Livro ‘Eu achava que isso só acontecia comigo’ por Brené Brown

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A busca pela perfeição é exaustiva e implacável. Somos constantemente bombardeados pelas expectativas sociais que nos ensinam que ser imperfeito é sinônimo de ser inadequado. Para onde quer que se olhe, há mensagens nos dizendo quem, o que e como deveríamos ser. Dessa forma, aprendemos a esconder nossas lutas e nos proteger da vergonha, do julgamento, da crítica e da culpa, buscando segurança no fingimento e na perfeição. Brené Brown é referência no tema do poder da vulnerabilidade e tem inspirado milhões de pessoas com seus livros e palestras. Com base em sete anos de sua pesquisa inovadora e centenas de entrevistas, este livro revela uma verdade transformadora: nossas imperfeições são o que nos conectam uns aos outros e à nossa humanidade. Nossa cultura nos diz que devemos rejeitar nosso corpo, nossas histórias autênticas e até nosso verdadeiro eu a fim de nos adequar e sermos aceitos…

Editora: Editora Sextante; 1ª edição (11 fevereiro 2019); Páginas: 304 páginas; ISBN-10: 8543107113; ISBN-13: 978-8543107110; ASIN: B07NPH8GTT

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Biografia do autor: A DRA. BRENÉ BROWN, professora e pesquisadora na Universidade de Houston, estuda há duas décadas a coragem, a vulnerabilidade, a vergonha e a empatia. Escreveu os livros A coragem de ser imperfeito e Mais forte do que nunca, queocuparam o primeiro lugar na lista do The New York Times, e Eu achava que isso só acontecia comigo, todos lançados pela Editora Sextante.Brené também é fundadora e CEO da organização Brave Leaders, Inc., que leva a equipes, líderes, empreendedores e promotores de mudanças programas baseados em evidências para fomentar a coragem.Sua palestra “O poder da vulnerabilidade” é uma das mais vistas de toda a série de conferências TED, tendo sido assistida por mais de 45 milhões de pessoas.

Leia trecho do livro

Introdução

Ao ouvir a palavra vergonha, as pessoas costumam ter uma de duas reações: “Não sei bem o que você quer dizer, mas sei que não quero falar no assunto” ou “Ah, vergonha. Sei bem o que é, mas não quero falar sobre isso”. Como pesquisadora do tema, compreendo nossa relutância – a vergonha é tão poderosa que às vezes sentimos vergonha só de falar sobre vergonha. Mas depois de seis anos entrevistando centenas de mulheres, eis o que aprendi: todas nós experimentamos a vergonha. É uma emoção absolutamente universal.

Quanto menos compreendemos a vergonha e como ela afeta nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos, mais poder ela exerce sobre nossa vida. Porém, se encontramos a coragem para falar sobre vergonha e a compaixão para ouvir, podemos mudar a maneira como vivemos, amamos, criamos nossos filhos, trabalhamos e construímos os relacionamentos.

As pessoas costumam acreditar que a vergonha está reservada para uns poucos infelizes que sobreviveram a traumas terríveis, mas não é verdade. É algo que todos nós experimentamos. E, embora a vergonha pareça se esconder nos cantos mais inacessíveis, na verdade ela tende a espreitar por todos os lugares familiares, como aparência e imagem corporal, família, criação dos filhos, dinheiro e trabalho, saúde mental e física, vícios, sexo, envelhecimento e religião.

Este livro oferece informações, percepções e estratégias específicas para a compreensão da vergonha e para a construção da “resiliência à vergonha”. Nunca conseguiremos nos tornar completamente resistentes à vergonha. No entanto, podemos desenvolver a resiliência necessária para reconhecê-la, enfrentá-la de forma construtiva e crescer a partir de nossas experiências. Nas entrevistas, mulheres com alto nível de resiliência à vergonha demonstraram ter quatro características em comum. Refiro-me a elas como os quatro elementos da resiliência à vergonha. Eles compõem o cerne deste livro. À medida que aprendermos mais sobre a resiliência e começarmos a aplicar tais elementos, seremos capazes de começar a deixar para trás os subprodutos da vergonha – o medo, a culpa e a desconexão – e avançar na direção da coragem, da compaixão e da conexão de que precisamos para levar uma vida melhor e mais autêntica.

Há alguns anos dedico minha carreira ao estudo da vergonha e de seu impacto. Em minha pesquisa, tive a oportunidade de entrevistar mais de 300 mulheres de todas as idades, raças, etnias e classes sociais. Também voltei a entrevistar 60 mulheres que haviam aplicado algumas das estratégias deste livro para compreender quais delas tinham sido eficientes e que tipo de obstáculo essas mulheres haviam enfrentado.

Se você duvida do impacto da vergonha em nossa vida, vale a pena ler alguns trechos das minhas entrevistas. Nestes depoimentos, é possível distinguir a complexa trama que inclui vergonha, medo e expectativas culturais.

“O sexo é uma grande questão entre mim e meu marido. Algumas vezes é ótimo. Outras, começo a pensar no meu corpo e em quanto ele mudou nos últimos 10 anos. E entro em pânico. Imagino que ele esteja me julgando, me comparando com esses ideais que tenho na cabeça. Nesses momentos, me descontrolo. Arranjo uma briga ou faço qualquer coisa para escapar e voltar a vestir minhas roupas.”

“Certo dia eu passava por uma rua do bairro, quando parei no sinal ao lado de um carro cheio de rapazes. Eles olharam na nossa direção e sorriram. Devolvi o sorriso e cheguei a corar um pouco. Então, do nada, minha filha de 15 anos, sentada no banco de trás com a melhor amiga disparou: ‘Nossa, mãe, para de olhar para eles! O que você acha? Que eles estão paquerando você? Fala sério!’ Mal contive as lágrimas. Como pude ser tão estúpida?”

“Às vezes me olho no espelho e acho que estou bem. Mas outras vezes me acho feia e gorda. Fico totalmente arrasada… Mal consigo respirar. Sinto náusea e nojo. E só quero me esconder em casa para que ninguém me veja.”

“Estou com 41 anos e acabei de voltar a estudar. Metade do tempo não sei do que estão falando… Fico ali sentada, acenando com a cabeça como uma idiota. E me sinto uma fraude… como se não fosse inteligente o bastante para estar ali. Quando esses sentimentos tomam conta de mim, só tenho vontade de fugir… pegar a bolsa, sair e nunca mais voltar.”

“Para quem está de fora, minha vida parece muito boa. Um bom marido, uma boa casa, crianças fofinhas – o pacote completo. Para quem está dentro, a história é outra. Se nós dois não nos importássemos tanto com a opinião dos outros, pediríamos o divórcio. Mal nos falamos. Nossos filhos têm dificuldades nos estudos. Precisamos fazer doações absurdas à escola para garantir que não sejam expulsos. É cada vez mais difícil não perder o controle. De vez em quando sei que meus amigos vislumbram a verdade… É impossível não ver. Fico doente quando penso que podem enxergar por trás da fachada.”

“Sinto-me julgada constantemente em meu papel de mãe, como se nada do que eu fizesse fosse certo ou suficientemente bom. O pior é quando são as outras mães que me jogam para baixo. Um olhar de desaprovação de outra mãe tem o poder de me dilacerar por dentro.”

“Não conto para ninguém tudo que passei – não quero que sintam pena de mim ou me vejam de forma diferente. É mais fácil guardar o passado para mim. Só de pensar em ser culpabilizada ou julgada pelo meu passado, chego a sentir falta de ar.”

“Ninguém sabe como as coisas estão ruins com meu marido – pensariam mal dele, e de mim por ficar com ele. Vivo mentindo e inventando histórias para disfarçar. Quando minto, me sinto desonesta e envergonhada.”

Alguma dessas histórias lhe parece familiar? Para a maioria, a resposta é “sim”. A vergonha é universal. Em graus variados, todo mundo sabe o esforço que faz para se sentir confortável na própria pele em uma sociedade que dá tanta importância à perfeição e à adequação. Sabemos também como a dolorosa onda de emoção nos invade quando nos sentimos julgadas ou ridicularizadas por causa da nossa aparência, do nosso trabalho, da família, da forma como cuidamos dos filhos, como gastamos nosso dinheiro ou até mesmo por conta de experiências de vida sobre as quais não tivemos o mínimo controle. E nem sempre o julgamento ou a depreciação parte de outra pessoa. As mais dolorosas experiências do sentimento de vergonha costumam ser autoinflingidas.

O esforço para se sentir aceita e digna não dá trégua. Devotamos tanto de nosso tempo e energia tentando garantir que correspondemos às expectativas de todos e nos preocupando com o que pensam de nós que acabamos por sentir raiva, ressentimento e medo. Às vezes, encerramos essas emoções dentro de nós e nos convencemos de que somos pessoas ruins e de que talvez mereçamos a rejeição que tão desesperadamente tememos. Outras vezes, soltamos os bichos – gritamos com nossos parceiros e filhos sem nenhuma razão aparente, ou fazemos um comentário ácido com um amigo ou colega. De uma forma ou de outra, no fim, acabamos exaustas, oprimidas e sozinhas.

Perdemos uma extraordinária quantidade de tempo e energia enfrentando questões superficiais, que raramente resultam em mudança significativa e duradoura. Quando nos aprofundamos, descobrimos que é a vergonha que costuma nos levar a odiar nosso corpo, a temer a rejeição, a parar de correr riscos ou a ocultar experiências e partes de nossa vida que receamos que os outros julguem. Essa mesma dinâmica se aplica ao sentimento de ser atacada como mãe ou de ser burra demais ou desinformada demais para dar opiniões.

Até encararmos a influência da vergonha em nosso modo de agir, podemos consertar temporariamente alguns problemas pouco profundos, mas não seremos capazes de silenciar o disco arranhado em nossa cabeça que de repente berra uma versão de “alguma coisa está errada comigo”. Por exemplo, o sentimento de ser uma farsa no trabalho ou na escola raramente tem relação com nossa capacidade, mas sim com aquela temível voz dentro de nós que censura e pergunta: “Quem você pensa que é?” A vergonha nos obriga a valorizar tanto o que os outros pensam que perdemos a nós mesmas de vista enquanto tentamos atender às expectativas dos outros.

Vergonha: a epidemia silenciosa

Quando se passa anos estudando um tema como a vergonha, é fácil esquecer como o assunto desagrada ou assusta as pessoas. Meu marido me lembra constantemente de não levar para o lado pessoal se alguém faz aquela cara de “estou sentindo um cheiro ruim” assim que digo que meu objeto de pesquisa é a vergonha. Há alguns anos tive uma experiência que me ensinou muito sobre por que a coragem e a compaixão são tão críticas para a resiliência à vergonha.

Estava indo fazer uma palestra na Case Western Reserve University, em Cleveland. Enquanto me acomodava no assento da janela do avião, uma mulher cheia de energia sentou-se na cadeira do corredor. Eu a observara na área de embarque falando sem parar com outros passageiros que esperavam o voo e com funcionários da companhia aérea. Depois de fechar a passagem no corredor por quase cinco minutos, ela conseguiu enfiar suas bolsas sob o assento da frente. Então se virou para mim e se apresentou. Falamos durante um minuto sobre o clima em Houston, antes que ela me perguntasse:

– Então, o que você faz e por que está indo para Cleveland?

Por causa do barulho da decolagem, ergui um pouco a voz e disse:

– Sou pesquisadora e vou dar uma palestra na Case.

– Que maravilha! O que você pesquisa?

Ainda enfrentando o rugido das turbinas, eu me inclinei para perto dela e disse:

– Mulheres e vergonha.

Ela arregalou os olhos e soltou um “Uau!” entusiasmado. Em seguida se inclinou tanto para perto de mim que toda a parte superior de seu corpo ocupou o assento vazio entre nós.

– Mulheres e maconha! Isso é tão interessante! Fale mais.

A essa altura o avião estava novamente silencioso. Sorri e disse:

– Não, não trabalho com mulheres e maconha… mas com mulheres e vergonha.

– Vergonha? – perguntou ela num tom chocado e decepcionado.

– Isso mesmo. Estudo a vergonha e as diversas maneiras como ela afeta a vida das mulheres.

E assim acabou a conversa. Ela desviou os olhos e disse que precisava descansar um pouco. Durante três horas, ficamos em silêncio. De vez em quando, eu sentia que ela tentava espiar a tela do meu notebook. Das primeiras vezes, virei-me para ela com um sorriso, mas no mesmo instante ela fingia estar dormindo. Chegou a emitir um pequeno ronco, que eu sabia ser falso, pois ela não parou de balançar os pés.

De volta a Houston, jantei com uma colega que pesquisa violência. Estava ansiosa para contar minha história sobre as “mulheres e maconha” para alguém que pudesse se identificar com as dificuldades de trabalhar com um tema tão delicado. Depois de rirmos por “mulheres e maconha” ter sido considerado um tema preferível a mulheres e vergonha, ela confessou que a maioria das pessoas parecia bastante interessada na pesquisa dela e que, normalmente, era ela que fingia dormir no avião.

– Não consigo entender – ponderei. – São duas epidemias sérias. Será que as pessoas realmente acham a vergonha pior do que a violência?

Ela refletiu por um momento e então falou:

– Bem, não. Ambas são epidemias sérias, mas a vergonha é silenciosa. As pessoas compreendem a violência e conseguem falar sobre ela. Você, no entanto, estuda um tema que as pessoas aprenderam a não discutir. É tão perigoso quanto a violência, mas fingimos que não está acontecendo.

Acho que minha colega estava certa – a vergonha é uma epidemia silenciosa. É um problema de proporções epidêmicas, pois afeta a todos nós. O que a torna “silenciosa” é nossa incapacidade ou falta de disposição para falar abertamente sobre ela e explorar as formas como afeta nossa vida, nossa família, nossa comunidade e a sociedade de modo geral. Nosso silêncio, na verdade, obrigou a vergonha a se esconder abaixo da superfície, de onde permeia nossa vida pessoal e pública de forma destrutiva e insidiosa. A vergonha, no passado, foi largamente mal compreendida e desconsiderada pelos cientistas sociais, mas agora um número cada vez maior de pesquisadores e profissionais analisa seu papel em uma grande variedade de problemas mentais e de saúde pública, entre os quais depressão, transtornos de ansiedade, distúrbios alimentares, bullying, suicídio, abuso sexual e todos os tipos de violência, inclusive a familiar.

Como acontece com a crescente epidemia de violência, para muitos, a vergonha estranhamente se tornou uma forma de autoproteção e uma fonte popular de entretenimento. Xingamentos e assassinatos morais substituíram as discussões nacionais sobre religião, política e cultura. A vergonha é usada como uma ferramenta para criar, ensinar e disciplinar nossos filhos. Programas de televisão que prometem alianças impiedosas, traições, confrontos hostis, exclusão e humilhação pública alcançam altos índices de audiência de forma consistente. Ao mesmo tempo que usamos a vergonha para nos defender e nos entreter, tentamos compreender por que o mundo se tornou tão assustador, por que a política agora é um esporte sanguinolento, por que nossos filhos sofrem de altos níveis de estresse e ansiedade, por que a cultura popular parece estar tão decadente e por que as pessoas, em número cada vez maior, se sentem solitárias e desconectadas.

Como acontece com muitas epidemias, estamos tão focados no esforço de cuidar de nós mesmos e de nossa família que não enxergamos as ligações que permitem que o problema seja entendido e encarado como algo que ocorre em grande escala. Não conseguimos vê-lo em sua enormidade – achamos que se trata de alguma coisa pessoal ou de uma questão de autoestima, em vez de um sério problema social.

Para compreender melhor a experiência da vergonha, quero que conheça Susan, Kayla, Theresa e Sondra. Tive a oportunidade de entrevistá-las no início de minha pesquisa e de novo, anos mais tarde, depois de terem passado a aplicar as estratégias de resiliência à vergonha. Ao longo deste livro, suas histórias servirão como exemplos importantes de como é poderoso – e às vezes difícil – pôr em prática a coragem, a compaixão e a conexão.

Susan se aproximava dos 30 anos quando nos conhecemos. Ela estava casada havia três anos e tinha uma filha que acabara de celebrar o primeiro aniversário. Susan adorava o trabalho de fisioterapeuta, mas havia passado o ano anterior em casa com a bebê. Como a situação financeira da família ficou mais apertada, ela havia decidido voltar a trabalhar em meio período. Na nossa entrevista, recordou o dia em que achou que o trabalho perfeito havia caído em seu colo. Lembrou-se de como ficara encantada com o emprego. Não só recebera uma excelente oferta para trabalhar em meio período, como conseguira uma vaga para sua filha na creche da igreja que frequentava. Ansiosa por dividir a boa notícia, ela ligou para a irmã mais velha. Em vez de parabenizar Susan, a irmã reagiu dizendo: “Não entendo por que quis ter uma filha se não está interessada em cuidar dela.” Susan lembra que foi como levar um soco na boca do estômago. “Eu mal conseguia respirar”, contou ela. “Foi devastador. A primeira coisa que pensei foi que eu era uma péssima mãe. À noite, já estava quase descartando a proposta de emprego.”

Quando entrevistei Kayla, ela estava com 40 e poucos anos e tinha construído uma carreira de sucesso na publicidade. Morava sozinha numa cidade grande da Costa Leste. O pai de Kayla havia acabado de receber o diagnóstico de Alzheimer e ela lutava para equilibrar as pressões da carreira com o novo papel de principal cuidadora do pai. Kayla explicou que o mais difícil era lidar com a chefe, Nancy, e a descreveu como “o tipo de pessoa com quem nunca se deve compartilhar informações pessoais”. Quando lhe pedi que explicasse melhor, ela afirmou que a chefe havia aperfeiçoado a arte do ataque pessoal – quanto mais sabia sobre a vida de Kayla, mais munição armazenava. Dois anos antes, na época da morte da mãe, Kayla enfrentara uma depressão e contara a Nancy, que não teve o menor escrúpulo em abordar o assunto diante de outros colegas. Kayla sabia que, mesmo temendo ataques de Nancy, teria que faltar algumas vezes ao trabalho a fim de procurar um lugar onde pudesse instalar o pai. Por isso explicou a situação à chefe. Kayla ainda parecia chocada ao contar que, na primeira reunião da equipe depois da conversa, Nancy anunciara que Kayla seria afastada do projeto em que estava trabalhando. Kayla disse: “Ela olhou direto para mim e se dirigiu ao grupo: ‘Vocês conhecem Kayla. Ela está sempre fazendo algum drama.’” Kayla descreveu aquele momento como sendo de “pura paralisia”. “Eu congelei. Me senti tão pequena, tão exposta… Será que Nancy tinha razão? Sou mesmo maluca? Como pude ser tão estúpida a ponto de confiar nela?”

Quando conheci Theresa, ela estava com 35 anos e tinha três filhos com idades entre 3 e 11 anos. Descreveu uma experiência que provavelmente não durou mais do que cinco minutos, mas que representava para ela um de seus maiores conflitos. Theresa contou que, de pé diante do espelho, sentiu extrema ansiedade e ódio em relação ao seu corpo. Ela conta: “Era um daqueles dias em que nada cabia… Experimentei todas as calças jeans do armário.” Ela se pegou apalpando a parte interna das coxas e beliscando as dobras de gordura abaixo do sutiã, repetindo: “Isso é nojento, eu sou nojenta.” Theresa contou que o episódio foi ainda mais estressante porque os filhos estavam brigando por causa da televisão, em outro cômodo, enquanto o telefone tocava. Então começou a gritar com as crianças. “Alguém poderia atender o maldito telefone? Eu não sou a única que está ouvindo, droga!” Por fim, tapou o rosto com as mãos e começou a chorar. Quando afastou as mãos, viu o filho menor. Ele falou com voz assustada: “Mamãe  triste. Desculpa.” Ao fitá-lo, Theresa foi inundada por sentimentos de vergonha e culpa. Ela me contou que nunca esqueceria aquele dia e explicou: “Às vezes me canso de tudo: do meu corpo, dos meus filhos, da minha casa… da minha vida. Tenho essas imagens na cabeça de como eu gostaria que tudo fosse, e nunca nada é assim tão perfeito. Não consigo dar conta de tudo. Para completar, eu me sinto muito envergonhada quando desconto nas crianças.”

Sondra, professora do ensino médio, com 50 e poucos anos, parecia ao mesmo tempo zangada e triste quando me contou: “Eu adorava debater política com meu cunhado. Fizemos isso durante anos. Certa noite, no carro, quando voltávamos para casa depois de um domingo em família, meu marido me disse que odiava quando eu discutia com o irmão dele. Confessou que sempre detestara. Falou assim: ‘Donald é inteligente. Tem mestrado. Preferia que você não discutisse com ele.’ Então me disse que eu parecia ignorante e burra e que o deixava mal. Desde então fico totalmente retraída quando estou perto da família dele.”

Será que Susan, Kayla, Theresa e Sondra estão apenas enfrentando uma questão de autoestima? Não. A vergonha e a autoestima são questões bem diferentes. Sentimos vergonha. Pensamos na autoestima. A autoestima tem a ver com a forma como nos vemos – com nossos pontos fortes e limitações – ao longo do tempo. É como e o que pensamos de nós mesmos. A vergonha é uma emoção. É como nos sentimos quando passamos por determinadas experiências. Quando sentimos vergonha, não vemos o panorama geral. Não pensamos com clareza sobre nossos pontos fortes e nossas limitações. Apenas nos sentimos sozinhas, expostas e profundamente inadequadas. Minha amiga e colega Marian Makin descreveu a diferença entre a vergonha e a autoestima da seguinte forma: “Quando penso na minha autoestima, penso em quem sou em relação a quem gostaria de ser, penso de onde vim, o que me tornei, o que realizei. Quando sinto vergonha, sou levada a um lugar minúsculo onde perco a noção do contexto. Retorno a um lugar pequeno – não consigo ver mais nada. É apenas um lugar pequeno e solitário.”

Se essas histórias não tratam da autoestima, poderiam estar apenas relacionadas às pessoas que nos cercam? Será que o problema de Susan se resume a uma irmã cruel? Kayla apenas foi vítima de um comentário insensível? Será que a luta de Theresa para alcançar a perfeição é um caso isolado? O marido de Sondra é o único problema dela? A resposta para todas essas perguntas é “não”. Se olhar para os quatro exemplos relacionados a maternidade, trabalho, perfeccionismo e opinião, verá que a vergonha é a principal arma utilizada nessas guerras culturais.

Estamos constantemente ameaçando as mães com a vergonha de “não estarem fazendo o que é melhor para os filhos” ou por “tomarem decisões egoístas e ignorantes”. De forma similar, a experiência de Kayla exemplifica a cultura da vergonha que tomou conta de muitos ambientes de trabalho. Espera-se que possamos manter a vida profissional e a pessoal artificialmente compartimentalizadas para alcançar o sucesso. Embora nos digam (e queiramos acreditar) “Sua vida não se resume ao seu trabalho”, as mensagens dos chefes, dos colegas e da mídia contrariam essa afirmativa bem-intencionada com outra que diz “Você é exatamente o que você faz, quão bem você faz isso e o que você ganha para fazer”.

Em relação aos conflitos de Theresa, precisamos compreender que a vergonha é a voz do perfeccionismo. Quer falemos de aparência, trabalho, maternidade, saúde ou família, não é a busca do perfeccionismo que é dolorosa; é o não cumprimento de expectativas inalcançáveis que leva à dolorosa onda de vergonha. Por fim, a história de Sondra é um exemplo do poder da vergonha como uma ferramenta social usada para nos manter em silêncio. Nada é mais eficiente para nos silenciar do que a vergonha.

Como se pode ver, a vergonha é muito mais do que uma questão de comentários insensíveis ou de autoestima. É uma experiência humana básica que cada vez mais se torna parte discriminatória e destrutiva de nossa cultura. Durante certas épocas e em certas situações, todos nós lutamos contra sentimentos de não sermos bons ou adequados o bastante e de não termos o suficiente. Descobri que a forma mais eficiente de superar tais sentimentos de inadequação é compartilharmos nossas experiências. Claro, nesta cultura, contar nossa história exige coragem.

Coragem, compaixão e conexão

Coragem é uma palavra do coração. Sua raiz é cor – que deriva de coeur, coração em latim. Em uma de suas acepções mais antigas, a palavra coragem significava “dizer tudo que está no coração”. Essa definição modificou-se com o tempo e hoje costumamos associar coragem à bravura e a feitos heroicos. Mas, na minha opinião, essa definição não reconhece a força interior e o nível de compromisso exigidos de nós para de fato falar com sinceridade e abertamente sobre quem somos e nossas experiências – boas e ruins. Falar do fundo do coração é o que chamo de “coragem comum”.

Não sei onde a expressão coragem comum apareceu pela primeira vez, mas eu a encontrei em um artigo sobre mulheres e jovens de autoria da pesquisadora Annie Rogers. Acredito que a ideia esteja ligada à importância de contar nossas histórias. É especialmente difícil praticar a coragem comum na nossa atual cultura da vergonha – uma cultura cheia de medo, recriminação e desconexão. Porém, a prática das estratégias deste livro ajudará todas nós a recuperarmos a coragem e o poder, e até mesmo a iniciarmos uma mudança na cultura.

Para compreender como a vergonha é influenciada pela cultura, é necessário pensar na nossa infância ou no início da vida adulta e em quando aprendemos a importância de sermos apreciadas, de nos enquadrar e de agradar os outros. As lições costumavam ser ensinadas pela vergonha – às vezes de forma escancarada, às vezes disfarçadamente. De uma forma ou de outra, todas nós nos lembramos da sensação de ser rejeitada, diminuída, ridicularizada. Com o passar do tempo, aprendemos a temer esses sentimentos. Aprendemos a modificar nossos comportamentos, pensamentos e sentimentos para evitar a vergonha. No processo, mudamos a pessoa que éramos e, em muitos casos, a pessoa que somos agora.

Nossa cultura nos ensina sobre a vergonha – é ela que dita o que é aceitável e o que não é. Não nascemos ansiando por corpos perfeitos. Não nascemos com medo de contar nossas histórias. Não nascemos com o medo de envelhecer demais e acabarmos não sendo mais valorizadas. Não nascemos com o catálogo de uma loja sofisticada em uma das mãos e uma dívida arrasadora na outra. A vergonha vem de fora – das mensagens e das expectativas de nossa cultura. O que vem de dentro é uma necessidade muito humana de pertencimento e de relacionamento.

Somos programadas para a conexão. É biológico. Na primeira infância, essa necessidade é uma questão de sobrevivência. À medida que crescemos, ela nos faz prosperar – do ponto de vista emocional, físico, espiritual e intelectual. Conectar-se é crucial, pois todas nós temos a necessidade básica de nos sentirmos aceitas, de acreditarmos que fazemos parte de um grupo e
de sermos valorizadas pelo que somos.

A vergonha desfaz nossa conexão com os outros. De fato, costumo chamá-la de “medo da desconexão” – o medo de ser percebida como inadequada e indigna de aceitação ou acolhimento. A vergonha nos impede de contar nossas histórias e de ouvir as pessoas contarem as suas. Silenciamos nossas vozes e guardamos nossos segredos por medo da desconexão. Quando ouvimos outros falando da própria vergonha, costumamos recriminá-los como forma de nos proteger de sentimentos desconfortáveis. Ouvir alguém falar sobre uma experiência com a vergonha pode às vezes ser tão doloroso quanto experimentá-la em primeira mão.

Assim como a coragem, a empatia e a compaixão são componentes cruciais da resiliência à vergonha. A prática da compaixão nos permite ouvir a vergonha. A empatia, a mais poderosa ferramenta da compaixão, é uma habilidade emocional que nos permite reagir de forma significativa e solidária ao outro. A empatia é a capacidade de nos colocar no lugar do outro, de compreender o que alguém está vivenciando. Quando compartilhamos uma experiência difícil com alguém e essa pessoa reage de forma aberta, profundamente conectada, isso é empatia. Desenvolver a empatia pode enriquecer os relacionamentos que mantemos com nossos parceiros, colegas, parentes e filhos. No Capítulo 2, vou me debruçar sobre o conceito de empatia. Você vai entender como ela funciona, como podemos aprender a ser empáticos e por que o oposto de experimentar a vergonha é experimentar a empatia.

O pré-requisito para a empatia é a compaixão. Só é possível reagir com empatia se estivermos dispostos a ouvir a dor do outro. Pode-se pensar que a compaixão é uma virtude dos santos. Não é. Na verdade, a compaixão é possível para qualquer um que seja capaz de aceitar os conflitos que nos tornam humanos – nossos medos, imperfeições, perdas e vergonha. Quando alguém conta a própria história, só podemos reagir com compaixão se já tivermos assumido nossa própria história – com a vergonha e tudo o mais. A compaixão não é uma virtude – é um compromisso. Não é algo que temos ou não – é algo que escolhemos praticar. Podemos estar com alguém que sente vergonha e nos abrir o bastante para ouvir sua história e dividir sua dor?

Uma visão geral do livro

Este livro é dividido em 10 capítulos, além desta Introdução. No Capítulo 1, compartilho histórias e exemplos com o objetivo de desenvolver uma definição de vergonha e diferenciá-la de outras emoções como a culpa, a humilhação e o constrangimento. No Capítulo 2, exploro os aspectos básicos da resiliência: empatia, coragem, compaixão e conexão.

Os Capítulos 3 a 6 se concentram nos quatro elementos da resiliência à vergonha. Na minha pesquisa, descobri que mulheres com altos níveis de resiliência tinham quatro pontos em comum. Quando praticados em conjunto, esses quatro elementos levam à resiliência. Em cada um desses quatro capítulos, apresento estratégias específicas que podem ser usadas para desenvolver a resiliência à vergonha, além de informações sobre como superar alguns dos obstáculos mais comuns que surgem quando começamos a pôr em prática essas estratégias.

A cultura da vergonha é impulsionada pelo medo, pela recriminação e pela desconexão, e costuma ser uma poderosa incubadora para problemas como o perfeccionismo, os estereótipos, as fofocas e os vícios. Nos Capítulos 7 a 9, exploro essas e outras questões dentro do contexto do desenvolvimento e da manutenção da resiliência à vergonha. O capítulo final apresenta propostas para uma real mudança cultural: o que a resiliência à vergonha significa para nossos filhos, para os homens que fazem parte de nossa vida, para nossa vida espiritual, para nosso ambiente de trabalho e nossa família?

A vergonha é um assunto difícil. Porém, por mais dolorosas que sejam algumas das histórias, a franqueza crua de suas verdades confirma que as informações e as ideias deste livro são tremendas fontes de esperança e promessa para as mulheres. Acredito que somos todas capazes de desenvolver a resiliência à vergonha. Somos todas capazes de transformar a dor causada pela vergonha em coragem, compaixão e conexão. Igualmente importante: somos todas capazes de ajudar outras mulheres a fazerem o mesmo.

No entanto, é vital reconhecer a complexidade desse trabalho. Não se trata de “quatro passos simples” para chegar à resiliência nem de uma receita descomplicada para superar a vergonha. Respostas prontas não funcionam quando se trata de lidar com uma questão como a vergonha ou, aliás, com qualquer questão humana complexa. De fato, pode até ser motivo de vergonha acreditar que existem soluções simples para problemas complicados – tendemos a nos recriminar por não sermos capazes de “captá-las”.

Já foi dito que a verdadeira liberdade está em libertar os outros. No espírito dessa poderosa definição, minha maior esperança é que possamos superar nossas diferenças e nossa vergonha para compartilhar nossas histórias e nos conectar com aquelas que precisam ouvir: “Você não está sozinha.”


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