Livro ‘Bodas em Tipasa’ por Albert Camus

Leia trecho de 'Bodas em Tipasa' por Albert Camus
Uma coletânea de ensaios da juventude de Albert Camus, essenciais para entender a obra de um dos mais importantes autores do século XX. “Lembro-me pelo menos de uma moça alta, magnífica, que dançara a tarde inteira. Usava um colar de jasmins sobre o vestido azul colante, que o suor molhava das costas até as pernas. Ria ao dançar e virava a cabeça. Quando passava perto das mesas, deixava atrás de si um odor mesclado de flores e carne.” Bodas em Tipasa é a reunião de dois livros de Camus: Bodas e O verão.Bodas, escrito entre 1936 e 1937, é um de seus primeiros trabalhos, e nele o autor já lida com questões que abordaria em toda sua obra ― o absurdo e o suicídio. São quatro ensaios líricos com caráter autobiográfico...
Editora: Record; 1ª edição (21 junho 2021)  Capa comum: 144 páginas  ISBN-10: 6555872381  ISBN-13: 978-6555872385  Dimensões: 13.5 x 1.1 x 21 cm

Leia trecho do livro

O carrasco estrangulou o cardeal Carrafa com um cordão de seda que se partiu: foi preciso recomeçar duas vezes. O cardeal encarou o carrasco sem se dignar a pronunciar uma palavra.

Sthendal,
A duquesa de

Bodas em Tipasa

Tipasa, na primavera, é habitada pelos deuses e os deuses falam no sol e no odor dos absintos, no mar couraçado de prata, no céu azul inclemente, nas ruínas cobertas de flores e na luz aos borbotões sobre os montões de pedras. Em certas horas a campanha fica preta de sol. Os olhos tentam em vão abarcar outra coisa que não as gotas de luz e de cores tremulando nos cílios. O cheiro volumoso das plantas aromáticas raspa a garganta e sufoca no calor intenso. Mal posso divisar, ao fundo da paisagem, a massa preta do Chenoua que deita suas raízes nas colinas ao redor da aldeia e parte em ritmo seguro e pesado para se acocorar no mar.

Chegamos pela aldeia que já se abre para a enseada. Entramos num mundo amarelo e azul onde nos acolhe o suspiro perfumado e áspero da terra de verão na Argélia. Por toda parte as buganvílias rosadas ultrapassam os muros das vilas; nos jardins, hibiscos de um vermelho ainda pálido, uma profusão de rosas-chá espessas como creme e orlas delicadas de esgalgos lírios azuis. Todas as pedras estão quentes. Na hora em que descemos do ônibus cor de botão-de-ouro, os açougueiros ambulantes fazem o giro matinal em seus carros vermelhos e o soar de suas cornetas alerta os habitantes.

À esquerda do porto, uma escadaria de pedras gretadas conduz às ruínas, em meio às aroeiras e às giestas. O caminho passa em frente a um pequeno farol e, a seguir, mergulha em plena campanha. Já, ao pé do farol, grandes plantas oleosas, de flores roxas, amarelas e vermelhas, descem em direção aos primeiros rochedos que o mar suga com um ruído de beijos. Em pé ao vento brando, sob o sol que nos aquece apenas um lado do rosto, olhamos a luz cair do céu, o mar sem uma ruga, e o sorriso de seus dentes resplandecentes. Antes de entrar no reino das ruínas, somos pela última vez espectadores.

Ao fim de alguns passos os absintos nos pegam pela garganta. Seu cinzento lanoso cobre as ruínas a perder de vista. Sua essência fermenta ao calor, e da terra ao sol sobe, por toda a extensão do mundo, um álcool generoso que faz o céu vacilar. Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições nem a amarga filosofia que se pede à grandeza. Com exceção do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo se nos afigura fútil. Quanto a mim, não procuro ficar só aqui. Vim aqui muitas vezes com aqueles que eu amava e, em seus traços, lia o claro sorriso que neles tomava o semblante do amor. Aqui, deixo a outros a ordem e a medida. É a grande libertinagem da natureza e do mar que me abarca por inteiro. Nesse casamento das ruínas com a primavera, as ruínas voltaram a ser pedras e, perdendo o polimento imposto pelo homem, retornaram à natureza. Para a volta dessas filhas pródigas, a natureza prodigalizou as flores. Por entre as lajes do fórum, o heliotrópio estica sua cabeça redonda e branca, e os gerânios vermelhos derramam seu sangue sobre o que foram casas, templos e praças públicas. Como esses homens que muita ciência reconduz a Deus, muitos anos trouxeram as ruínas de volta à casa materna. Hoje, finalmente, o passado as abandona, e nada as distrai dessa força profunda a reconduzi-las ao centro das coisas que caem.

Quantas horas vividas a esmagar absintos, a acariciar ruínas, a tentar acomodar minha respiração aos suspiros tumultuários do mundo! Mergulhado entre os odores selvagens e os concertos de insetos sonolentos, abro os olhos e o coração para a grandeza insustentável deste céu ingurgitado de calor. Não é tão fácil a gente se tornar o que se é, reencontrar sua medida profunda. Mas, olhando a espinha sólida do Chenoua, meu coração se acalmava numa estranha certeza. Eu aprendia a respirar, integrava-me e realizava-me. Uma a uma, eu galgava as colinas, cada qual me propiciava uma recompensa, como esse templo cujas colunas medem a trajetória do sol e do qual se vê a aldeia inteira, seus muros brancos e rosados e suas varandas verdes. Como igualmente essa basílica da colina leste: conservou seus muros e, num grande raio ao redor dela, alinham-se sarcófagos exumados, na maioria mal saindo da terra de que ainda participam. Contiveram mortos; agora neles crescem salvas e goivos. A basílica Santa Salsa é cristã, mas cada vez que olhamos por uma abertura, é a melodia do mundo que chega até nós: outeiros plantados de pinheiros e ciprestes, ou o mar que apascenta seus cordeiros brancos a uns vinte metros. A colina que suporta Santa Salsa é achatada no cimo e o vento sopra mais à vontade através dos pórticos. Ao sol da manhã, uma grande felicidade balança no espaço.

Bem pobres são os que têm necessidade de mitos. Aqui os deuses servem de leitos ou de pontos de referência no curso dos dias.

Descrevo e digo: “Isto é vermelho, isto é azul, isto é verde. Isto é o mar, a montanha, as flores.” E para que falar em Dioniso a fim de dizer que gosto de esmagar os frutos de aroeira para cheirá-los? Será mesmo dedicado a Deméter o velho hino em que pensarei mais tarde sem constrangimento: “Feliz o vivente que na terra viu tais coisas.” Ver e ver nesta terra, como esquecer a lição? Nos mistérios de Elêusis, bastava contemplar. Mesmo aqui, sei que nunca me aproximarei suficientemente do mundo. Preciso ficar nu e depois mergulhar no mar, todo perfumado ainda das essências da terra, lavá-las nele, e enlaçar sobre minha pele o abraço pelo qual há tanto tempo suspiram lábios colados a lábios, a terra e o mar. Entrando na água, eis a emoção viva, a subida de uma viscosidade fria e opaca, e depois o mergulho em meio ao zumbido dos ouvidos, nariz escorrendo e boca amarga — o nado, braços envernizados de água saindo do mar para se dourarem ao sol e recaindo numa torção de todos os músculos; o correr da água sobre meu corpo, essa posse tumultuosa da onda pelas minhas pernas — e a ausência de horizonte. Na praia, é a queda na areia, abandonado ao mundo, retomado à minha gravidade de carne e osso, estupidificado de sol, com, de vez em quando, um olhar para meus braços onde pedaços de pele seca descobrem, com o deslizar da água, a penugem loira e a poeira do sal.

Compreendo aqui aquilo que se chama glória: o direito de amar sem medida. Há um único amor neste mundo. Abraçar um corpo de mulher é também reter junto de si essa estranha alegria que desce do céu para o mar. Dentro em pouco, quando me atirar nos absintos para fazer o perfume deles entrar em meu corpo, tomarei consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade, que é a do sol, e será também a da minha morte. Em certo sentido, é bem a minha vida que jogo aqui, uma vida com gosto de pedra quente, cheia dos suspiros do mar e das cigarras que começam agora a cantar. A brisa é fresca, e o céu, azul. Gosto desta vida com abandono e quero falar dela com liberdade: ela me dá orgulho de minha condição de homem.

No entanto, muitas vezes disseram a mim: não há de que se orgulhar. Sim, há de quê: deste sol, deste mar, de meu coração pulando de juventude, de meu corpo com gosto de sal e do imenso cenário em que a ternura e a glória se encontram no amarelo e no azul. É na conquista disso que preciso aplicar minha força e meus recursos. Tudo aqui me deixa intato. Não abandono nada de mim mesmo, não ponho máscara nenhuma: basta-me aprender pacientemente a ciência difícil de viver, que vale em verdade todas as receitas que eles têm para o bem viver. Pouco antes de meio-dia, voltávamos através das ruínas a um pequeno café na orla do porto. Com a cabeça ainda atordoada pelos címbalos do sol e das cores, que fresca acolhida a da sala cheia de sombra, do copo grande de menta verde e gelada! Lá fora, o mar e o caminho ardente de poeira. Sentado à mesa, tento apreender entre o bater dos cílios o deslumbramento multicor do céu branco de calor. Com o rosto molhado de suor, mas o corpo fresco no tecido leve que nos veste, exibimos, todos, a lassidão feliz de um dia de bodas com o mundo.

Come-se mal nesse café, mas há muitas frutas — pêssegos, principalmente, que a gente morde sem cortar nem descascar, de modo que o suco escorre pelo queixo. Com os dentes fincados no pêssego, escuto as batidas fortes de meu coração me subirem aos ouvidos, e arregalo os olhos. Sobre o mar, o silêncio enorme de meio-dia. Todo ser belo tem o orgulho natural de sua beleza e o mundo hoje deixa seu orgulho porejar por todos os lados. Diante dele, por que negaria eu a alegria de viver, se sei não encerrar tudo na alegria de viver? Não há vergonha em ser feliz. Mas hoje o imbecil é rei, e chamo imbecil aquele que tem medo de gozar. Falaram-nos tanto do orgulho: bem o sabeis, é o pecado de Satanás. Desconfiai, advertiam-nos, vós vos perdereis, e vossas forças vivas. Desde então, aprendi com efeito que certo orgulho… Mas, em outros momentos, não posso impedir-me de reivindicar o orgulho de viver que o mundo inteiro conspira em me dar. Em Tipasa, vejo equivale a creio, e não me obstino em negar o que a mão pode tocar e o lábio acariciar. Não sinto necessidade de fazer uma obra de arte, e sim de contar o que é diferente. Tipasa se me apresenta como esses personagens que a gente descreve para significar indiretamente um ponto de vista acerca do mundo. Como eles, ela testemunha, e virilmente. Ela é hoje meu personagem e me parece que, em a acariciando e descrevendo, minha embriaguez não terá mais fim. Há uma hora de viver e uma hora de testemunhar o viver. Há também uma hora de criar, o que é menos natural. Basta-me viver com todo o meu corpo e testemunhar com todo o coração. Viver Tipasa, testemunhar, e a obra de arte virá em seguida. Há aí uma liberdade.

Eu nunca ficava mais de um dia em Tipasa. Chega sempre um momento em que se viu demais uma paisagem, assim como é preciso muito tempo até vê-la suficientemente. As montanhas, o céu, o mar são como rostos cuja aridez ou esplendor descobrimos à força de olhar em vez de ver. Mas todo rosto, para ser eloquente, deve sofrer certa renovação. E há quem se queixe de ficar cansado com muita rapidez quando seria preciso admirar que o mundo nos pareça novo para ter sido somente esquecido.

Ao cair da tarde, dirigia-me a uma parte do parque mais ordenada, arranjada à maneira de jardim, à margem da estrada nacional. Ao sair do tumulto dos perfumes e do sol, no ar já então refrescado pela noite, o espírito se acalmava, o corpo relaxado degustava o silêncio interior que nasce do amor satisfeito. Eu me sentava num banco. Olhava a campanha se arredondar com o dia. Estava satisfeito. Acima de mim uma romãzeira dependurava os botões de suas flores, fechados e gomosos como pequenos punhos cerrados que contivessem toda a esperança da primavera. Havia alecrim atrás de mim, mas só percebia seu perfume de álcool. As colinas se enquadravam entre as árvores e, mais longe ainda, um debrum de mar acima do qual o céu, como uma vela parada, repousava com toda a ternura. Tinha no coração uma alegria estranha, essa mesma que nasce de uma consciência tranquila. Há um sentimento que os atores conhecem quando têm consciência de que desempenharam bem o papel, isto é, no sentido mais preciso, de que fizeram seus gestos coincidirem com os do personagem ideal por eles encarnado, que entraram de certa maneira num desenho feito de antemão e conseguiram num repente fazê-lo viver e palpitar com seu próprio coração. Era exatamente isso que eu sentia: desempenhara bem o meu papel. Executara bem o meu ofício de homem e o fato de ter conhecido a alegria durante um dia inteiro não se me afigurava um êxito excepcional, porém a realização comovida de uma condição que, em certas circunstâncias, impõe-nos o dever de ser felizes. Reencontramos então uma solidão, mas dessa vez na satisfação.

As árvores tinham-se agora povoado de pássaros. A terra suspirava lentamente antes de entrar na sombra. Dentro em pouco, com a primeira estrela, a noite cairá sobre o palco do mundo. Os deuses resplandecentes do dia retornarão à sua morte cotidiana. Mas outros deuses virão. E, embora mais sombrios, suas faces devastadas terão contudo nascido no coração da terra.

Agora, pelo menos, a incessante eclosão das ondas sobre a areia chegava-me através de todo um espaço onde dançava um pólen dourado. Mar, campanha, silêncio, perfumes desta terra, eu me impregnava de uma vida odorante e mordia o fruto já dourado do mundo, transtornado por sentir seu suco açucarado e forte escorrer pelos meus lábios. Não, não era eu que contava, nem o mundo, mas tão somente a harmonia e o silêncio que entre nós o amor engendrava. Amor que eu não tinha a fraqueza de reivindicar para mim só, consciente e orgulhoso de partilhá-lo com toda uma raça, nascida do sol e do mar, viva e saborosa, que busca sua grandeza na simplicidade e que, em pé nas praias, envia seu sorriso cúmplice ao sorriso deslumbrante de seus céus.

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