Escrito por uma das maiores vozes da literatura contemporânea, esse livro é um relato não apenas sobre a morte de um pai amado, mas também sobre a memória e a esperança que permanecem com aqueles que ficam. Escrito após a morte do pai de Chimamanda Ngozi Adichie em junho de 2020, durante a pandemia de covid-19 que mantinha distante a família Adichie, Notas sobre o luto é um poderoso relato sobre a imensurável dor da perda e as lembranças e resiliência trazidas por ela. Consciente de ser uma entre milhões de pessoas sofrendo naquele momento, a autora se debruça não só sobre as dimensões familiares e culturais do luto...
Editora: Companhia das Letras; 1ª edição (14 maio 2021) Capa comum: 144 páginas ISBN-10: 6559210693 ISBN-13: 978-6559210695 Dimensões: 11 x 1.3 x 16 cm
Leia trecho do livro
À memória de
James Nwoye Adichie
1932-2020
1.
Era meu irmão quem organizava da Inglaterra as chamadas dominicais de Zoom, nosso turbulento ritual de lockdown: dois de nós entravam de Lagos, outros três dos Estados Unidos, e meus pais, às vezes com muitos ecos e chiados, de Abba, a cidade de nossos antepassados no Sudfoeste da Nigéria. No dia 7 de junho lá estava meu pai, como de costume só com a testa aparecendo na tela, porque ele nunca sabia muito bem como segurar o telefone durante as chamadas de vídeo. “Mude um pouco a posição do telefone, pai”, dizia um de nós. Meu pai estava provocando meu irmão Okey por causa de um novo apelido, depois disse que não jantou porque tinha almoçado tarde, depois falou sobre o bilionário da cidade vizinha que queria confiscar as terras ancestrais da nossa aldeia. Não estava se sentindo muito bem e andava dormindo mal, mas não precisávamos nos preocupar. No dia 8 de junho, Okey foi visitá-lo em Abba e disse que ele parecia cansado. No dia 9, não me alonguei muito em nossa conversa para ele poder descansar. Ele riu baixinho quando fiz minha imitação brincalhona de um parente. “Ka chi fo”, disse. Boa-noite. Suas últimas palavras para mim. No dia 10 de junho, ele se foi. Meu irmão Chuks me ligou para avisar, e eu desmoronei.
2.
Minha filha de quatro anos diz que eu a assustei. Ela se ajoelha no chão para demonstrar e sobe e desce no ar o punho cerrado, e por sua imitação posso ver como eu estava: inteiramente fora de mim, aos gritos, dando murros no chão. A notícia é como um desenraizamento cruel. Ela me arranca do mundo que conheço desde a infância. E eu resisto: meu pai leu o jornal naquela tarde, brincou com Okey sobre fazer a barba antes da sua consulta com o nefrologista em Onitsha no dia seguinte, debateu o resultado dos exames feitos no hospital com minha irmã Ijeoma, que é médica… então como isso pode estar acontecendo? Mas lá está ele. Okey segura o celular acima do rosto de meu pai, e ele parece estar dormindo, o semblante em repouso belo e relaxado. Nossa chamada de Zoom é surreal, e nós só conseguimos chorar, chorar e chorar em diferentes partes do mundo, olhando incrédulos para um pai adorado que agora deita imóvel numa cama de hospital. Aconteceu poucos minutos antes da meia-noite, horário da Nigéria, com Okey ao seu lado e Chuks no viva-voz. Não paro de encarar meu pai. Não consigo respirar direito. Será isso o choque, quando o ar se transforma em cola? Minha irmã Uche diz que acaba de avisar por mensagem um amigo da família, e eu quase grito: “Não! Não conte para ninguém, porque se a gente contar vira verdade”. Meu marido diz: “Respire devagar, tome, beba um pouco d’água”. O casaco que sempre uso em casa, meu uniforme de lockdown, está jogado no chão todo embolado. Mais tarde meu irmão Kene dirá, de brincadeira: “Tomara que você nunca receba nenhuma notícia devastadora em público, já que a sua reação ao choque é arrancar as próprias roupas”.
3.
O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. Por que sinto tanta dor e tanto desconforto nas laterais do corpo? É de tanto chorar, dizem. Não sabia que a gente chorava com os músculos. A dor não me causa espanto, mas seu aspecto físico sim: minha língua insuportavelmente amarga, como se eu tivesse comido algo nojento e esquecido de escovar os dentes; no peito um peso enorme, horroroso; e dentro do corpo uma sensação de eterna dissolução. Meu coração me escapa — meu coração de verdade, físico, nada de figurativo aqui — e vira algo separado de mim, batendo depressa demais num ritmo incompatível com o meu. É um tormento não apenas do espírito, mas também do corpo, feito de dores e perda de força. Carne, músculos, órgãos, tudo fica comprometido. Nenhuma posição é confortável. Passo semanas com o estômago embrulhado, tenso e contraído de apreensão, com a certeza sempre presente de que alguém mais irá morrer, de que mais coisas irão se perder. Uma manhã, Okey me liga um pouco mais cedo do que de costume e eu penso: Diga logo, me diga de uma vez quem morreu agora. Foi a mamãe?
4.
Na minha casa nos Estados Unidos, eu gosto de ter ao fundo a rádio npr tocando, mas sempre que meu pai vinha se hospedar aqui, desligava o rádio caso ninguém estivesse escutando.
“Acabei de pensar em como papai vivia desligando o rádio e eu vivia ligando de volta. Ele devia achar que aquilo de alguma forma era um desperdício”, comento com Okey.
“Como lá em Abba ele também vivia querendo desligar o gerador cedo demais. Eu ficaria muito feliz em deixá-lo fazer isso se houvesse um jeito de ele voltar”, diz Okey, e nós rimos.
“E eu vou começar a acordar cedo e a comer garri e a ir à missa todo domingo”, digo, e nós rimos.
Volto a contar a história de quando meus pais foram me visitar no apartamento em que eu morava quando fazia graduação em Yale, e eu perguntei: “Papai, quer um pouco de suco de romã?”, e ele respondeu: “Não, obrigado, seja lá o que for isso”.
O suco de romã virou uma piada recorrente. Todas as piadas recorrentes que tínhamos contado e recontado à exaustão, a expressão do meu pai totalmente impassível num minuto e escancarada numa gostosa gargalhada no minuto seguinte. Outra revelação: o quanto o riso faz parte do luto. O riso está profundamente entranhado no linguajar da nossa família, e nós agora rimos ao lembrar do meu pai, mas em algum lugar por trás desse riso existe uma névoa de incredulidade. O riso vai se apagando. O riso se transforma em choro, que se transforma em tristeza, que se transforma em raiva. Estou despreparada para a raiva descomunal e avassaladora que sinto. Sinto-me inexperiente e imatura diante desse inferno que é a tristeza. Como pode pela manhã ele estar fazendo piada e conversando, e à noite ter ido embora para sempre? Foi muito rápido, rápido demais. Não era para ter acontecido assim, como uma surpresa de mau gosto, durante uma pandemia que obrigou o mundo inteiro a se fechar. Ao longo do lockdown, meu pai e eu conversamos sobre como tudo aquilo era estranho, assustador, e ele me disse muitas vezes para não me preocupar com meu marido, que é médico. “Você bebe água morna mesmo, papai?”, perguntei um dia rindo surpresa, depois de ele dizer, com um humor envergonhado, ter lido em algum lugar que beber água morna poderia proteger do coronavírus. Ele riu de si mesmo e me disse que beber água morna, afinal de contas, não fazia mal nenhum. Não era igual às bobagens que circularam durante a crise do ebola, quando as pessoas tomavam banho de soro fisiológico antes do amanhecer. Ele sempre respondia ao meu: “Tudo bem, papai?” dizendo “Enwerom nsogbu chacha”. Eu não tenho problema nenhum. Está tudo perfeitamente bem comigo. E estava mesmo. Até não estar mais.