entardecer. Entre a primeira e a segunda dessas viagens imaginárias há mil e trezentos anos, e entre a segunda e a terceira, uns cem; as duas primeiras são, não obstante, invenções irresponsáveis e livres, e a terceira parece entorpecida por um afã de verossimilhança. A razão é clara. Para Luciano e para Ariosto, uma viagem à Lua era símbolo ou arquétipo do impossível, como os cisnes de plumagem negra para o latino; para Kepler, já era uma possibilidade, como para nós. Pois não foi nessa época que publicou John Wilkins, inventor de uma língua universal, seu Descobrimento de um mundo na Lua, discurso tendente a demonstrar que pode haver outro mundo habitável naquele planeta, com um apêndice intitulado “Discurso sobre a possibilidade de uma travessia”? Nas Noites áticas de Aulo Gélio lê-se que Arquitas, o pitagórico, fabricou uma pomba de madeira que andava pelo ar; Wilkins prediz que um veículo de mecanismo análogo ou parecido nos levará, algum dia, à Lua.

Por seu caráter de antecipação de um futuro possível ou provável, o Somnium astronomicum prefigura, se não me engano, o novo gênero narrativo que os americanos do Norte denominam science-fiction ou scientifiction, e do qual são admirável exemplo estas Crônicas. Seu tema é a conquista e a colonização do planeta. Essa árdua empresa dos homens futuros parece destinada à época, mas Ray Bradbury preferiu (sem se propor, talvez, e por secreta inspiração de seu gênio) um tom elegíaco. Os marcianos, que no início do livro se propor, talvez, e por secreta inspiração de seu gênio) um tom elegíaco. Os marcianos, que no início do livro são espantosos, merecem sua piedade quando a aniquilação os alcança. Vencem os homens, e o autor não se alegra com sua vitória. Anuncia com tristeza e desengano a futura expansão da linhagem humana sobre o planeta vermelho — que sua profecia nos revela como um deserto de vaga areia azul, com ruínas de cidades axadrezadas e ocasos amarelos e antigos barcos para andar pela areia.

Outros autores estampam uma data vindoura, e não acreditamos neles, porque sabemos que se trata de uma convenção literária; Bradbury escreve 2004 e sentimos a gravitação, o cansaço, a vasta e vaga acumulação do passado — o dark backward and abysm of Time do verso de Shakespeare. O Renascimento já observou, pela boca de Giordano Bruno e de Bacon, que os verdadeiros antigos somos nós, não os homens do Gênesis ou de Homero.

O que fez esse homem de Illinois, pergunto-me, ao fechar as páginas de seu livro, para que episódios da conquista de outro planeta povoem-me de terror e solidão?

Como podem tocar-me essas fantasias, e de modo tão íntimo? Toda literatura (atrevo-me a responder) é simbólica; há poucas experiências fundamentais, e é indiferente que um escritor, para transmiti-las, recorra ao “fantástico” ou ao “real”, a Macbeth ou a Raskolnikov, à invasão da Bélgica em agosto de 1914 ou a uma invasão de Marte. O que importa o romance, ou o romanesco, da science-fiction? Neste livro de aparência fantasmagórica, Bradbury colocou seus longos domingos vazios, seu tédio americano, sua solidão, como fez Sinclair Lewis em Mam Street.

Talvez “A terceira expedição” seja a história mais alarmante deste volume. Seu horror (suponho) é metafísico; a incerteza sobre a identidade dos hóspedes do capitão John Black insinua incomodamente que tampouco sabemos quem somos nem como é, para Deus, nossa face. Quero, ainda, destacar o episódio intitulado “O marciano”, que encerra uma patética variante do mito de Proteu.
Por volta de 1909, li, com fascinada angústia, no crepúsculo de uma casa grande que já não existe, Os primeiros homens na Lua, de Wells. Em virtude destas Crônicas, de concepção e execução muito diversa, foi-me dado reviver, nos últimos dias do outono de 1954, aqueles deleitáveis terrores.

Ray Bradbury: Crónicas marcianas. Prólogo de J. L. B Buenos Aires, Ediciones Minotauro, 1955

Pós-escrito de 1974
Releio com imprevista admiração os Contos do grotesco e arabesco (1840), de Poe, tão superiores, em conjunto, a cada um dos textos que os compõem. Bradbury é herdeiro da vasta imaginação do mestre, mas não de seu estilo interjetivo e às vezes tremebundo. Lamentavelmente, não podemos dizer o mesmo de Lovecraft.

Jorge Luis Borges

Prefácio

As crônicas marcianas


O que você faria se o lugar em que vive fosse invadido e destruído por um povo estranho? É dessa tensa relação entre conquistado e conquistador, entre o invadido, que precisa usar de todas as armas, suas táticas de guerrilha, para se defender, e o invasor que trata Ray Bradbury em seu fascinante As crônicas marcianas. A nave com as surpreendentes narrativas de Bradbury retorna ao público brasileiro justamente em 2005, época em que os terráqueos estariam fazendo suas expedições para Tyrr, como o planeta é denominado pelos marcianos.

As crônicas marcianas são hoje um clássico da ficção científica. E mantêm, 55 anos depois de publicadas nos Estados Unidos, toda vivacidade, surpresas, climas de terror e de nostalgia. Até mesmo aqueles aspectos do livro que possam soar mais ingênuos em 2005 preservam uma carga poética e urna riqueza de imaginação que tornam o encantamento ainda maior. Os textos mais curtos foram um expediente usado pelo autor para fazer conexões entre as narrativas mais longas e tentar dar unidade a esse diário de conquista. Sobram algumas incongruências que podem se tornar um delicioso jogo de erros para o leitor mais atento.

Literariamente, o próprio Bradbury desenhou sua árvore genealógica em um depoimento. Bradbury se vê como um filho de Julio Verne, sobrinho de H. G. Wells, primo de Edgar Allan Poe e filho de Mary Wollstonnecraft Shelley, a criadora de Frankenstein. Sem contar os heróis Flash Gordon e Buck Rogers, que considera seus irmãos. O resultado não poderia ser outro. Bradbury é um escritor que reúne fantasia e ficção científica, a nostalgia de contos infantis e o terror. Para quem foi jornaleiro e escreveu seus primeiros contos em papel de embrulho, ele chegou longe. Hoje, é um dos principais nomes da ficção científica. Sua obra já rendeu muitos filmes, e As crônicas marcianas mereceram, em 1980, uma minissérie na tv americana, estrelada por Rock Hudson.

As crônicas marcianas foram publicadas inicialmente em revistas de pulp fiction, mas escapam do rótulo redutor. Mais tarde, ele reuniu as 26 narrativas que se cruzam e contam a conquista de Marte pelos homens que começa em 1999 e termina em 2026. Cada uma delas pode ser lida isoladamente. No conjunto, formam uma espécie de diário dessas viagens. Juntar contos para formar uma novela não é muito comum na ficção tradicional, mas trata-se de um recurso bastante utilizado pelos escritores de ficção científica. Um bom exemplo são os romances de Isaac Asimov que, juntos, formam Fundação. Na Inglaterra, essas crônicas receberam o nome Os gafanhotos prateados, metáfora para os foguetes e a praga exterminadora que são os terráqueos para os inteligentes, mas poucos numerosos, habitantes de Marte.

Escritas logo após a Segunda Guerra Mundial, As crônicas marcianas refletem em primeiro lugar o grande medo dos homens de uma guerra atômica que dizime a vida na Terra. O medo da devastação atômica, de uma última e terrível Grande Guerra, é que estimula os terráqueos a conquistar Marte para ali estabelecer suas colônias. Os Estados Unidos vivem então a euforia da pesquisa espacial, as novas tecnologias e sonham, em plena Guerra Fria, ser os primeiros a conquistar o espaço. Como um romântico incorrigível, defensor dos valores humanistas, Bradbury mostra muita desconfiança em para onde o progresso pode conduzir o homem. Teme que o avanço científico leve a humanidade ao caos e à catástrofe. No decorrer das narrativas, são inúmeras as citações de poemas de Byron ou de canções sentimentais americanas, como a revelar a nostalgia de uma ingenuidade perdida após a guerra.

O homem e seu futuro estão no centro dessas narrativas de Bradbury. Ele está mais próximo de um narrador como Edgar Rice Burroughs do que de um visionário cientista contemporâneo. Portanto, não espere aqui o leitor grandes aparatos tecnológicos, novidades cientificas extraordinárias ou monstros alienígenas. Estas informações surgem quase que por acaso quando revela, por exemplo, que por volta de 1999 o homem já descobrira técnicas de rejuvenescimento que tornam possível a um terráqueo de oitenta anos viajar para Marte, que haja uma proliferação em progressão geométrica de foguetes, que a marciana beba fogo elétrico em urna xícara. O homem do futuro de Bradbury, na Terra ou em Marte, depara com os mesmos problemas filosóficos e éticos de sempre. Além do mais delicioso entretenimento, há muito de crítica social de Bradbury em suas fantasias, inclusive ao american way of life e ao clima de Guerra Fria dominante nos anos 1950.

Por isso, ao leitor de hoje é impossível não fazer analogias com o Grande Império Americano atual e suas guerras do século xxi. Bradbury coloca o dedo nas principais feridas da humanidade. O imperialismo, que impõe seus valores e subestima a inteligência e a cultura de outros povos. O racismo, que divide os homens em categorias. O descaso pelo meio ambiente, que leva os habitantes da Terra ao desespero. A censura, que busca reprovar tudo aquilo que não soa correto para o império dominante. Idealista, Bradbury defende nas suas crônicas os valores progressistas. Muitas narrativas surpreendem porque são feitas do ponto de vista dos terráqueos, os conquistadores, que só muito tarde descobrem que caíram em armadilhas dos telepáticos marcianos. Não vale a pena entrar aqui em detalhes desses momentos porque seria estragar a surpresa reservada aos leitores. O que começa como urna narrativa nostálgica, sentimental, como um retorno à casa dos pais ou avós, numa viagem no tempo de volta para 1926, pode ter um final inesperado, como acontece a Hinkston, Lustig e demais tripulantes da terceira expedição a Marte. Repare o leitor como o clima poético, nostálgico e idílico vai cedendo lugar ao mais puro terror nos últimos parágrafos. Primeiro, Bradbury envolve, sem pressa, o leitor em suas fantasias, para depois dar uma rápida e fulminante estocada final.

Em As crônicas marcianas tanto cabem contos de terror, no estilo de Edgar Allan Poe, a quem o autor presta urna homenagem em “Usher ii, como textos em prosa poética na narrativa de “A manhã verde”, onde Benjamin Driscoll planta árvores para que Marte tenha mais oxigênio, e até fábulas impressionantes sobre os costumes humanos, contundentes em suas críticas. Trata-se de um mundo masculino, em que as mulheres desempenham papéis de entediadas donas de casa, clones, projeções alucinatórias. Com toda essa misoginia, não há muito sexo nessas aventuras. Nas primeiras tripulações, só para comprovar a tese, não há mulheres. Em outra, que retrata, no fim do século xx, os Estados Unidos racistas com plantações de algodão, empregados negros servis e enforcamentos noturnos como os da bela canção “Strange Fruir, de Billie Holiday, percebemos que Bradbury conhece mais a psicologia humana e que não é um grande futurólogo. A narrativa “Flutuando no espaço” soa um tanto deslocada do conjunto, pois se trata de um libelo contra o racismo, que pouco tem a ver com as aventuras em Tyrr.

A mais densa e crítica dessas fábulas é a que trata da quarta expedição, realizada em junho de 2001, contada em “… E a Lua continua brilhando”, título retirado de um emocionante poema de Lord Byron, declamado pelo tripulante Spender. Os terráqueos chegam a Marte e esperam grandes festas para comemorar a conquista, na suposição pretensiosa de serem os “primeiros” a chegar. Pensam no orgulho de “lançar latas de leite condensado nos canais marcianos”. O rebelde Spender, logo de início, se dá conta da barbárie que os homens representam para Marte e faz as interrogações mais polêmicas das narrativas. “Como vocês se sentiriam se fossem marcianos e seu território fosse invadido por gente que começasse a destruir tudo?” O capitão Wilder argumenta, em vão, que a intenção não é destruir Marte. Spender, com seu senso crítico aguçado, responde: “Os homens da Terra têm talento para acabar com coisas grandes e belas”.

Essa é a narrativa mais contundente de todas as crônicas. Spender lê os filósofos de Marte, ouve a música, encanta-se com sua requintada arquitetura de cristal. Argumenta sobre como os marcianos conseguiram construir uma civilização em que arte, religião e ciência se harmonizavam. Aqui, Bradbury retrata um planeta Marte perfeito, idealizado, em contrapartida com a Terra, ordinária e confusa. Pela boca de Spender (aliás, nome que lembra o poeta Stephen Spender) diz que eles, os marcianos, “misturaram religião e arte e ciência porque, no fundo, a ciência não passa da investigação de um milagre que não conseguimos explicar, e a arte é uma interpretação desse milagre. Nunca deixaram a ciência esmagar a estética e o belo”. No entanto, o autor não dá detalhes de como se chegou a esse equilibrio. Fica a cargo da imaginação do leitor construí-lo. Há muitas elipses entre uma narrativa e outra.

Spender faz um discurso que é uma crítica cerrada a Darwin e Freud, defende a volta da fé para dar sentido à vida. Mostra para o incrédulo capitão Wilder que as estátuas de animais, vistas como símbolos pagãos, eram na realidade símbolos de Deus e de um povo que entrara em equilíbrio com a natureza. “O homem tinha se tornando homem de mais e animal de menos em Marte, também”, diz em certo momento. Ao contrário dos terráqueos, descobriram isso a tempo de tentar um novo equilíbrio. Spender é o personagem mais intrigante de todas as narrativas porque guarda em si todas as dúvidas e interrogações do homem. Não é apenas mais um tripulante querendo montar uma lanchonete de cachorro-quente em Marte, fato que acontece na narrativa “A baixa estação”.

Embora parte das narrativas envolva discussões desse calibre, vale lembrar que o entretenimento é o grande trunfo de Bradbury. O último conto termina em tom esperançoso, de reconstrução. Mas fica uma dúvida — onde estarão os marcianos? Ainda ativo depois dos oitenta anos, Bradbury diz que a “pessoa jovem dentro de mim atreveu-se a escrever estas histórias para entretê-los”. Suas narrativas têm textura, cheiro, cor, são permeadas de letras de canções e de poemas e, por isso, envoltas em um clima poético. Mostram todo o entusiasmo de um escritor que se embebeu das histórias em quadrinhos, ávido colecionador delas, que devorou as obras de H. Rider Haggard e Robert Louis Stevenson e que, ainda criança, sonhava com as imensas possibilidades da Era Espacial, quando a mais avançada tecnologia ainda se resumia aos telescópios. Por isso, caro terráqueo brasileiro, embarque nos foguetes prateados de Bradbury e se surpreenda com as peripécias do homem em seu confronto com os marcianos. É ficção científica da melhor qualidade. Há mocinhos, vilões, aventureiros e heróis. Uns podem ser tudo isso ao mesmo tempo. É ler para crer.

Donizete Gaivão

As crônicas marcianas

Para minha mulher Marguerite, com todo o meu amor.


“É sempre bom renovar nosso senso de espanto”, disse o filósofo. “As viagens espaciais nos transformam em crianças novamente.”

janeiro de 1999

O verão do foguete

Um minuto antes, era inverno em Ohio, as portas fechadas, as janelas trancadas, as vidraças embaçadas pela geada, pingentes de gelo em todos os telhados, crianças andando de trenó nas colinas, donas de casa parecidas com enormes ursos-negros, andando com dificuldade pelas ruas geladas com seus casacos de pele.

Em seguida, uma longa onda de calor cruzou a cidadezinha. Um maremoto de ar quente; como se alguém tivesse deixado aberta a porta do forno de uma padaria. O calor pulsou entre as casinhas, os arbustos e as crianças. Os pingentes de gelo se soltaram, despedaçaram-se, derreteram. As portas se escancararam. As janelas se abriram. As crianças se livraram das roupas de lã. As donas de casa tiraram as fantasias de urso. A neve se derreteu e revelou os gramados verdes do verão anterior.

O verão do foguete. As palavras correram de boca em boca nas casas abertas e ventiladas. O verão do foguete. O ar quente do deserto redesenhou os cristais de gelo nas janelas, apagando as obras de arte. De repente, os esquis e os trenós tornaram-se inúteis. A neve, que caía do céu gelado sobre a cidade, transformou-se em chuva quente antes de tocar o solo.

O verão do foguete. As pessoas se debruçavam nas varandas gotejantes e observavam o céu avermelhado.

O foguete estava no campo de lançamento, e emitia nuvens quentes de fumaça cor-de-rosa. O foguete ficou lá, naquela manhã fria de inverno, criando verão com cada descarga de seus poderosos propulsores. O foguete trouxe tempo bom, e o verão se instalou por sobre os campos por um breve momento…

fevereiro de 1999

Ylla

No planeta Marte, à margem de um mar morto, havia uma casa com pilastras de cristal, e a cada manhã era possível ver a senhora K saboreando os frutos dourados que cresciam das paredes de cristal, ou limpando a casa com punhados de poeira magnética que se grudava à sujeira e se dispersava depois no vento morno. À tarde, quando o mar fossilizado ficava quente e imóvel, as videiras se enrijeciam no quintal e a pequena e distante cidade marciana de ossos se fechava toda, sem ninguém porta afora, era possível ver o próprio senhor K em sua sala, lendo um livro de metal com hieróglifos em relevo sobre os quais passava a mão, como se toca uma harpa. E do livro, à medida que seus dedos o percorriam, cantava uma voz, uma voz antiga e suave, que contava histórias de quando o mar banhava o litoral com um vapor vermelho e os homens punham em combate nuvens de insetos de metal e de aranhas elétricas.

O senhor e a senhora K moravam nas proximidades do mar morto havia vinte anos, e seus ancestrais tinham morado na mesma casa, que, como um girassol, se virava acompanhando o sol por dez séculos.

O senhor e a senhora K não eram velhos. Tinham a pele clara e amarronzada dos autênticos marcianos, os olhos de moeda amarelos, a voz suave e musical. No passado, gostavam de pintar quadros com fogo químico, nadar nos canais nas estações em que as videiras os enchiam de licores esverdeados e conversar até o amanhecer ao lado dos retratos azuis fosforescentes na sala de estar.
Agora não eram felizes.

Naquela manhã, a senhora K ficou parada entre as pilastras, escutando o calor das areias do deserto derretê-las em cera amarela, aparentemente escorrendo para o horizonte.

Alguma coisa estava prestes a acontecer.

Observava o céu azul de Marte como se a qualquer momento ele se apertasse, contraísse e expelisse algo brilhante e milagroso sobre a areia.

Nada aconteceu.

Cansada de esperar, caminhou através das pilastras enevoadas. Uma chuva suave começou a derramar do alto, refrescava o ar ressecado e caía com suavidade sobre sua pele. Nos dias quentes, era como caminhar dentro de um riacho. O assoalho da casa brilhava com os filetes de água refrescante. À distância, ouvia o marido tocando seu livro em ritmo constante, os dedos nunca se cansavam das antigas canções. Em silêncio, desejou que algum dia ele tornasse a abraçá-la e a tocá-la como uma harpa, por tanto tempo quanto dedicava a seus livros incríveis.

Mas não. Ela sacudiu a cabeça, deu de ombros de modo imperceptível e complacente. Suas pálpebras se fecharam suavemente sobre os olhos dourados. O casamento deixava as pessoas velhas e acomodadas, apesar de jovens.

Recostou-se em uma cadeira que se moldava a seu corpo, mesmo em movimento. Apertou com força os olhos, nervosa.

O sonho veio.

Os dedos castanhos tremeram, ergueram-se, agarraram o ar. No instante seguinte, endireitou-se assustada, arfando.

Deu uma olhada rápida a sua volta, como se imaginasse alguém ali na sua frente. Pareceu decepcionada: o espaço entre as pilastras estava vazio.

O marido surgiu em uma porta triangular.

— Você chamou? — perguntou, irritado.
— Não! — exclamou.

— Achei que ouvi você gritar.
— É mesmo? Eu estava quase dormindo e tive um sonho!
— Durante o dia? Não é seu costume.
Ela continuava sentada, como se tivesse sido esbofeteada pelo sonho.
— Estranho, muito estranho — murmurou. — O sonho.
— Ah? — Estava bem claro que ele queria voltar ao livro.
— Sonhei com um homem.
— Um homem?
— Um homem alto, de um metro e oitenta e cinco.
— Que absurdo. Um gigante deformado.
— Mas é que ele… — foi procurando as palavras — parecia normal. Apesar de ser tão alto. E tinha… ah, sei que você vai achar uma bobagem, mas ele tinha olhos azuis!
— Olhos azuis! Deuses! — exclamou o senhor K. O que mais você sonhou? Será que seu cabelo era preto?
— Como foi que você adivinhou? — Ela estava animada.
— Escolhi a cor mais improvável — respondeu com frieza.
— Mas era preto mesmo! — ela disse. — E a pele era muito branca; ele era mesmo muito fora do comum! Usava um uniforme muito estranho quando desceu do céu e conversou, simpático, comigo. — Sorriu.
— Desceu do céu; quanto absurdo!
— Ele chegou em uma coisa de metal que brilhava ao sol — ela se lembrou. Fechou os olhos para evocá-lo mais uma vez. — Sonhei que havia alguma coisa no céu que brilhava como uma moeda atirada ao ar, que de repente ficou grande e desceu com suavidade: uma nave prateada e comprida, arredondada e estranha. Uma porta se abriu na lateral do objeto prateado e aquele homem alto saiu.
— Se você trabalhasse mais, não teria sonhos tolos como este.
— Mas gostei bastante dele ela respondeu, recostando-se. Nunca imaginei ter tanta imaginação. Cabelos pretos, olhos azuis e pele branca! Que homem estranho e, mesmo assim… bem bonito.

— Quem lhe dera.
— Você não está sendo gentil. Não pensei nele de propósito: simplesmente apareceu na minha mente enquanto eu cochilava. Nem parecia um sonho. Foi tão inesperado e diferente… Ele olhou para mim e disse: “Venho do terceiro planeta a bordo de minha nave. Meu nome é Nathaniel York…”.
— Que nome idiota, isso não é nome — reclamou o marido.
— Claro que é idiota, porque é um sonho — ela explicou, amável. E ele ainda disse: “Esta é a primeira viagem através do espaço. Somos apenas dois na nave, eu e meu amigo Bert”.
— Outro nome idiota.
— Ele acrescentou: “Viemos de uma cidade na Terra; assim se chama nosso planeta” — prosseguiu a senhora K. — Foi o que disse, Terra, esse o nome que mencionou. E falou em outra língua. Mas, de algum modo, o compreendi com minha mente. Creio que foi telepatia.

O senhor K virou-se para sair. Ela o deteve dizendo:
— Yll? — chamou baixinho. Alguma vez você já pensou se… se existem pessoas vivendo no terceiro planeta?
— O terceiro planeta é incapaz de sustentar vida — afirmou o marido, paciente. Nossos cientistas disseram que há oxigênio demais naquela atmosfera.
— Mas não seria fascinante se existissem pessoas? E se viajassem pelo espaço usando alguma espécie de nave?
— Ora, Ylla, você sabe que detesto esses seus choramingos emocionais. Vamos retomar o trabalho?

O dia já avançava quando ela começou a cantar enquanto se movimentava entre as pilastras sussurrantes de chuva. Cantou e cantou repetidas vezes.

— Que música é essa? o marido irrompeu, sentando-se à mesa de fogo.
— Não sei. — Ela ergueu os olhos, surpresa consigo mesma. Incrédula, colocou a mão na boca. O sol estava se pondo. A casa se fechava, como uma flor gigante, à medida que a luz ia definhando. O vento soprou por entre as pilastras; a brilhante superfície de lava prateada da mesa de fogo borbulhou. O vento desgrenhou seu cabelo cor de brasa, sussurrando suavemente em seus ouvidos. Ela ficou lá em silêncio, com os olhos fixos na enorme extensão amarelada do leito do mar, como se estivesse se lembrando de algo, os olhos amarelos plácidos e úmidos. — Drink to me only with thine eyes, and I will pledge with mine — cantarolou suave, bem devagar. — Or leave a kiss within the cup, and I’ll not look for wine — murmurou, movendo as mãos pelo vento com muita leveza, os olhos fechados. Terminou a canção.
Era muito linda.
— Nunca tinha ouvido esta música. É sua? — ele quis saber, fitando-a atentamente. — Não. Sim. Não, para falar a verdade, não sei! — hesitou, nervosa. — Nem sei o que estas palavras querem dizer; são em outra língua!
— Que língua?
Entorpecida, foi largando pedacinhos de carne na lava fervente.
— Não sei. — Tirou a carne um instante depois, cozida, arranjada em um prato para ele. — É só uma maluquice que inventei, acho. Não sei por quê.

Ele não disse nada. Ficou observando enquanto ela mergulhava os pedaços de carne na superfície de fogo que chiava. O sol tinha se posto. Lenta, muito lentamente, a noite caiu e preencheu a sala, engolindo as pilastras e os dois, como um vinho escuro derramado do teto. Apenas o brilho prateado da lava iluminava os rostos.

Ela cantarolou a estranha canção mais uma vez.

Na mesma hora, ele se levantou da cadeira de um salto e saiu da sala, irritado.

Mais tarde, sozinho, terminou de jantar.
Quando acordou, espreguiçou-se, olhou para ela e sugeriu, bocejando:
— Vamos levar os pássaros de fogo à cidade hoje para nos divertir um pouco. — Você está falando sério? ela perguntou. — Você está se sentindo bem?
— Por que o espanto?
— Faz seis meses que não saímos!
— Acho que é uma boa ideia.
— De repente, você ficou todo solícito — ela disse.
— Não fale assim — ele retrucou, irritado. — Você quer ir ou não?

Ela olhou para o deserto pálido. As luas gêmeas brancas estavam nascendo. Água fria escorria suavemente em volta de seus pés. Ela começou a tremer um pouquinho. Queria muito ficar ali sentada, quieta, sem fazer barulho, sem se mexer até que aquela coisa acontecesse, aquela coisa por que tinha esperado o dia inteiro, aquela coisa que não poderia acontecer, mas quem sabe? Uma canção passou por sua mente.
— Eu… — Vai lhe fazer bem ele insistiu. — Vamos lá.
— Estou cansada — disse. — Quem sabe outra noite?
— Aqui está o seu lenço. — Entregou-lhe uma ampola. — Faz meses que não vamos a lugar nenhum.
— Mas você vai duas vezes por semana para a cidade de Xi. — Ela não queria encará-lo.
— Negócios respondeu.
— Ah? — Sussurrou para si mesma.
Um líquido saiu da ampola e se transformou em uma névoa azul que ondulava ao redor do pescoço dela.

Os pássaros de fogo esperavam, brilhando como brasas sobre as areias frescas e fofas. A liteira branca balançava ao sabor do vento noturno, farfalhando de leve, amarrada aos pássaros com mil fitinhas verdes.

Ylla se recostou na liteira e, com uma palavra do marido, os pássaros se impulsionaram, ardentes, em direção ao céu escuro. As fitas se retesaram, a liteira se ergueu. A areia deslizava por baixo deles uivando, colinas azuis passavam uma depois da outra, deixando a casa, as pilastras chuvosas, as flores enjauladas, os livros cantantes, os riachos gorgolejantes do assoalho para trás. Ela não olhava para o marido. Ouvia quando ele gritava com os pássaros, que iam subindo cada vez mais, igual a dez mil faíscas ardentes, tantos fogos de artifício vermelho-amarelados no céu, puxando a liteira como se fosse uma pétala de flor, queimando através do vento.

Ela não viu as cidades mortas, antigas, quadriculadas, que deslizavam lá embaixo, os velhos canais cheios de solidão e sonhos. Eles voaram como uma sombra da lua, como uma tocha queimando, passando por rios e lagos ressecados.

Ela só olhava para o céu.
O marido falou.
Ela olhava para o céu.
— Você ouviu o que eu disse?
— O quê?
Ele suspirou.
— Você devia prestar atenção.

— Eu estava pensando.
— Nunca achei que você fosse amante da natureza, mas parece que está muito interessada no céu hoje — ele disse.
— Está muito bonito.
— Que tal — disse o marido, lentamente — ligar para Hulle à noite? Queria conversar com ele a respeito de passarmos um tempo, ah, só uma semana, mais ou menos, nas montanhas Azuis. E só uma ideia…
— As montanhas Azuis! — Ela se segurou na beirada da liteira com uma mão e virou-se de supetão para ele.
— Foi só uma sugestão.
— Quando é que você quer ir? ela perguntou, tremendo.
— Achei que poderíamos sair amanhã pela manhã. Ir cedo e tudo o mais – disse, como quem não quer nada.
— Mas nunca vamos nesta época do ano, parece muito cedo!
— Achei que só desta vez… — Ele sorriu. — Vai ser bom passar um tempo fora. Ter um pouco de paz e sossego. Sabe como é. Você não tem outra coisa programada, tem? Vamos, não vamos?
Ela respirou fundo, esperou, e então respondeu:
— Não.
— O quê? — O grito dele assustou os pássaros. A liteira balançou.
— Não — ela disse, com firmeza. — Está decidido. Eu não vou.
Ele a encarou. Não se falaram mais depois. Ela virou para o outro lado. Os pássaros continuavam a voar, dez mil tições pelo vento.

Ao amanhecer, o sol, através das pilastras de cristal, derreteu a névoa que sustentava Ylla enquanto dormia. Ela tinha ficado flutuando a noite toda sobre o assoalho, protegida pelo tapete macio de neblina que brotou das paredes quando ela se deitou para descansar. Dormiu a noite inteira naquele rio silencioso, como um barco sobre a maré calma. Agora a névoa se dissipava, e o nível de neblina foi baixando até ela ser depositada no porto do despertar.

Abriu os olhos.

O marido estava em pé ao seu lado. Parecia estar ali havia horas, observando. Ela não sabia por quê, mas não conseguia olhá-lo nos olhos.

— Você andou sonhando de novo! — ele disse. — Falou alto e não me deixou dormir. Acho mesmo que você deveria ver um médico.
— Eu vou ficar bem.
— Você falou muito enquanto dormia!
— Falei? — Ela começou a se levantar.
O amanhecer era frio no quarto. Uma luz cinzenta a envolvia.
— O que você sonhou?
Ela teve de pensar um instante para conseguir lembrar.
— A nave. Ela veio do céu de novo, pousou, e o homem alto saiu de dentro dela e falou comigo, contando piadas, rindo. Foi agradável.
O senhor K tocou em uma pilastra. Jorros de água morna se ergueram, fumegando; o frio desapareceu do quarto. O rosto do senhor K estava impassível.
— E então — ela disse —, aquele homem, que disse ter um nome estranho, Nathaniel York, disse que eu era bonita e… e me beijou.
— Ah! — exclamou o marido, virando-se com violência, o maxilar apertado com força.
— Foi só um sonho — disse, divertida.
— Guarde seus sonhos tolos de mulherzinha para si!
— Você está agindo como criança. — Ela voltou a se deitar sobre o pouco que sobrava da névoa química. Depois de um momento, começou a rir baixinho. — Lembrei de mais uma coisa do sonho — confessou.

— E o que é que foi, o que é que foi? — ele gritou.
— Yll, como você é mal-humorado.
— Fale! — ele exigiu. — Você não pode esconder nada de mim! – O rosto dele estava sombrio e rígido enquanto a olhava de cima.
— Nunca o vi assim — ela disse, meio chocada, meio divertida. — Só aconteceu que esse tal de Nathaniel York me disse… bom, ele disse que ia me levar para a nave, para o céu, e me levar até o planeta dele. Foi mesmo muito ridículo.
— Ridículo, no mínimo! — ele quase berrou. — Você tinha de ter ouvido a si mesma, jogando-se para cima dele, conversando com ele, cantando com ele, oh deuses, a noite toda; você tinha de ter se ouvido!
— Yll!
— Yll, fale mais baixo.
— Meu tom de voz que se dane! — Ele se inclinou por cima dela de supetão. — E nesse sonho aí agarrou o pulso dela —, por acaso a nave pousou no vale Verde, pousou? Responda!
— Foi mesmo…
— E pousou hoje à tarde, não foi? — ele não a soltava.
— Sim, acho que sim, é, mas não passa de um sonho!
— Bom — ele largou a mão dela com rudeza. — Tomara que você esteja falando a verdade! Ouvi cada palavra que você disse no sonho. Você mencionou o vale e o horário. — Ofegante, ele saiu caminhando por entre as pilastras como um homem cego por um raio.

Lentamente, sua respiração foi voltando ao normal. Ela o encarou como se ele estivesse louco. Afinal, se levantou e foi até ele.

— Yll — sussurrou.
— Está tudo bem.
— Você está doente.

— Não. — Forçou um sorriso cansado. — Foi só uma criancice. Perdoe-me, querida. —Ele tocou-a de um modo desajeitado. — Ando trabalhando demais ultimamente.

— Você estava exaltado demais.
— Agora estou bem. Ótimo — suspirou. — Vamos esquecer. Sabe, ontem ouvi uma piada sobre Uel, e queria contar para você. O que você acha de preparar o café da manhã, eu conto a piada, e a gente não fala mais deste assunto?
— Foi só um sonho.
— Claro que sim. — Beijou o rosto dela de urna maneira mecânica. — Só um sonho.

Ao meio-dia, o sol estava alto e quente e as montanhas bruxuleavam à distância.
— Você vai para a cidade? — perguntou Ylla.
— A cidade? — ele ergueu o cenho um pouco.
— Hoje é o dia que você sempre vai. — Ajustou uma jaula de flor em cima do pedestal. As flores se agitaram, abrindo as bocas amarelas e famintas.

Ele fechou o livro.

— Não. Está quente demais, e já ficou tarde.
— Ah. — Ela terminou a tarefa e se dirigiu para a porta. — Bom, eu volto logo. — Espere! Aonde você vai?

Capítulo continua…


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