Livro ‘Luzes do Norte’ por Giulianna Domingues

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Luzes do Norte é o livro de estreia de Giulianna Domingues, uma aventura intensa e cheia de reviravoltas, com uma protagonista que se recusa a jogar pelas regras dos outros. Entre ursos assustadores, florestas nevadas, mistérios e intrigas, Dimitria tem uma única missão: proteger Aurora van Vintermer. Custe o que custar. Dimitria Coromandel é uma caçadora excepcional, a melhor da região, e, após a morte dos seus pais, se tornou a base para o sustento de sua pequena família. Para ela, o peso da responsabilidade e a necessidade de conseguir dinheiro são os impulsos de sua movimentada rotina, e, no inclemente inverno de Nurensalem, ela precisa caçar durante o dia se quiser trazer comida para a casa à noite. No entanto, quando fisga a atenção de Bóris van Vintermer, patriarca da família mais rica do local, sua realidade começa aos poucos a se transformar. Requisitada para desempenhar funções de chefe da guarda de Aurora…

Editora: ‎Galera; 1ª edição (18 abril 2022); Páginas: ‎280 páginas; ISBN-10: 6559810836; ISBN-13: 978-6559810833; ASIN: B09V3925M2

Biografia do autor: Giulianna Domingues — ou Giu, como prefere ser chamada — é escritora de romance e fantasia e coordenadora de marketing. Gosta de ler e escrever histórias sobre mulheres imperfeitas, como ela. Sempre foi apaixonada pelo potencial que a fantasia tem de revelar verdades sobre nosso mundo, quem somos e o que sentimos. É isso que busca nas suas histórias — esse pedaço de verdade, diverso e único. Giu é feminista, bissexual e ansiosa, e isso está sempre presente nos seus textos. Atualmente, mora com seu marido em Nova York, onde vive com saudades perpétuas de um belo pão na chapa com requeijão. 

Leia trecho do livro

Capítulo 1

    Dimitria farejou o ar e sentiu o frio invadindo suas narinas e pulmões. Era o último dia do verão. No Norte isso significava que o inverno estava prestes a fazer sua cama branca e gélida. Claro, ainda havia o outono por vir – as árvores ficariam secas e perderiam seu viço para queimarem em laranjas e vermelhos – mas isso tudo aconteceria no curto espaço de semanas. O povo de Nurensalem sabia que no vale havia apenas duas estações: o frio, e a espera por ele.


    Para uma caçadora, o outono não era apenas um mau presságio – era o relógio que anunciava o fim da temporada de caça, para o bem ou para o mal. Um bom verão permitiria ao caçador alimentar sua família durante os duros meses frios que se aproximavam, senão… Ela preferia não pensar no “senão”. Por sorte, Dimitria não era somente uma caçadora – era considerada a melhor caçadora do Cantão da Romândia.


    Apesar do verão pouco produtivo – a escassez tinha sido notável naquele ano – havia ainda uma última chance de garantir algum sustento para sua pequena família, e estava ali, naquele último dia de verão. Na verdade, o dia havia virado noite: os rastros de sol remanescentes derretiam do lado esquerdo do céu, manchando a abóbada de laranja e cor-de-rosa. Do outro lado, era possível ver a noite cheia de estrelas, com seu cobertor de sombras escondendo o mundo.


    Era com isso que Dimitria contava: sua furtividade era precária quando iluminado pelo sol, mas perfeita uma vez que não houvesse mais luz. Ela achatou as costas largas contra a madeira do estábulo, sabendo que a escuridão também convidaria sua presa para o passeio. O urso que ela caçava devia pesar meia tonelada e ter quase dois metros de altura – mas também usava a noite para se esconder.


    Ela sabia que se tratava de um urso por causa dos rastros deixados em seu ataque anterior. O verão tinha sido escasso para ele também, e assolado pela fome desesperadora, o estábulo dos van Vintermer era um banquete. O urso tinha matado dois cavalos puro-sangue no primeiro ataque, e só não terminou de comê-los porque os gritos dos guardas da família o afugentaram. A experiência de Dimitria dizia que, apesar de o bicho ter conseguido arrancar um bom naco do primeiro cavalo, aquilo não tinha sido o suficiente para matar sua fome. Em breve o urso voltaria.


    Por isso mesmo Bóris van Vintermer a tinha contratado. Não que a perda de alguns cavalos pudesse abalar a riqueza do homem, mas aquele era seu estábulo particular – e ele abrigava o potro preferido de Astra van Vintermer, sua caçula. A ideia de derrubar um urso branco não atraía Dimitria, mas a oferta que o patriarca havia feito parecia irrecusável: por aquele tanto de dinheiro ela caçaria até o demônio. Especialmente com o inverno chegando…


    Seu fluxo de pensamentos foi interrompido pelo som de folhas secas se partindo. Era uma das vantagens de caçar no outono: nenhuma armadilha era melhor do que as folhas espalhadas pelo chão, partindo-se ao menor toque. 

    “Crack, crack…” Dimitria girou o corpo agilmente, tensionando uma flecha em seu arco e virando-o na direção do som. Sua mira era muito boa, mas ainda melhores eram as flechas encantadas que ela usava. Dimitria sentia o arco puxando levemente para a esquerda, e sabia que a magia estava procurando o alvo. Seu irmão, Igor, era quem fazia suas armas, e ela confiava mais nele do que em si mesma. Ela relaxou os músculos, e deixou que o arco a guiasse. A qualquer momento agora…


    Em um segundo o bicho apareceu. Era bem maior do que Dimitria esperava – pelo menos dois metros e meio de altura -, mas como ele tinha enfrentado um verão duro, exibia  uma pele flácida que mal ocultava suas costelas. Parecia um enorme casaco branco emplastrado de lama e sangue. Ao sentir o cheiro de Dimitria, ele arreganhou o focinho e avançou em sua direção com as garras à mostra.


    Ela rolou para o lado desviando do ataque e sentiu o impacto do animal contra a parede do estábulo. Dentro, os cavalos assustados relincharam – e isso fez com que o urso, enfeitiçado por sua fome, perdesse noção da caçadora. Ele investiu contra a madeira novamente e, mesmo com seu corpo emaciado, provocou rachaduras no estábulo. Dimitria apoiou-se em seu joelho, tensionando novamente a flecha e soltando-a com fluidez.


    Sua mira era quase perfeita e a arma encantada corrigiu a trajetória da flecha em alguns milímetros – para cravar no flanco esquerdo do urso. Ele urrou, virando-se novamente para Dimitria, cujo braço dobrado por cima da cabeça tentava apanhar mais flechas. Suas mãos, porém, encontraram o vazio. “Merda.” Ela viu a aljava, que havia se soltado durante o movimento, caída a alguns metros.


    O urso aproveitou sua hesitação e lançou o corpo contra ela, derrubando-a com um impacto dolorido. Ela deslocou o ombro debaixo do corpanzil do animal, segurando suas patas para evitar que as garras desfizessem seu rosto tal qual manteiga. Ainda assim, o urso conseguiu descer a pata direita pelo seu ombro, e Dimitria sentiu a carne se abrir como fogo enquanto um grito de dor escalava sua garganta. O urso urrou novamente e ela pôde ver pedaços de carne de cavalo ainda alojados entre os dentes afiados como facas. 


    “Facas. Facas!” Dimitria não vacilou. Alcançou a faca de caça presa em sua cintura e cravou a lâmina no pescoço do urso com um golpe violento. Ele rosnava de dor e mal conseguia reagir. O sangue jorrava do ferimento e banhava Dimitria em uma torrente quente e carmim.  Ela puxou a faca para baixo – abrindo uma linha vermelha que atravessava a jugular do animal. Em um segundo, os urros gorgolejaram até cessar – e o corpo do urso cedeu por cima de Dimitria, inerte.


    Dimitria agradeceu a todos os deuses que conhecia pela inanição do animal – não fosse isso, ela jamais teria conseguido desvencilhar-se da fera. Ela engolia o ar frio em espasmos fundos. Seu corpo estava coberto de sujeira e sangue, e ela sentiu uma dor aguda ao mover o braço. Por baixo dos retalhos de sua roupa de couro era possível ver a carne exposta do  ombro que o urso havia rasgado. Pelo menos com o dinheiro daquele trabalho ela poderia até reabastecer seu guarda-roupa.


    Mas na verdade não era nisso que Dimitria estava pensando. A dor que sentia ficou em segundo plano quando seus olhos pousaram no animal. Sim, ela era uma caçadora e sua relação com predadores como aquele era conflituosa, no mínimo. Caçador tem que caçar, caça tem que morrer: era assim a lei que regia a vida de Dimitria. A atividade trazia sustento para sua casa e propósito para sua vida, mas ela não sentia prazer em matar. Ao se aproximar do urso, a única coisa que sentia era tristeza.


    Dimitria ajoelhou-se ao lado dele, pousando a mão do braço bom em seu focinho. O nariz ainda estava quente, e ela sentia os pelos duros e brancos pinicando-lhe a mão. Não havia nada além dos sons de relinchos enchendo o ar gelado.

 
    — A uma noite longa e sem fome, querido urso. Que seu corpo alimente a terra, e que a terra me alimente para que um dia eu possa descansar a seu lado – disse Dimitria com a voz rouca e fraca. 


    Com os olhos voltados para o céu, ela deixou alguns minutos passarem. Apenas quando se levantou percebeu que estivera prendendo a respiração – e a soltou em um suspiro trêmulo. A névoa gelada espalhou-se com seu hálito.


    Era hora de pegar sua recompensa.
 

                                                                                                    ***


    Os inimigos de Bóris van Vintermer costumavam dizer que o mercador tinha feito sua fortuna por causa de sua lábia, e seus amigos provavelmente diriam a mesma coisa. Dimitria não sabia se era verdade – mas, se fosse, ele devia ter uma língua de prata, pois a mansão dos van Vintermer era uma das residências mais bonitas que ela havia visto.


    Uma coisa era certa: ela não pertencia àquele lugar. Dimitria riu ironicamente ao observar seus pés deixando marcas marrons e vermelhas no piso de mármore, e tentou se mover o mínimo possível para não pingar sangue e sujeira no saguão imaculado. Ainda assim, foi como se Bóris não tivesse percebido seu estado: o patriarca sorria abertamente ao descer a escada, e tomou a mão de Dimitria na sua para um aperto caloroso. 


    Bóris era um homem grande e largo, e por mais que o tempo tivesse desgastado suas arestas, era muito bonito. Seus cabelos ainda não davam sinais de desistir, e as ondas louras se acomodavam por cima de um par de olhos verdes e brilhantes. As sardas lhe garantiam um ar jovial quase inocente – que escondia um temperamento de ferro e o ótimo faro para negócios. 


    — Eu sabia que não me arrependeria de contratá-la, Coromandel. Há homens que podem derrubar um urso daqueles é claro, mas não com a sua eficiência. E você salvou Tornada, certamente o mais importante.


    — Tornada? — Dimitria levantou uma sobrancelha, apertando a mão de Bóris de volta. Nisso, uma cabeça ruiva saiu de trás do corpanzil do homem, com os cachos balançando alegremente.


    — Minha pônei. É Princesa Tornada Feldspato Estrela. A gente achava que era menino quando nasceu, por isso era Tornado, mas ela não tem o – 


    — Astra. — Bóris interrompeu a filha bem humorado, e pousou a mão livre na cabeça da garota. — Educação, filha. Acho que a senhorita Coromandel não precisa saber dos detalhes íntimos do seu pônei.


    — Minha pônei, papai. E a moça salvou a vida da Tornada. Pensando bem, talvez ela devesse chamar Princesa Tornada Feldspato Estrela Coromandel…


    — Dimitria. Pode me chamar de Dimitria. — A caçadora soltou a mão de Bóris, sorrindo sem jeito. — E foi um prazer salvar a Princesa. Falando nisso…


    Dimitria enfiou a mão no bolso e puxou a flecha que usara para atirar no urso, girando-a para que a ponta apontasse para si antes de oferecê-la para Bóris. Ele fechou os dedos ao redor da flecha, admirando-a. Era costume da caçadora deixar ao menos uma flecha com quem quer que a contratasse, como lembrança de um trabalho bem feito.


    — Muito bem. — Bóris guardou a flecha no próprio bolso. Seus olhos brilhavam. — Os guardas estão esperando com a sua recompensa do lado de fora, Dimitria. Há mais alguma coisa que eu possa oferecer a você antes de sua partida?


    “Um banho, um barril de cerveja do Berrante e uma cama cairiam bem. Além de alguma companhia.” Dimitria mordeu a língua, sem querer perder o cliente por causa de uma piada.


    — Nada que me venha em men-


    — Ah, papai, chame ela para jantar! — Astra puxou a manga do pai, os olhos como pires brilhantes. — Ela merece um jantar em sua honra, salvou o membro mais importante da nossa família.

    Bóris riu, bem humorado.

    — Sua irmã ia gostar de ouvir isso. — Ele se voltou para Dimitria, aparentemente incapaz de uma demonstração sequer de descortesia. — Adoraríamos tê-la conosco, Dimitria. 


    — Eu não posso aceitar. — ela sorriu sem jeito, sentindo-se imediatamente pouco à vontade: não tinha nem ao menos o que vestir para frequentar um jantar dos van Vintermer. Dimitria não era exatamente tímida, mas Bóris tinha um jeito de falar que parecia não admitir respostas negativas. 
    

    — Não só pode como deve. Um convite de Astra é uma ordem em nossa casa! — ele riu, bem humorado.
 

    — Olha, eu realmente –
 

    — Eu faço questão: amanhã, às oito horas. Mandarei um cocheiro buscá-la. — Bóris exibiu os dentes como uma barracuda, encaminhando Dimitria para a porta sem deixar que ela respondesse. — Você gosta de porco, certo?
 

     “Como se você tivesse me dado chance de dizer que não…” Dimitria suspirou resignada frente ao brilho do sorriso. Ela podia domar um urso, mas não havia como dobrar Bóris van Vintermer. 
 

    — Vejo vocês amanhã. 


    — Ótimo. Até amanhã, Dimitria.


    Quando a porta da mansão se fechou, Dimitria lembrou-se do que diziam sobre Bóris, e discordou mentalmente. Sua lábia não era igual a sua fortuna – devia ser muito maior.


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