Livro ‘Guerra cultural e retórica do ódio’ por João Cezar de Castro Rocha

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Crônicas de um Brasil pós-político

Guerra cultural e retórica do ódio é um ensaio escrito em prosa literária e que oferece uma descrição inovadora do bolsonarismo, entendido em sua dinâmica própria. Um dos pontos altos do livro é a análise da escalada golpista nos meses de abril e maio de 2020, assim como a previsão de novas tentativas, intrínsecas ao projeto autoritário. O bolsonarismo implica uma visão de mundo bélica, expressa numa linguagem específica, a retórica do ódio, e codificada numa estrutura de pensamento coesa, composta por labirínticas teorias conspiratórias. O livro desvenda cada um desses elementos. A visão de mundo bélica supõe a atualização da Lei de Segurança Nacional (LSN) em tempos democráticos – e são ameaçadoras as consequências desse gesto. Durante a formação do jovem militar Jair Messias Bolsonaro, estava vigente a LSN promulgada em 1969. Em seus 107 artigos, o substantivo morte aparece 32 vezes e 15 artigos prescreviam a pena de morte…

Editora: Editora e Livraria Caminhos; 1ª edição (23 fevereiro 2021); Páginas: 464 páginas; ISBN-10: 6589552029; ISBN-13: 978-6589552024; ASIN: B08XPFFPDJ

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Biografia do autor: João Cezar de Castro Rocha (Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1965) é um escritor, historiador, enxadrista e professor de literatura comparada. Foi aluno de René Girard e orientado por Hans Ulrich Gumbrecht na Universidade Stanford. Tido como um dos intelectuais mais importantes do Brasil da atualidade, seus estudos concentram-se na contribuição da teoria mimética para o contexto cultural da américa latina, bem como a discussão da atualidade do movimento antropofágico e dos escritos de Machado de Assis no momento contemporâneo.

Leia trecho do livro

Dizia a mim mesmo: tu ouves com teus próprios ouvidos e tu vês o cotidiano, justamente o cotidiano, o corriqueiro, o que é comum, exatamente o que é despojado de heroísmo, de brilho…
Victor Klemperer

Não escrevo um livro para que seja o último; escrevo um livro para que outros sejam possíveis — não necessariamente escritos por mim.
Michel Foucault

Esta história acontece em estado de emergência e calamidade pública. Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no mundo ma dê. Vós?
Clarice Lispector

APRESENTAÇÃO

O paradoxo e sua ruína

Não posso mover meus passos
por este atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amores e ódios vão:

Cecília Meireles, Romanceiro da
Inconfidência
.

No dia 1 de janeiro de 2019, o governo de Jair Messias Bolsonaro principiou de forma legítima, pois, no segundo turno da eleição de 2018, o candidato do inexpressivo Partido Social Liberal (PSL) obteve impressionantes 57.797.847 votos, que lhe asseguraram 55,13% dos votos válidos. Um êxito, portanto, incontestável. Não havia à época suspeitas de fraude na apuração dos votos, tampouco determinação do Tribunal Superior Eleitoral para a instrução de processos envolvendo a chapa do PSL.1 De fato, aceitar a derrota da candidatura que defendemos é condição sine qua non do processo democrático. Em contrapartida, não aceitar a vitória do outro é o primeiro passo adotado em aventuras golpistas.

E, aqui, a regra desconhece exceção — infelizmente.

(Claro: penso na atitude lamentável do então senador Aécio Neves: ao ser derrotado por pequena margem nas eleições presidenciais em 2014, i²niciou uma irresponsável escalada de ações políticas com a finalidade de inviabilizar o segundo mandato de Dilma Rousseff.³)

A agenda da campanha bolsonarista, conservadora e até mesmo reacionária nos costumes, neoliberal na condução da economia e de orientação política de direita — ou até mesmo de extrema-direita — foi aprovada pelos eleitores do presidente, que expôs seu programa sem nenhum tipo de censura ou de cuidados diplomáticos. Poucos candidatos foram tão cândidos na exposição de propósitos em geral inconfessáveis — a retirada de direitos trabalhistas, a relativização dos direitos humanos, a negação pura e simples de problemas ambientais, o flerteincômodo com posições autoritárias, um revisionismo histórico relativo à ditadura militar no mínimo preocupante. No dia 17 de abril de 2016, na sessão da Câmara dos Deputados que aprovou o relatório autorizando a abertura do processo de impeachment, o autêntico circo de horrores das justificativas esdrúxulas de voto teve seu momento culminante na performance do então deputado federal Jair Messias Bolsonaro e sua “homenagem” ao torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.

(Resgatemos a objetividade mínima no debate público: o coronel Ustra foi um torturador abjeto e, como tal, foi condenado. Consulte-se a minuciosa denúncia preparada pelo Ministério Público Federal de São Paulo, em 2014, com sentença confirmada posteriormente pelo Superior Tribunal de Justiça. Aliás, pelo seu notório passado obscuro, nunca chegou a general)

Podia-se acusar o candidato Messias Bolsonaro de muitas coisas, mas não de ser sutil. E, apesar de tudo, ele foi eleito presidente da República. Respeitar o resultado das urnas é um dever tão importante quanto é inalienável o direito de disputar eleições e de expressar suas convicções políticas. Esse silogismo elementar precisa ser aceito e é a minha premissa inicial. Negá-lo comprometeria o mínimo denominador comum de todo processo eleitoral. Reitero: nem sempre triunfa a candidatura que apoiamos, mas o princípio de alternância no poder é um valor tão essencial quanto a própria democracia; no fundo, são noções gêmeas.

(Se você apoiou ou ainda apoia o governo, não se entusiasme: o que vem pela frente é bem diferente do que você espera. Ou se, na posição oposta, você se identifica com o campo da esquerda democrática, não desista da leitura; no entanto, sem o reconhecimento da legitimidade do fenômeno eleitoral Jair Messias Bolsonaro, dificilmente conseguiremos dialogar com a sociedade.)

Neste ensaio, busco convencer o público leitor da grave ameaça representada pelo bolsonarismo à democracia em seu sentido mais primário, isto é, o direito à diferença. Sou movido por uma convicção ética profunda que vê no outro não um adversário, um inimigo a ser hostilizado e, no limite, eliminado, mas um outro eu, com quem posso aprender e, sobretudo, preciso dialogar.

Não há contradição no meu argumento!

O presidente Jair Messias Bolsonaro foi eleito democraticamente; ao mesmo tempo, as políticas públicas de seu governo são inequivocamente ilegítimas. O mandato presidencial não autoriza a destruição metódica das instituições associadas à educação, à ciência, aos direitos humanos, à proteção do meio ambiente, à pesquisa e à cidadania. Essa mesma investidura não justifica o endosso de ações autoritárias que constrangem a ordem democrática.

A fim de entender o agônico cenário brasileiro, proponho uma hipótese.

Melhor: busco deslindar um paradoxo.

O paradoxo da guerra cultural bolsonarista, como a interpreto: sem seu tempero, o bolsonarismo não consegue manter as massas digitais em mobilização permanente; com a ubíqua guerra cultural, porém, não é possível administrar uma realidade complexa como a brasileira, pois a busca constante de inimigos desfavorece a consideração de dados objetivos. Infelizmente, a crise mundial de saúde, provocada pela Covid-19, somente acentuou o inevitável colapso produzido por uma mentalidade conspiratória à frente de um país com as dimensões continentais do Brasil.

(Na verdade, a onipresença da guerra cultural não permitiria sequer manter estável um modesto núcleo familiar! E, sabemos muito bem, há famílias-franquia que desafiam logísticas as mais complexas.)

Em tom dramático: a guerra cultural é a origem e a forma do bolsonarismo, mas, por isso mesmo, será (ou já é?) a razão do fracasso rotundo do governo Bolsonaro.

Última advertência: o tema da guerra cultural é, por definição, transnacional e meta-histórico, envolvendo um conjunto considerável de referências teóricas produzidas em muitos idiomas, assim como uma série de práticas políticas mimetizadas em latitudes as mais diversas, especialmente eficazes no universo das redes sociais. De fato, um número crescente de estudos associa com agudeza o contexto local à cena internacional, numa abordagem comparativa de grande interesse. Este não é, contudo, meu propósito. Concentro-me deliberadamente na cena brasileira. E, nessa cena restrita, privilegio o estudo da mentalidade bolsonarista, a fim de trazer à baila aspectos relacionados à história da ditadura militar e à articulação de um movimento, incialmente subterrâneo, de reorganização da direita brasileira a partir de meados da década de 1980. Movimento que, na década de 2010, foi associado com incomum êxito à onda conservadora, especialmente no tocante a temas relacionados à educação sexual. Nesse campo, duas notícias falsas (fake news) tiveram um papel de destaque na vitória eleitoral de Jair Messias Bolsonaro: o inexistente “kit gay” e a deturpação completa de uma área de estudos, gender studíes, numa delirante “ideologia de gênero”.

(Na época da eleição em 2018, o ministro do Tribunal Superior Eleitoral, Carlos Horbach, ordenou que as referências ao “kit gay” fossem excluídas das páginas oficiais da campanha do candidato do PSL. No entanto, no circuito vertiginoso do WhatsApp, o inexistente material didático foi associado a uma farsa ainda maior: a “mamadeira erótica”. Retornarei ao tema no último capítulo.)


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