Livro ‘O Homem que Aprendeu o Brasil’ por Ana Cecilia Impellizieri Martins

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O retrato de um intelectual húngaro que marcou para sempre a cultura brasileira. Europa, 1940. Milhões de judeus estão condenados. Não há saída: o resto do mundo não os quer. Nada de asilo, vistos. Para a maioria, a morte é certa. Brasil 1941. Um jovem intelectual judeu, Paulo Rónai, que deixou a Hungria no fim do ano anterior, chega à segurança do Brasil. Não vem clandestinamente, com documentos adulterados e nome falso. Vem com o impossível visto legalmente obtido. Como o conseguiu? A resposta é tão inusitada quanto toda sua vida e carreira, rastreadas passo a passo e narradas com grande elegância por Ana Cecilia Impellizieri Martins nesta biografia pioneira e necessária. Inacreditavelmente, o que valeu a Rónai o salvo-conduto foi aprender português sozinho em Budapeste e publicar, às vésperas da Segunda Guerra, uma antologia de poesia brasileira que reunia Bandeira, Cecília Meirelles…

Páginas: 384 páginas; Editora: Todavia; Edição: 1 (16 de janeiro de 2020); ISBN-10: 6580309814; ISBN-13: 978-6580309818; ASIN: B082VKRMHK

Leia trecho do livro

Para Nora e Gilda (in memoriam), mulheres contra a Babel

Eu sei que é por causa de um favor muito singular do destino que, enquanto tantos irmãos estão sofrendo e morrendo, ele me permitiu viver em um país hospitaleiro e amável, em condições propícias. Assim, eu tenho sempre tentado não abusar dele — e, desde que eu estou aqui, eu não paro de trabalhar: trabalho para merecer meu destino.

Paulo Rónai, 1944

O que fez Pál Rónai ser Paulo Rónai?

Muitas vezes uma certa simplificação da história e a cristalização de versões resumidas de acontecimentos acabam ocultando pequenos eventos, detalhes biográficos e de personalidade que, juntos, são capazes de fornecer a verdadeira chave de entendimento de uma trajetória pessoal. Esse me parece ter sido o caso de Paulo Rónai, sobretudo no que diz respeito à leitura usual de seu percurso da Hungria para o Brasil e do consequente processo de integração ao país. Sua chegada é comumente explicada como fruto da publicação em Budapeste, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, de uma antologia de poesia brasileira, o que teria lhe garantido, em pouco tempo, a obtenção de um visto brasileiro por intervenção do diplomata Ribeiro Couto e um convite oficial do Ministério das Relações Exteriores para uma temporada no Brasil. Embora sejam fatos corretos, sozinhos eles reduzem mais do que explicam esse percurso biográfico e o que dele resultou.

Paulo Rónai vem sendo lembrado no campo da história cultural brasileira sobretudo por seu trabalho como tradutor, o que pode ser explicado pelos grandes projetos que empreendeu nessa área, como a coordenação da tradução de toda A comédia humana, de Balzac, e a organização, ao lado de seu bom amigo Aurélio Buarque de Holanda, de Mar de histórias, uma vertiginosa antologia do conto mundial feita ao longo de quatro décadas e publicada em diversas edições.

Foi também por meio de seus textos veiculados na imprensa que Rónai acabou ocupando lugar de destaque no meio literário nacional e se aproximando de personagens centrais da nossa Nenhum resultado foi encontrado para literatura. Vale lembrar que, como crítico, Paulo foi pioneiro na divulgação e análise da obra de notáveis autores nacionais, como Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa. Tornou-se interlocutor e amigo de todos eles. Estava inserido profundamente no meio editorial brasileiro, era admirado por escritores e tradutores, professor respeitado, e consolidou uma admirável carreira no país.

Diante de todo esse quadro, não parecia que essa impressionante integração ao Brasil tivesse sido um favor do destino ou apenas obra de um gênio; e um exame mais atento esclarecia que se tratava, sobretudo, do resultado do trabalho árduo de um homem determinado e inegavelmente capaz tanto por suas virtudes inerentes como também por uma formação ampla de filólogo, tradutor, professor, humanista lato sensu. Mas foi como um curioso, quase exótico, estudioso de português, que o jovem judeu húngaro foi recebido no Rio de Janeiro, ao desembarcar sozinho em 1941, aos 33 anos de idade. Tinha uma mala, uma máquina de escrever, pouco dinheiro e uma caderneta repleta de nomes e telefones.

Pois o que se esconde, ou não se olha, nesse trajeto é exatamente aquilo que garante conhecer e compreender Paulo Rónai assim como a extraordinária obra que edificou nesse movimento de assimilação no e do país. Eis a contribuição que este livro pretende oferecer ao seguir de perto seu itinerário de engajamento no Brasil com base em um cruzamento de diversas fontes. Uma, em especial, foi decisiva. Informações trazidas por Nora Tausz Rónai, viúva de Paulo e guardiã, ao lado das filhas do casal, Cora e Laura, do acervo de livros e documentos reunidos no sítio Pois É, em Nova Friburgo (RJ), indicaram a existência de pequenos cadernos de Paulo Rónai: seus diários. Um pouco encantada com o arquivo que ele organizou e um tanto afogada nessas dezenas de pastas de cartas, postais e recortes, eu ainda não havia topado com esses caderninhos. Alertada por Nora, por fim os encontrei em uma das visitas à biblioteca de Paulo (a “Brilhoteca”, como indica a placa na entrada), quando abri as pequenas gavetas de uma estante localizada ao fundo de um quarto anexo. Havia ali agendas de bolso e cadernetas cobertas por uma espessa camada de poeira. Ao abrir o primeiro caderno, datado de 1928, instalou-se a decepção: as extensas palavras em húngaro eram absolutamente incompreensíveis para mim. Se o desconhecimento da língua natal de Paulo significou de imediato uma desvantagem — e, por vezes, também uma limitação para esta empreitada —, logo ela seria contornada. Por ter sido um homem “contra Babel”, Paulo havia optado por escrever sua vida em vários idiomas, a maior parte em francês e português.

Foi na língua de Balzac, sua paixão, que Paulo Rónai registrou seu cotidiano de 1928, marco inicial deste trabalho, a 1992, ano de sua morte, com uma letra miúda e escrita com muitas abreviações. A exceção foram os primeiros meses de 1928 e os anos de 1945 e 1946, em que, marcado pela morte da primeira mulher e do pai, pelo desaparecimento do irmão caçula e pela visão de uma Hungria mais uma vez devastada pela guerra, Paulo buscou refúgio no idioma natal no ambiente íntimo de sua escrita diária. Seu abrigo temporário.

Desse modo, os pequenos diários — por vezes (ou anos) mínimas agendas — surgiram como um convite à reconstrução desse perfil biográfico de Paulo Rónai desde os tempos de juventude entre Budapeste e Paris — quando ainda era Pál, seu nome em sua língua natal —, permitindo um mapeamento de suas leituras, seu circuito de trabalho e sociabilidade, assim como os contornos de sua formação e as perspectivas mais íntimas.

Paulo não tratava de temas pessoais em sua produção ensaística. Dessa maneira, é também por meio desses registros capazes de recompor seus ambientes que se tem a dimensão da luta árdua que empreendeu para se salvar, através de numerosas tentativas de articulação com instituições, diplomatas e intelectuais de diversos países, imprensa local e estrangeira, encontrando no Brasil uma alternativa mais promissora. Do momento em que percebe a necessidade de escapar da Hungria — a partir do início de 1938, sentindo a hostilidade crescente contra os judeus — até sua chegada ao país passaram-se cerca de dois anos, período em que viveu em extrema aflição, com medo e privações, sobretudo nos dias em que esteve confinado no campo de trabalho numa ilha do Danúbio no início do conflito mundial.

Nos primeiros tempos no Brasil, sua busca por integração foi intensa, e a descrição mais detalhada de cada dia e de cada personagem que se juntava à sua rede de trabalho e afeto é como um fio nessa costura à qual Paulo se dedica para se estabelecer profissional e existencialmente na nova pátria.

Quando a integração, a meu ver, se realizou plenamente, os detalhes cotidianos já não representam informação de mesmo peso, e os diários, dessa forma, possuem menos relevância. Às vésperas de Paulo Rónai completar vinte anos de Brasil, as abordagens de ordem temática servem melhor ao objetivo de focalizar o caminho de seu abrasileiramento. Para isso, eventos como as publicações de seus livros de ensaios, o reconhecimento de seu papel no meio literário e sua interlocução com escritores, destacando a relação com Guimarães Rosa, são abordados como índices inegáveis dessa admirável inserção no ambiente cultural e espiritual brasileiro.

Dois momentos são entendidos como a marca de conclusão desse processo de fixação no país: a construção do sítio Pois É, a pátria pequena e definitiva de Paulo, como definiu seu amigo Carlos Drummond de Andrade, e o reencontro com a Hungria em 1964, quando então reconhece que seu eixo de gravidade não estava mais na Europa. Paulo sentia-se brasileiro. Sua casa estava solidamente fincada na montanha de uma pequena cidade no Rio de Janeiro.

Nora Rónai, companheira de Paulo por quatro décadas, aparou todas as arestas de entendimento sobre eventos e temas impossíveis de esclarecer em outro lugar senão em sua — prodigiosa — memória. Por essa razão, sem Nora este livro não seria possível. Viajamos juntas algumas vezes para o sítio Pois É em Nova Friburgo e nos encontramos em várias outras ocasiões, nas quais ela iluminou, com imensa generosidade, diversos aspectos da pesquisa.

Foi Nora quem usou uma metáfora tão acertada para resumir a abordagem pretendida por esta investigação: quem admira uma pérola, na maioria das vezes, não se dá conta do tempo e do processo necessários para que ela viesse a se tornar uma pérola. A pergunta que este livro tenta responder vai na mesma direção: “O que fez Pál Rónai ser Paulo Rónai?”.

Para isso, acompanhamos seu percurso sem pular os episódios mais difíceis e menores, uma vez que a marcha de sua vida é o que possibilita a compreensão do personagem, seja como intelectual humanista, seja como homem empenhado em sobreviver. E tanto para sobreviver como para merecer seu destino — diferentemente de muitos de seus amigos escritores, professores e também de sua primeira mulher e de sua primeira sogra, todos executados pela fúria antissemita de Adolf Hitler —, Paulo quis construir uma vida de trabalho. Essa determinação resultou, para sorte nossa, em uma produção de fronteiras largas que promoveu o diálogo do Brasil com outras culturas — línguas e literaturas —, a defesa dos valores humanistas e a confiança no mérito como caminho legítimo para um projeto de vida bem-sucedido.

No itinerário de Paulo Rónai, biografia e obra caminham em um mesmo movimento contra Babel.

1.
Notas de um amante das letras

Rónai Pál Budapest V. Alkotmány U., 12.
1º de janeiro de 1928

Com a letra mínima, curvilínea, o jovem Pál anota em tinta preta a primeira página de seu diário, uma agenda de capa de couro preta, folhas pautadas com as laterais douradas, medindo sete por dez centímetros, para acomodar intimamente no bolso da calça ou no paletó de inverno. Fazia frio em Budapeste. A temperatura chegara a − 13ºC naquele inverno.

No alto da página de 1º de janeiro, sublinhou seu nome. Embaixo, escreveu bölcsészhallgató, para indicar sua ocupação no momento: estudante da faculdade de filosofia. Ao lado, anotou seu endereço: Budapeste, Quinto Distrito, Alkotmány utca, 12 (rua da Constituição, 12), quarta escadaria, primeiro andar, apartamento 10. Ali, em um prédio imponente de estilo eclético, construção típica da virada do século, Paulo, nascido em 13 de abril de 1907, morava com os pais, Miksa Rónai e Gisela Lövi Rónai, e os cinco irmãos mais novos: Clara, Jorge, as gêmeas Eva e Catarina, e o caçula Francisco. [1] No fim da rua larga com traçado de avenida, voltada para o rio Danúbio, avistava-se o Parlamento húngaro, construído entre 1885 e 1902, apenas cinco anos antes de seu nascimento. O edifício se impunha em agigantado estilo neogótico aos moldes do Parlamento inglês de Westminster, fundindo ainda referências magiar medieval, renascentista francesa e neobarroca. [2]

O número 12 da Alkotmány utca achava-se solidamente fincado a menos de cinco minutos a pé do imenso Danúbio, que cortava a cidade entre Buda, a parte mais antiga — com suas colinas, banhos turcos, igrejas, palacetes e o próprio Castelo Real —, e Peste, mais jovem e densa, com inúmeros edifícios residenciais, lojas, clubes, restaurantes e hotéis. Em Peste, as construções em sua maioria datavam do período entre 1810 e 1850, exibindo orgulhosas seus traços neoclássicos. Ali morava grande parte dos judeus húngaros, distribuídos nos diferentes distritos (correspondentes a grandes bairros) e concentrados principalmente em áreas como o Segundo Distrito e os distritos Thereza e Elizabeth, que levavam os nomes das rainhas dos Habsburgo — marca viva dos tempos áureos do Império Austro-Húngaro do qual Budapeste, ao lado de Viena, era capital gêmea, desde 1867 ao fim da Primeira Guerra Mundial.

No Quinto Distrito, Lipótváros, havia uma série de prédios públicos, muitos dos quais localizados no entorno da grande praça Szabadság (Szabadság Ter.), além de escolas e alguns cafés. Verdadeiros patrimônios culturais da cidade, os cafés [3] de Budapeste reuniam, desde o começo do século XX , quando contabilizavam mais de seiscentas casas, toda sorte de intelectuais, artistas, políticos. Eram, ainda, ponto de encontro de universitários e jovens com aspirações intelectuais, funcionando como uma espécie de academia paralela, e reforçando a formação de seus jovens frequentadores em matérias como sociabilidade, conversação intelectual e conhecimento da produção artística e literária das grandes figuras do período que frequentavam igualmente esse circuito. Em 1928, os cafés viviam sua época áurea, que se estenderia até 1940, embora desde o começo do século já se espalhassem pela capital e ostentassem essa mesma reputação. Como se sabia, “toda pessoa inteligente tinha passado uma parte de sua juventude na cafeteria […] sem o que a educação de um rapaz seria imperfeita e incompleta”. [4]

Eram nesses estabelecimentos localizados em toda a Budapeste e nos dois lados do Danúbio que Paulo se encontrava com amigos da faculdade, professores e poetas. Aos vinte anos, 1,64 metro de altura, ar sóbrio, postura sempre contida, Paulo já era um apaixonado por poesia e idiomas. Arriscara alguns versos ainda no ginásio (entre 1917 e 1925 na instituição pública Bérzsenyi Dániel, a menos de três quilômetros de sua casa), publicando poemas de sua autoria no jornal escolar. Sua primeira tradução foi feita nessa época: apresentou ao grêmio literário do colégio sua versão húngara de “A minha mãe”, do poeta alemão Heinrich Heine, [5] autor que adorava antes de se encantar com os latinos. Quando ingressou na Faculdade de Filosofia da Universidade Pázmany Péter, [6] nos cursos de filologia e línguas neolatinas, Paulo já trabalhava como tradutor. E a partir de 1926, aos dezenove anos, dedicou-se à tradução de poesia latina, vertendo para o húngaro poemas de Virgílio, Horácio, Catulo, entre outros clássicos, publicados sobretudo na revista Új Idök, de nome sugestivo: “Tempos Novos”.

No começo, a gramática me assustou; mesmo depois, mais tarde, quando nos faziam ler César, Salústio, Tito Lívio e Cícero, eu partilhava ainda da ojeriza da maioria de meus companheiros de turma. O deslumbramento veio com Virgílio no dia em que logrei escandir sozinho um hexâmetro. Comecei a encontrar prazer quase sensual naqueles versos que, aparentemente iguais, eram de extrema variedade musical; decorava-os, saboreava-os, recitava-os para mim mesmo. Transplantar poesia latina era, aliás, costume de grande tradição no país. [7]

A intimidade de Paulo com o latim era mérito maior de sua educação ginasial, que refletia, na solidez e extensão das áreas do conhecimento estudadas, todo o movimento húngaro de consolidação cultural, educacional e política. A vida nos liceus húngaros era a prática dessa realidade. Ali a formação dos jovens se dava baseada em um currículo exigente, de amplo caráter humanista e transmitido por professores de notável formação intelectual — muitos deles doutores em filosofia, literatura e demais disciplinas, que comumente iniciavam as aulas convocando alunos para a declamação, o que exigia que estivessem sempre muito bem preparados e adotassem rotina de intensa disciplina e estudo. A exigência era imensa, sendo bem ilustrada pelo surpreendente C que o futuro bioquímico e Prêmio Nobel Albert SzentGyörgyi recebera em física e pelo B aplicado a Béla Bartók em composição musical. Assim, desde 1855, durante o governo que determinou escolaridade compulsória até os doze anos, no âmbito das chamadas reformas Thun, [8] os ginásios de Budapeste se firmavam como instituições de excelência, comparados aos melhores da Europa. As universidades não ficariam atrás, acompanhando esse movimento de aprimoramento e expansão. Entre 1892 e 1905 o número de professores universitários dobrou, [9] e praticamente na mesma proporção se incrementou o número de alunos e a qualidade de sua formação.

Na grande maioria dos liceus, o currículo básico compreendia de seis a oito anos de latim, três anos de grego, alto nível de matemática, grande ênfase na história da literatura magiar e da história húngara, além de história grega e romana. [10] Esse mesmo currículo, com matérias variadas e ênfase nos estudos de línguas (no caso do latim, seis aulas semanais durante oito anos), é o que constava na certificação do curso ginasial de Paulo, exemplo bem-acabado da extraordinária conjuntura educacional húngara do início do século XX . O aplicado aluno saberia tirar proveito desse ambiente estimulante — e exigente — não apenas nas carteiras escolares, mas também por toda a Budapeste do começo daquele século, cenário de um movimento de afirmação cultural húngara empreendido por artistas e intelectuais. Chama-se de geração de 1900 a feliz confluência de húngaros brilhantes nascidos nesse arco da virada do século e que atuaram nas mais diferentes áreas.

Pois foi por volta dessa época que, dos ginásios e universidades, dos lares burgueses e das famílias da pequena nobreza dessa então obscura e relativamente pequena nação, uma geração extraordinária de eruditos, cientistas, escritores, pensadores, inventores, filósofos, financistas, faiseurs [empreendedores], pintores, compositores, músicos […] revelou-se no mundo exterior que sabe o nome de muitos deles até hoje. [11]

Entre 1875 e 1905 nasceram na Hungria nada menos que cinco futuros ganhadores do Prêmio Nobel. Além do já citado Albert SzentGyörgyi, os físicos Eugene P. Wigner, Georg Békésy e Dennis Gábor, e o médico Robert Bárány. No campo da literatura, fizeram parte dessa notável geração Endre Ady, Ferenc Molnár, Gyula Krúdy, Dezsö Szabó, Deszö Kosztolányi, grupo ao qual se credita a fundação da moderna literatura magiar. Muitos deles gravitavam em torno da revista Nyugat, que circulou entre 1908 e 1941, veículo seminal para a divulgação e experimentação dessa nova literatura local, e do desejo manifesto dos jovens intelectuais húngaros de se conectar com a Europa. Nyugat é a palavra húngara para Ocidente. A revista alcançou notoriedade internacional. Entre seus principais articulistas estavam os escritores Mihály Babits e Ernö Szép, [12] que absorviam diferentes vertentes das expressões que emergiam na Hungria e se irmanavam na reverência absoluta que o nome de Endre Ady (1877-1919) se tornara em 1906 depois do lançamento de seu livro Novos poemas, cujos versos de abertura surgiam como expressão inaugural de uma nova Hungria: “Abrirei caminho por baixo do Dévény/ Como novas canções para os novos tempos?”.

Dévény era a aldeia a oeste da Hungria mais vizinha à Europa ocidental e por onde o Danúbio penetrava o território húngaro. Ady era o retrato de uma Hungria desejosa de se libertar do atraso social e da estagnação intelectual, [13] para estar conectada ao mundo. Poucas vezes na história um poeta causou tamanho impacto como Ady naquele momento em sua terra natal. Tornou-se de imediato uma importante referência intelectual para a nação, sobretudo para aqueles que, como ele, queriam se desvencilhar das louvações fáceis e românticas de uma Hungria de belezas e tradições passadistas, arcaica e muitas vezes opressora. Sua fúria lírica clamava pela reação do país que havia sido dramaticamente mutilado depois do fim da Primeira Guerra Mundial, que vivia, além de sentidas perdas humanas, a supressão de dois terços de seu território. Ady cantou a guerra:

Do alto do céu um anjo enraivecido
tocou o alarme para a terra triste.
Endoidaram cem jovens pelo menos,
caíram pelo menos cem estrelas,
pelo menos cem virgens se perderam:
foi uma estranha, estranhíssima noite de verão.

Nossa velha colmeia pegou fogo,
nosso potro melhor quebrou a pata,
os mortos, no meu sonho, estavam vivos
e Burkus, nosso cão fiel, sumiu,
nossa criada Mári, que era muda, esganiçou de
pronto uma canção:
foi uma estranha, estranhíssima noite de verão.
[14]

É certo que no contexto de um atoleiro patriarcal cômodo e quentinho, Ady esbarraria em forte resistência.

Depois da Primeira Guerra Mundial […] sua figura cresceu bastante, a despeito de muitos dos que estavam interessados em manter o atoleiro, mesmo diminuído, o acusarem de ter sido o causador do processo de dissolução de que fora apenas o anunciador. [15]

Para além do contexto político, Ady se convertera na mais absoluta, íntima e definidora referência literária de Paulo Rónai: “Nenhuma obra literária, estou certo, exerceu sobre mim influência igual. Muitas palavras têm para mim o sentido que Ady lhes deu; não raro meus sofrimentos e alegrias, sem que eu o queira, moldam-se nas fórmulas definitivas em que seus sofrimentos e alegrias se cristalizaram”. [16] Os versos de Ady, “de tão decorados, recitados e meditados, se tornaram parte integrante da minha própria sensibilidade”. [17]

Ady encarna uma postura assumida também por Paulo, tendo em mira a busca pela integração da Hungria num contexto mais europeu e moderno, promovendo esse avanço de fronteiras por meio da palavra. Ady opera essa vontade de Europa e modernidade pela poesia. Paulo, pela tradução. Ambos tinham ainda outro traço em comum, a relação com a França, que revelara um universo rico de experiências e futuro, tornando o regresso a Budapeste uma experiência de “vácuo insuportável”. É certo que para Ady, nascido numa pequena aldeia na Transilvânia e que visitara Paris pela primeira vez em 1906, o embate com o ambiente húngaro em oposição a uma capital moderna como a francesa no começo do século XX era muito mais radical. Paulo transitava com mais suavidade entre os dois cenários. Mas, assim como Ady, o jovem Rónai assumiu o compromisso de lutar por meio da palavra contra o isolamento húngaro; e tinha suas armas. “Preocupados com a sua integração espiritual na comunidade europeia, os intelectuais de todas as épocas não somente estudavam línguas, mas se empenhavam em traduzir obras-primas das literaturas estrangeiras”, [18] afirma Rónai. Assim, ao lado dele e de Ady, outros húngaros buscariam essa integração ao mesmo tempo cultural e política do país. No campo da tradução, que na Hungria se tornava também o campo de uma tradição, escritores notáveis levantavam a mesma bandeira nesse ofício bifronte.

A bagagem poética dos maiores poetas magiares sempre inclui traduções: Csokonai verteu Pope; Vörösmarty, Arany, Petöfi transplantaram Shakespeare; Baudelaire teve tradutores como Ady, Árpád Tóth e Babits. Este último consagrou, aliás, parte da existência à versão de Dante, como já antes dele Arany não julgara perder tempo levando anos a interpretar Aristófanes. Na Hungria, as traduções eram sempre comentadas e discutidas, pelo menos tanto quanto as obras originais. [19]

O momento notável desse início de século na Hungria não era exclusividade do mundo das letras. Afinal, a tal nobre geração de 1900 incluía, além dos físicos já citados, matemáticos igualmente notórios, como Frigyes Riesz e Lipót Fejér, além do filósofo György Lukács, dos compositores Béla Bartók, Emmerich Kálmán, do arquiteto Marcel Breuer, do designer, fotógrafo e pintor Lászlo Moholy-Nagy e de um time de fotógrafos que, fora da Hungria (caminho, aliás, percorrido pela maior parte desses húngaros), se transformariam em grandes nomes da fotografia mundial: André Kertész, Márton Munkácsi e Brassaï. No campo das artes plásticas, pintores como Károly Ferenczy, János Vaszary e József Rippl-Rónai erguiam uma autêntica escola de pintura húngara moderna e de cores próprias.

O que irmanava esses homens, além de serem produto de uma mesma época e de uma sociedade atenta à educação e que incentivava e prestigiava atividades intelectuais, era o desejo incontido de todos por modernização. De um lado, expandindo e afirmando uma cultura húngara independente e valiosa; de outro, inclinando-se mais para o Ocidente ao afirmarem o cosmopolitismo e um novo caráter urbano que buscava aproximar a Hungria da Europa. Delineava-se um retrato de efervescência intelectual de múltiplas proporções, possibilitado pelo ambiente favorável cultural, social e também econômico de Budapeste.

Para essa expansão de fronteiras geográficas e culturais, esse grupo de intelectuais húngaros se valeu de uma extraordinária vantagem: sua acentuada relação com idiomas diversos, vocação histórica do caráter poliglota húngaro, sobretudo os nascidos em Budapeste. Durante muito tempo, sob os auspícios da monarquia dual austro-húngara, o alemão foi a língua corrente na capital. “Em 1851 o alemão era a língua principal de uma pequena maioria em Peste e de cinco entre seis pessoas em Buda.” [20] Aos poucos essa configuração foi mudando, sobretudo depois de 1860, [21] deixando de ser o alemão a língua usada pelos judeus que em grande número habitavam Peste. [22] Assim, a referência magiar-judia de Peste começou a se sobrepor à herança alemão-húngara de Buda.

Nesse contexto, enquanto o grego, o latim e o alemão eram línguas obrigatórias nas escolas, muitas famílias que ascendiam à alta e média burguesia húngara complementavam a formação de seus filhos com aulas particulares de línguas europeias, sobretudo a francesa, a mais popular entre todas. Assim, a característica poliglota dos húngaros não se deveu apenas ao caráter hermético de sua língua-mãe — a língua magiar solitária e órfã, sem parentescos com linhagens europeias, seja latina, germânica ou eslava, e a consequente necessidade de ampliação do cardápio de idiomas —, mas também ao grande “apetite cultural” que se tornara a marca do povo húngaro e de uma expectativa de refinamento das classes mais abastadas. [23]

Em 1928, Paulo, filho de família judia de classe média e intelectualizada, já ostentava o certificado emitido dois anos antes pela Aliança Francesa para lecionar francês. A aproximação com o idioma não se deu, no entanto, em aulas particulares, mas na livraria de seu pai, Miksa, localizada no térreo do número 10 da mesma Alkotmány utca, para onde a família se mudou, ocupando um apartamento no mesmo edifício. [24] Miksa, que havia trabalhado como vendedor em outra livraria, conseguira abrir seu próprio estabelecimento graças ao dote de casamento oferecido pela família de sua mulher, Gisela Lövi. Montou um misto de livraria e papelaria, onde comercializava, além de muitos livros didáticos, material escolar. A livraria de Miksa Rónai contava também com uma farta seleção de títulos jurídicos, puro tino comercial do livreiro para aproveitar a proximidade de sua loja com o fórum de Justiça da cidade. A livraria se transformou em ponto de encontro de advogados e juristas de diversas áreas, que ali se juntavam para tomar café e bater papo. [25] E para comprar livros, é certo. Escadas móveis alcançavam os pontos mais altos das estantes, e era lá em cima que, desde pequeno, Paulo se sentava para descobrir livros e se concentrar em suas leituras até alguém precisar da escada.

Depois de receber de presente um exemplar de Balzac — o tempo mostraria quanto esse primeiro contato seria decisivo em sua vida intelectual —, Paulo começou a buscar outras edições de autores franceses na livraria do pai. A condição favorável de ter uma livraria inteira à sua disposição e pais que cultivavam ardorosamente o hábito da leitura [26] levaram Paulo a desenvolver uma paixão inesgotável pelos livros.

No primeiro dia de 1928, Paulo anotou o que lia no momento: La Cousine Bette, daquele que já era seu romancista predileto. Antes de Balzac, no entanto, sua contabilidade pessoal é que ganhou destaque na folhinha em que estreava suas anotações, hábito de controle financeiro que conservaria por toda a vida. No primeiro dia daquele ano, calculou o que havia poupado entre o dinheiro que recebera do pai e outro pequeno montante que guardava na poupança. O resultado foi 1044 pengös. [27]

Paulo Rónai, Budapeste, anos 1920.
Paulo Rónai, Budapeste, anos 1920.
Diário: primeira anotação, em húngaro, 1º de janeiro de 1928.

Nos dias que se seguiram, as anotações de Paulo tomaram as páginas de ponta a ponta, desenhando com detalhes, na língua natal, seu cotidiano de jovem estudante: idas à faculdade, estudos na biblioteca, visitas de amigos; e a vida em família, as partidas de xadrez com o pai, as sessões de cinema com Clara, sua irmã mais próxima, e os passeios com os irmãos mais novos na pista de gelo para patinação. [28]

Com muitas vogais (15, para 24 consoantes), as tônicas marcando as primeiras sílabas de todas as palavras, mesmo as mais longas, o húngaro é usado com a desenvoltura típica de um nativo que se aproveita de sua língua elástica, capaz de criar palavras de forma aglutinante, ao sabor do desejo de expressão. Aos olhos de quem a desconhece, é primordialmente uma língua de imensa força sonora, musical. Sabe-se que devido à sua origem, na verdade à origem do povo húngaro — pastores, nômades, guerreiros —, a língua se cunhou para ser entendida nas circunstâncias mais diversas, o que explicaria sua conformação. É o que nos explica o mestre das línguas, existentes e próprias, Guimarães Rosa:

Que assim, sempre em dispersão, pastores no país plano, precisavam de que os radicais das palavras se afirmassem preponderante e primeiramente, sem deformações como as que ocorrem nas nossas, indo-germânicas. Do que, não terem preposição. Por outro lado, constantes guerreiros, carecendo de se comunicarem e se entenderem, desabridamente, por entre gritos, eias, cuquiadas e tropel, correndo à descrição de cavalos, exigiam-se vocalização nítida, acentuação enérgica, e finais de palavras cortantes, pontudos, ou cheios, nunca surdos. [29]

E o húngaro se fez um idioma para dentro, daqueles do qual não se apreende nem ao menos meia palavra. Uma língua para se falar com o diabo, como versa a história então mítica do rei espanhol Carlos V , também lembrada pelo mestre de Cordisburgo.

Donde bem, por essas e outras, contam que Carlos V , que desde muito menino teve que estudar uma porção de idiomas, por quantas terras e povos em que reinar, costumava dizer que: o espanhol era para se falar com os reis, o italiano com a mulher amada, o francês com o amigo, o holandês com serviçais, o alemão com os soldados, o latim com Deus, o húngaro com… o diabo. [32]

Nessa língua quase oculta, porém bela, Rónai foi desenhando os eventos de seus dias com um registro profundamente pessoal. Para si. Abrevia palavras, sejam verbos ou nomes próprios, enumera por vezes banalidades (“me barbeei”) — faz uma agenda a posteriori. Aos poucos, expectativas e breves impressões foram reivindicando espaço nas pequenas páginas. Paulo se preparava para uma esperada viagem.

O dia 17 de fevereiro foi destacado com um retângulo preto, conferindo ênfase à data. Paulo partiria de trem rumo a Viena, como primeira escala. Por quatro dias permaneceria na capital austríaca, seguindo depois para Salzburgo e, em seguida, para Munique. O destino do aplicado universitário da Europa Central era Paris, onde complementaria seus estudos de francês graças a uma bolsa que recebera para frequentar a Sorbonne.

Em 28 de fevereiro, depois de percorrer oitocentos quilômetros, chegou à capital francesa — era a segunda vez que ia a Paris. Antes passara um período estudando na Sorbonne e na Aliança Francesa. [33] Ali falaria a língua que amava, que lia com imenso apetite e que àquela altura já havia se tornado, ainda que de maneira parcimoniosa, matéria de seu ofício de tradutor. Passou a primeira noite na Rue St. Jacques, 214, no Quinto Arrondissement, perto da Sorbonne e do Sena. Na manhã seguinte caminhou pelo Boulevard St. Germain, depois parou em um café para ler jornais. Um dia tipicamente parisiense, que descreveu em um francês sem tropeços. Era a primeira vez que deixava o húngaro de lado em seu diário, gesto que marcaria uma inflexão. E não apenas por ser um dia bissexto, mas porque a partir dali o idioma francês seria seu aliado na memória diária de seu trabalho, tarefas, angústias, segredos, leituras, planos, contabilidades. No fim do dia seguinte, 29 de fevereiro, Paulo estava feliz e celebrava a novidade de seu novo endereço parisiense: “D’abord j’ai loué une chambre — 3, Rue Champollion!”. [34]

Mas o jovem húngaro não estava em Paris a passeio, devia tomar providências, matricular-se na universidade, inscrever-se na Associação de Estudantes e na Biblioteca Central. E ainda encomendar cartões de visita, o que fez por cinquenta francos, interessado em estabelecer contatos.

A temporada parisiense foi marcada por trabalhos e estudos. Chegou a permanecer muitas horas diárias na biblioteca. Traduziu Ovídio, preparou a tradução de obras do historiador romano Salústio e do romance de época Theodóra, trabalho que revisou ao longo de semanas. Paulo também se dedicava bastante à tradução, afinal precisava fazer dinheiro. Havia dias em que contabilizava em seu diário o número de páginas que vertia do francês para o húngaro. Em 28 de março, foram 33 de Le Coeur et les chiffres, de Georges Imann.

Escrever em francês em seu diário poderia ser uma maneira de manter uma proximidade contínua com o idioma, de saborear a língua também em seus registros íntimos, como se não bastasse vivê-lo no cotidiano de suas atividades acadêmicas e pessoais. Mas poderia ser também um hábito assumido em consonância com a tradição intelectual e social do período, que tinha o francês como a língua dos literatos e eruditos. Ou então para reproduzir o gesto tipicamente húngaro, de um povo “atormentado pelo conflito incessante de suas origens asiáticas e de suas aspirações europeias”, [35] comportamento comum das gerações que se seguiram à dos anos 1900 em Budapeste. No caso de Paulo Rónai, o desejo de se manter tão próximo do francês significava um pouco de tudo isso e também a vontade de se aprimorar na literatura que o fascinava, desejando não só traduzi-la para sua língua natal como percorrer o caminho inverso, traduzindo sua literatura natal para a língua de Balzac.

A leitura dos autores franceses se intensificava exponencialmente. Grandes escritores eram sua companhia constante, como Xavier de Maistre ( Les Prisionniers du Caucase ), Maupassant (novelas Le Rosier , L’Héritage , Les Contes de la bécasse ), Alfred de Vigny (conjunto de novelas Servitude et grandeur militaires [36] e o romance Stello ), Musset ( Les Deux Maîtresses ), Georges Duhamel ( Confession de minuit ). Balzac, presença certa (a peça Vautrin e o romance Le Vicaire des Ardennes ), e ainda sátiras de Horácio, além de livros mais teóricos ou técnicos, como volumes sobre regência francesa e gramática.

Tantas leituras, no entanto, não tiravam de Paulo o tempo para o teatro, outra paixão que conservava desde cedo. O menu teatral parisiense era fartíssimo e o rapaz aproveitava o que podia. Na Comédie Française, no Théâtre Mogador, no Théâtre de la Michodière, na ópera cômica ou até no Moulin Rouge, assistia a Molière, Beaumarchais, Victor Hugo, com sua peça Ruy Blas, e ainda às óperas Sansão e Dalila e Madame Butterfly. Estava à vontade e satisfeito com sua vida francesa.

Em 13 abril de 1928, uma sexta-feira, Paulo completou 21 anos sem grandes eventos. Acordou cedo, leu jornal, tomou banho, foi ao salão cortar o cabelo e ao Théâtre de L’Oeuvre comprar ingressos. Com o amigo húngaro Polongi, caminhou até a biblioteca central da universidade e percorreu a cidade, passando pela Place des Vosges, pela Rue Saint Antoine, Bastille, voltando depois para sua residência. Escreveu cartas e se deitou.

Os dias não variavam muito, seguindo um roteiro conhecido: biblioteca, passeios, traduções e leituras em casa, cartas, teatro com amigos. Também visitava museus, indo repetidas vezes ao Louvre, ao Musée Indochinois em Trocadéro e, sempre que podia, fazia uma escala no meio do dia no Jardim de Luxemburgo. Lia. Fez pequenas viagens a Rouen, Chantilly, Fontainebleau, Reims, Luxemburgo. E, em agosto, uma maior por Bruges, Bruxelas, Antuérpia, Colônia, Frankfurt, Nuremberg.

Em setembro, depois de um banho de cultura francesa in loco, Paulo voltou para Budapeste. Começou a estudar alemão, como registrou em 7 de setembro (“Commencé l’étude allemande — Keller”), e retomou os estudos na universidade. Com toda a energia da juventude, sua rotina era intensa, inteiramente voltada para encontros relacionados com trabalho e estudo. À noite, em casa, dedicava-se à leitura da Ilíada e ao xadrez com o pai.

O costume de Paulo anotar os livros que lia delineava seu perfil de leitor. E, assim, é possível percorrer a biblioteca que ia tomando corpo no quarto do jovem Rónai. Com 21 anos, Paulo já era um leitor eclético, versátil, imprevisível. Em sua mesa de cabeceira dividiam espaço Cícero, Sainte-Beuve ( Portraits litté raires ), Rabelais ( Gargantua ), Laurence Sterne ( Voyage sentimental à travers la France et l’Italie ), Zola ( Le Roman expérimental ), Duhamel ( Civilisation ), o poema épico francês La Chanson de Roland , H. Taine ( Nouveaux Essais de critique et d’histoire ). Balzac estava presente em um estudo do crítico Émile Faguet. Em novembro daquele ano, 1928, Paulo Rónai teve publicada sua tradução da novela Theodóra [37] e começou a rascunhar a primeira página de sua tese, com a qual obteria, no ano seguinte, seu diploma de doutor em filologia e línguas neolatinas.

Ainda tão novo, Paulo já asseverava com solidez seu perfil de intelectual. No fim de 1928, encerrou o ano inscrevendo uma nova assinatura em seu diário. Em vez do “Pál” de 1º de janeiro, trocou seu nome húngaro de batismo pelo francês “Paul”:

Fin de 1928
Paul Rónai

Biografia do autor: Ana Cecilia Impellizieri Martins é uma escritora, jornalista e editora brasileira. Nasceu em São Paulo, em 1978. Formada em jornalismo pela Universidade de São Paulo, trabalhou como repórter e editora em diversos veículos de comunicação, como a revista “Veja” e o jornal “O Estado de S. Paulo”. Em 2015, fundou a editora Bazar do Tempo, com o objetivo de publicar livros de qualidade, sem um foco específico. A editora já lançou mais de 20 títulos, incluindo obras de ficção, não-ficção, literatura infantil e juvenil. Ana Cecilia Impellizieri Martins é também autora de dois livros: “O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai” (2020), uma biografia do intelectual húngaro que se tornou um dos grandes intelectuais brasileiros do século XX; e “Rosa & Rónai: O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador” (2022), um estudo sobre a relação entre o escritor Guimarães Rosa e o crítico Paulo Rónai. Em 2023, foi agraciada com o Prêmio Jabuti de Biografia por “O homem que aprendeu o Brasil”.


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