Livro ‘Três irmãs’ por Jung Chang

Livro 'Três irmãs: As mulheres que definiram a China moderna' por Jung Chang
As mulheres que definiram a China moderna
"Uma amava dinheiro, uma amava o poder e uma amava a China." Nesta biografia épica, a autora de Cisnes selvagens narra a vida das irmãs que mudaram a história de um país em ebulição. O mais conhecido conto de fadas chinês moderno é a história das irmãs Soong, cujas vidas se estenderam do fim do século XIX ao início do século XXI. A Irmã Mais Velha, Ei-ling, casou-se com o homem mais rico da China, H. H. Kung. A Irmã Vermelha, Ching-ling, foi a companheira de Sun Yat-sen, pai fundador da China moderna e seu primeiro presidente. E a Irmã Mais Nova, May-ling, se tornaria a ambiciosa Madame Chiang Kai-shek, esposa do líder da República da China...
Editora: Companhia das Letras; 1ª edição (15 janeiro 2021)  Capa comum: 392 páginas  ISBN-10: 853593331X  ISBN-13: 978-8535933314  Dimensões: 16 x 2.4 x 23 cm

Leia trecho do livro

Introdução

O mais conhecido “conto de fadas” chinês moderno é a história de três irmãs, nascidas nos últimos anos do século XIX, em Shanghai. Vinham de uma família rica e proeminente — os Soong —, parte da elite da cidade. Os pais eram cristãos devotos: a mãe integrava o clã cristão mais ilustre da China (o de Xu, que dá nome a um distrito de Shanghai), e o pai fora o primeiro chinês convertido pelos metodistas no Sul dos Estados Unidos, ainda adolescente. As três filhas — Ei-ling (“Doce Idade”, nascida em 1889), Ching-ling (“Idade Gloriosa”, nascida em 1893) e May-ling (“Bela Idade”, nascida em 1898) — foram enviadas ainda crianças para estudar nos Estados Unidos, algo extremamente raro na época. Voltaram anos depois, dominando mais o inglês do que o chinês. Pequenas e de queixo anguloso, não eram beldades pelos padrões convencionais: o rosto não tinha a forma de sementes de melão, os olhos não se assemelhavam a amêndoas, e as sobrancelhas não arqueavam como os brotos do salgueiro. Mas tinham a pele muito bonita, traços delicados e a postura graciosa, conjunto que se realçava pelo requinte das roupas. As três irmãs tinham visto o mundo, eram inteligentes, autoconfiantes e independentes. Em uma palavra, tinham “classe”.

Contudo, o que fez delas, em última análise, “princesas” modernas da China foram seus casamentos extraordinários. Quem se apaixonou por Ei-ling e, depois, por Ching-ling foi Sun Yat-sen, pioneiro da revolução republicana que depôs a monarquia, em 1911. Conhecido como “Pai da República Chinesa”, Sun é reverenciado em todo o mundo sinofalante. Ching-ling se casou com ele.

Sun morreu em 1925; seu sucessor, Chiang Kai-shek, cortejou May-ling, a Irmã Mais Nova, e se casou com ela. Chiang formou um governo nacionalista em 1928 e comandou a China até que os comunistas o obrigassem a partir para Taiwan, em 1949. A Irmã Mais Nova foi primeira-dama do país por 22 anos — tempo que o marido esteve no poder. Durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto Chiang liderava a resistência contra a invasão japonesa, May-ling se tornou uma das mulheres mais famosas de sua época.

Já Ei-ling, a Irmã Mais Velha, casou-se com H. H. Kung, que, graças às conexões da esposa, ocupou os postos de primeiro-ministro e de ministro das Finanças por muitos anos. O que, por sua vez, ajudou Ei-ling a se tornar uma das mulheres mais ricas da China.

A família Soong, que também tinha três filhos, constituía o círculo íntimo do regime de Chiang Kai-shek — exceto Ching-ling, a viúva de Sim Yat-sen, que se aliou aos comunistas. Era referida, por vezes, como a Irmã Vermelha, o que a posicionava em um campo político antagónico, separada das irmãs. Durante a guerra civil que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial, a Irmã Vermelha fez o que pôde para ajudar os comunistas a derrotarem Chiang, muito embora isso implicasse a ruína de sua própria família. Depois do colapso do regime de Chiang e da fundação da China comunista governada por Mao Tsé-tung, em 1949, a Irmã Vermelha tornou-se vice-presidente.

Naturalmente, as irmãs eram excepcionais para além dos casamentos influentes. No mundo sinófono, as pessoas nunca se cansavam de falar delas, inclusive de suas vidas íntimas. Lembro-me de duas histórias em particular, que remontam à minha juventude na China de Mao, entre as décadas de 1950 e 1970, quando o país se encontrava sob rígido controle totalitário, absolutamente isolado do mundo exterior. Uma das histórias contava que madame Chiang — a Irmã Mais Nova — banhava-se em leite todos os dias a fim de manter a pele luminosa. Naqueles tempos, o leite, produto nutritivo e desejado, era escasso e fora do alcance das famílias comuns. Usá-lo para o banho era considerado uma indulgência escandalosa. Certo dia, um dos meus professores tentou reparar essa conhecida lenda e sussurrou a seus pupilos: “Por favor, vocês realmente acham que seria prazeroso tomar banho com leite?”. O professor logo entrou para as fileiras dos “direitistas” condenados.

A outra história que me marcou muito dizia que Ching-ling, vice-presidente da puritana China Vermelha, vivia com seu principal guarda-costas, que tinha menos da metade de sua idade. Contava-se que os dois haviam desenvolvido uma relação física por ele sempre colocá-la e retirá-la da cama, quando Ching-ling estava idosa e presa a uma cadeira de rodas. Especulava-se infinitamente sobre se os dois teriam ou não se casado, e se discutia se a relação era aceitável. O boato era que o Partido fazia vista grossa por Ching-ling ser viúva havia muito tempo e precisar de um homem. Ao mesmo tempo, o Partido permitia que mantivesse o prestigioso nome de Madame Sun. Lembro-me particularmente bem dessa história, pois era raríssimo ouvir qualquer fofoca sobre a vida sexual de um dos lideres do país. Ninguém se atreveria a abrir a boca sobre qualquer outro oficial do alto escalão.

Depois que Mao morreu, em 1976, a China se abriu, eu me estabeleci na Inglaterra e aprendi muito mais sobre as irmãs. Cheguei a ser contratada para escrever um pequeno livro sobre a Irmã Vermelha, Ching-ling. No entanto, mesmo tendo levantado material e escrito 30 mil palavras, eu, curiosamente, não me sentia envolvida com o tema. Nem mesmo tentei ir a fundo no escândalo envolvendo o guarda-costas.

Em 1991, Cisnes selvagens: Três filhas da China, o livro sobre a vida da minha avó, da minha mãe e a minha foi publicado. Depois disso, escrevi uma biografia de Mao, em parceria com meu marido, Jon Halliday. Mao e sua sombra haviam dominado os primeiros 26 anos da minha vida, e eu estava ansiosa para descobrir mais sobre ele. Depois, a imperatriz-viúva Cixi, a última grande monarca da China (jamais coroada, pois mulheres não podiam ser monarcas), despertou minha atenção. Elevando-se de concubina subalterna a chefe de Estado, Cixi governou o império durante décadas e conduziu um país medieval ao mundo moderno. Ambos os temas me fascinavam e consumiram vinte anos da minha vida. O personagem seguinte era uma escolha difícil. Surgiu a ideia das irmãs Soong, que descartei. Depois de Cisnes selvagens, eu passei a escrever sobre estadistas e figuras que revolucionaram a história, o que não era o caso das irmãs.

O que se apreendia das informações disponíveis é que elas, como indivíviduos, permaneciam figuras de contos de fadas, evocadas por uma descrição bastante repisada: “Na China, havia três irmãs. Uma delas amava o dinheiro, a outra amava o poder, e a última amava seu país”. Não parecia haver nenhum conflito mental, dilemas morais ou decisões agonizantes — todas as coisas que tornam os seres humanos reais e interessantes.

Em vez disso, pensei em escrever sobre Sun Yat-sen, o Pai da China republicana. Tendo vivido de 1866 a 1925 e alcançado proeminência no período entre Cixi e Mao, Sun também era estadista e, de certa forma, constituía uma “ponte” entre os dois. Sob Cixi, a China começara a jornada em direção à democracia parlamentarista e esperava alcançar mais liberdade e abertura. No entanto, quatro décadas depois da morte da imperatriz-viúva (1908), Mao tomou o poder, isolou o país e o mergulhou numa tirania totalitária. O que aconteceu nessas quatro décadas, nas quais Sun Yat-sen teve um papel-chave? Essa questão vinha me incomodando. Agora, era minha chance de descobrir.

Para os chineses, e para aqueles fora do mundo sinófono que ouviram falar dele, a imagem de Sun é a de um santo. Mas ele era mesmo santo? O que ele fez pela China e com a China, exatamente? E que tipo de pessoa ele era? Eu queria descobrir as respostas para essas e muitas outras questões.

Foi enquanto costurava a vida de Sun — e das pessoas a seu redor — que a profundidade do caráter de sua esposa e de suas duas irmãs emergiu e capturou minha imaginação. Sun, compreendi, era um animal político consumado que perseguia suas ambições com determinação. Que não fosse um santo foi um alívio (para uma biógrafa). Acompanhar seu caminho em direção ao poder, repleto de altos e baixos, mercenários e métodos mafiosos (incluindo vinganças e assassinatos) era como ler um romance policial. Revelar como esse homem fez história era decerto satisfatório. Mas a vida das mulheres, das quais a política era apenas uma parte, gradualmente se tornou algo mais rico e mais atrativo para mim. Decidi fazer delas o tema deste livro.

Quando mudei o foco da pesquisa para as irmãs, meus olhos se abriram para o caráter extraordinário das três. Suas vidas tocaram três séculos (May-ling morreu em 2003, aos 105 anos de idade), e elas estiveram no centro da ação durante cem anos de guerras, revoluções sísmicas e transformações dramáticas. O cenário vai de grandes festas em Shanghai a coberturas em Nova York, de círculos de exilados no Japão e em Berlim a reuniões secretas em Moscou, das sedes da elite comunista em Pequim aos corredores do poder na Taiwan democratizante. As irmãs vivenciaram esperança, coragem e amor passional, bem como desespero, medo e desilusões amorosas. Gozaram de imenso luxo, glória e privilégio, mas também arriscaram a vida constantemente. Numa ocasião em que chegou perto da morte, Ching-ling sofre um aborto (graças a Sun Yat-sen, que a usava para provocar fogo inimigo com o intuito de promover seus objetivos políticos) e nunca mais pôde ter filhos. Essa angústia desempenharia enorme papel em seu comportamento como vice-presidente da China comunista. May-ling, por sua vez, também sofre um aborto que a deixa sem filhos. Seu marido, Chiang Kai-shek, cuja carreira política começa a ascender depois de matar um dos rivais de Sun, foi ele próprio perseguido por assassinos, dois dos quais, certa noite, chegaram bem próximo de seu leito marital. Já Ei-ling, que ajudou a Irmã Mais Nova a preencher o vazio da falta de filhos, também tinha de lidar com as decepções de sua própria vida, entre as quais sua reputação universalmente ruim: era vista como a Irmã Mais Velha cruel e gananciosa, ao passo que a Irmã Vermelha era tratada como deusa imaculada, e a Irmã Mais Nova, como uma glamorosa estrela internacional. O relacionamento entre as três mulheres era emocionalmente pesado, e não só porque Ching-ling trabalhava ativamente para destruir a vida das outras duas. Chiang Kai-shek matou o homem que ela amou depois da morte de Sun — Deng Yan-da, líder carismático que fundara um Terceiro Partido como alternativa aos comunistas e aos nacionalistas. A história da China moderna está intimamente entrelaçada aos traumas pessoais das irmãs Soong.

Ao escrever sobre as três — e sobre os colossos chineses Sun Yat-sen e Chiang Kai-shek —, fui abençoada pela abundância de material. Uma farta correspondência está publicada ou acessível, bem como escritos e memórias, incluindo muitos registros feitos na China. Em Taiwan, agora uma democracia, os arquivos abriram suas portas. Londres, onde Sun articulou seu próprio “sequestro”, lançando sua carreira política, oferece muitos insights. Acima de tudo, nos Estados Unidos — onde a família estendida tinha íntimas conexões —, bibliotecas e outras instituições abrigam inúmeros acervos que são verdadeiros tesouros. Uma adição bastante recente, de valor imenso, é o diário de Chiang Kai-shek, no qual ele escreveu todos os dias por quinze anos, seguindo um registro excepcionalmente pessoal, repleto de revelações sobre o casamento com May-ling.

A história das irmãs Soong começou quando a China embarcava em sua transição de monarquia para república. O homem que assumiu o papel mais importante nesse processo histórico foi Sun Yat-sen. Sun e sua revolução republicana moldariam a vida das três irmãs.


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