Livro ‘SPQR – Uma História da Roma Antiga’ por Mary Beard

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Um dos livros mais importantes sobre Roma Antiga que existe Cobrindo mil anos da história romana, SPQR revela em detalhes como Roma cresceu de uma vila insignificante na Itália Central para se tornar a primeira potência global. A inglesa Mary Beard, professora de Cambridge e autora de vários bestsellers, vive há mais de 30 anos pesquisando o Império Romano. A partir de inúmeras leituras, estudos de arqueologia e de documentos escritos em pedras e papiros, ela faz uma análise eloquente dessa história e mostra o que os romanos pensavam sobre si mesmos e suas realizações. SPQR é a abreviação que os próprios romanos adotaram para o seu Estado...
Editora: Crítica; 2ª edição (18 dezembro 2020)  Capa comum: 576 páginas  ISBN-10: 6555352167  ISBN-13: 978-6555352160  Dimensões: 16 x 2 x 23 cm

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Leia trecho do livro

Prólogo

A história de Roma

Roma Antiga é importante. Ignorar os romanos é não apenas fechar os olhos para o passado distante. Roma ainda nos ajuda a definir o modo como entendemos nosso mundo e pensamos a respeito de nós mesmos, e isso abrange da alta cultura à comédia barata. Após 2 mil anos, ela continua na base do pensamento e da política ocidental, daquilo que escrevemos e do modo como vemos o mundo e nosso lugar nele.

O assassinato de Júlio César, por ocasião daquilo que os romanos chamaram de Idos de Março, 44 a.C., tem servido desde então como modelo, e eventual justificativa inepta, para o assassinato de tiranos. A disposição do território da Roma Imperial está implícita na geografia política da Europa moderna e de terras mais distantes. A principal razão de Londres ser a capital do Reino Unido é que os romanos fizeram dela a capital da sua província, a Britânia — um lugar perigoso, situado, na visão deles, além do grande oceano que circundava o mundo civilizado. Roma nos legou ideias de liberdade e cidadania, assim como de exploração imperial, combinadas com um vocabulário de política moderna, desde “senadores” a “ditadores”. Emprestou-nos expressões como “presente de grego”, “pão e circo” e “tocar violino enquanto Roma arde” — até mesmo “onde há vida, há esperança”. E tem propiciado riso, espanto e horror, mais ou menos em proporções iguais. Os gladiadores são sucesso de bilheteria hoje como foram naquela época. O grande poema épico de Virgílio sobre a fundação de Roma, a Eneida, quase certamente teve mais leitores no século XX do que no primeiro século da nossa era.

No entanto, a história da Roma Antiga mudou radicalmente ao longo dos últimos cinquenta anos, e mais ainda nos quase 250 anos desde que Edward Gibbon escreveu Declínio e queda do Império Romano, seu idiossincrático experimento histórico que deu início ao estudo moderno da história de Roma no mundo de língua inglesa. Isso se deve em parte às novas maneiras de interpretar os dados antigos, e aos diferentes questionamentos que escolhemos fazer. É um mito perigoso achar que somos historiadores melhores do que aqueles que nos precederam. Não somos. Mas chegamos à história romana com outras prioridades — desde identidade de gênero a suprimento de comida — que fazem o passado antigo falar conosco num novo idioma.

Também houve uma série extraordinária de novas descobertas — em terra, sob as águas, até perdidas em bibliotecas — e as novidades da Antiguidade que elas nos trouxeram dizem mais sobre a Roma Antiga do que qualquer historiador moderno poderia ter tido conhecimento antes. Temos agora um manuscrito de um comovente ensaio escrito por um médico romano, cujas queridas posses haviam acabado de arder em chamas, e que reapareceu em um mosteiro grego apenas em 2005. Temos destroços de navios naufragados no Mediterrâneo que nunca conseguiram chegar a Roma, com esculturas, mobffla e vidraria estrangeiras destinadas às casas dos ricos, e vinho e azeite de oliva que faziam parte da dieta básica de todos. Enquanto escrevo, arqueólogos examinam com atenção amostras extraídas da calota de gelo da Groenlândia para achar vestígios, até mesmo ali, da poluição produzida pela indústria romana. Outros estão observando através do microscópio o excremento humano encontrado em uma fossa em Herculano, no sul da Itália, para identificar a dieta dos romanos comuns. Muitos ovos e ouriços-do-mar fazem parte da resposta.

A história de Roma está sempre sendo reescrita, e sempre foi; em certos aspectos, sabemos mais sobre a Roma Antiga do que os próprios romanos. A história romana, em outras palavras, é uma obra em progresso. Este livro é minha contribuição a esse projeto maior; oferece a minha versão sobre por que isso é importante. SPQR empresta seu título de outra famosa expressão romana, Senatus PopulusQue Romanus, “O Senado e o Povo de Roma”. É movido por uma curiosidade pessoal a respeito da história romana, por uma convicção de que um diálogo com a Roma Antiga ainda vale muito a pena e pela questão de como uma pequena e desinteressante aldeia no centro da Itália tornou-se uma potência dominante sobre uma extensão territorial enorme, em três continentes.

Este é um livro sobre como Roma cresceu e sustentou sua posição por tanto tempo, não sobre como declinou e caiu, se é que realmente fez isso no sentido que Gibbon imaginou. Existem várias maneiras pelas quais as histórias de Roma podem construir uma conclusão que faça sentido; alguns escolheram a conversão do imperador Constantino ao cristianismo em seu leito de morte em 337 d.C. ou o saque da cidade por Alarico e seus visigodos em 410 d.C. A minha história termina com um momento culminante em 212 d.C., quando o imperador Marco Aurélio Antonino, conhecido como Caracala [Marcus Aurelius Antoninus — Caracallas], tomou a decisão de transformar todo habitante livre do Império Romano em um cidadão romano de pleno direito, erodindo a diferença entre conquistador e conquistado e concluindo um processo de expansão dos direitos e privilégios da cidadania romana que havia se iniciado quase mil anos antes.

SPQR não é, porém, uma simples obra de admiração. Há bem mais no mundo clássico — tanto romano quanto grego — para despertar interesse e atenção. Nosso mundo seria incomensuravelmente mais pobre se não continuássemos a interagir com o deles. Mas admiração é uma coisa diferente. Felizmente, como filha do meu tempo, fico com um pé atrás quando ouço alguém falando dos “grandes” conquistadores romanos, ou mesmo do “grande” Império de Roma. Tenho tentado aprender a ver as coisas também de outras perspectivas.

Na realidade, SPQR confronta alguns dos mitos e meias verdades a respeito de Roma com os quais eu, como muitos, cresci. Os romanos não começaram com um grande plano de conquista mundial. Embora tenham chegado a fazer ostentação de seu Império como se fosse algum destino manifesto, as motivações que estavam originalmente por trás de sua expansão militar pelo mundo mediterrâneo, e além dele, são ainda um dos grandes quebra-cabeças da história. Na aquisição de seu Império, os romanos não esmagaram brutalmente povos inocentes que estavam cuidando de seus afazeres em uma harmonia pacífica até que as legiões apareceram no horizonte. A conquista romana foi sem dúvida cruel. A conquista da Gália por Júlio César foi comparada, com razão, a um genocídio, e criticada pelos próprios romanos da época nesses mesmos termos. Mas Roma se expandiu por um mundo de violência endêmica, de focos rivais de poder apoiados por forças militares (na realidade, não havia alternativa) e de mini-impérios. A maioria dos inimigos de Roma era tão militarista quanto os romanos; mas, por razões que tentarei explicar, eles não venceram.

Roma não era apenas o parente mais violento da Grécia Clássica, comprometida com engenharia, eficiência militar e absolutismo, enquanto os gregos haviam preferido a especulação intelectual, o teatro e a democracia. Mostrava-se conveniente a alguns romanos fingir que as coisas eram assim, e foi conveniente a muitos historiadores modernos mostrar o mundo clássico como uma dicotomia simples entre duas culturas diferentes. Isso, como veremos, é enganoso, e em relação aos dois lados. As cidades-Estado gregas desejavam vencer batalhas tão ardentemente quanto os romanos, e a maioria tinha pouco a ver com o breve experimento democrático ateniense. Longe de serem irrefletidos defensores do poder imperial, vários escritores romanos eram ferrenhos críticos ao imperialismo. “Eles criam desolação e chamam isso de paz” é um slogan que com frequência tem resumido as consequências da conquista militar. Foi escrito no século II d.C. pelo historiador romano Tácito, referindo-se ao poder romano na Britânia.

A história de Roma é um grande desafio. Não temos uma única história de Roma, especialmente se levarmos em conta o quanto o mundo romano se expandiu para longe da Itália. A história de Roma não é a mesma história da Britânia romana ou da África romana. A maior parte da minha atenção será sobre a cidade de Roma e a Itália romana, mas preciso também ter o cuidado de olhar para Roma de fora, do ponto de vista daqueles que viviam nos vastos territórios do Império, na condição de soldados, rebeldes ou ambiciosos colaboradores. E é preciso escrever tipos muito diferentes de história para cada período. Com referência à história mais antiga de Roma e ao período em que ela se expandiu no século IV a.C., de uma pequena aldeia para um ator principal na península Itálica, não há quaisquer relatos escritos por romanos desse período. A história teve que ser um corajoso trabalho de reconstrução, explorando ao máximo peças individuais de evidência — um fragmento único de cerâmica, ou algumas letras inscritas na pedra. Apenas três séculos mais tarde o problema é justamente o inverso: como extrair sentido das massas de informações que competem entre si e ameaçam embaralhar qualquer narrativa.

A história de Roma também requer um tipo particular de imaginação. Sob certos aspectos, explorar a Roma Antiga a partir do século XXI é como andar na corda bamba, um ato de equilibrismo que exige muito cuidado. Se você olha para baixo para um dos lados, tudo parece familiar: há debates em curso aos quais quase aderimos sobre a natureza da liberdade ou os problemas do sexo; há edifícios e monumentos que reconhecemos e uma vida familiar que compreendemos, com todos os seus adolescentes problemáticos; e há piadas que captamos o sentido. Por outro lado, parece ser um território totalmente estranho. E não só em relação a escravidão, sujeira (não havia algo próximo de uma coleta de lixo na Roma Antiga), carnificina de humanos na arena e morte por doenças cuja cura hoje é para nós corriqueira; mas também os recém-nascidos atirados em depósitos de lixo, as noivas crianças e os extravagantes sacerdotes eunucos. Esse é um mundo que começaremos a explorar através de um momento particular da história de Roma, que os romanos nunca pararam de quebrar a cabeça para tentar entender e que os escritores modernos, de historiadores a dramaturgos, nunca esgotaram o debate.

Esse momento proporciona a melhor introdução a alguns dos personagens-chave da Roma Antiga, à riqueza das discussões dos romanos a respeito de seu próprio passado e às maneiras pelas quais nós continuamos a retomá-lo para tentar entendê-lo — e às razões pelas quais a história de Roma, seu Senado e seu Povo ainda são importantes.


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