Livro ‘O Tempo entre Costuras’ por María Dueñas

Livro 'O tempo entre costuras' por María Dueñas
O maior best-seller de María Dueñas, com mais de 100 mil exemplares vendidos, agora em edição especial com capa dura Sira Quiroga é uma jovem costureira que, na Madri dos anos 1930, se apaixona por Ramiro. Ainda que mal o conheça, decide deixar o país por aquele novo amor. Mas o destino lhe reserva uma série de surpresas, a começar pelo desaparecimento de Ramiro pouco depois de chegarem ao Marrocos. A partir daí a jovem se converte, quase sem se dar conta, numa peça-chave na luta contra o fascismo europeu da ditatura franquista em sua Espanha natal ao nazismo na Alemanha. Comparada a Carlos Ruiz Zafón por sua prosa envolvente...
Capa dura: 480 páginas  Editora: Planeta; Edição: 1 (25 de outubro de 2017)  ISBN-10: 8542211251  ISBN-13: 978-8542211252  Dimensões do produto: 23,2 x 16,2 x 2,8 cm

Leia trecho do livro

PRIMEIRA PARTE

1

Uma máquina de escrever detonou meu destino. Foi uma Hispano-Olivetti, e dela me separou durante semanas o vidro de uma vitrina. Visto hoje, do parapeito dos anos passados, é difícil acreditar que um simples objeto mecânico pudesse ter potencial suficiente para alterar o rumo de uma vida e dinamitar em quatro dias todos os planos traçados para sustentá-la. Pois assim foi, e nada pude fazer para impedir.

Não eram, na realidade, grandes projetos os que eu acalentava na época. Tratava-se apenas de aspirações próximas, quase domésticas, coerentes com as coordenadas do local e do tempo que me coube viver; planos de futuro acessíveis, bastando esticar um pouco as pontas dos dedos. Naqueles dias, meu mundo girava lentamente ao redor de algumas presenças que eu julgava firmes e imperecíveis. Minha mãe sempre havia sido a mais sólida de todas elas. Era costureira, trabalhava em um ateliê de nobre clientela. Tinha experiência e bom gosto, mas nunca foi mais que uma simples costureira assalariada; uma trabalhadora como tantas outras que, durante dez horas diárias, acabava com as unhas e as pupilas cortando e costurando, experimentando e retificando peças destinadas a corpos que não eram o seu e a olhares que raramente teriam por destino sua pessoa. De meu pai eu sabia pouco, na época Quase nada. Nunca esteve por perto; e nem sua ausência me afetou. Jamais senti muita curiosidade em saber dele até que minha mãe, em meus oito ou nove anos, se aventurou a me fornecer algumas migalhas de informação. Que ele tinha outra família, que era impossível que vivesse conosco. Engoli aqueles dados com a mesma pressa e o pouco apetite com que matei as últimas colheradas dos legumes que tinha a minha frente: a vida daquele ser estranho me interessava bem menos que descer rapidamente para brincar na praça.

Eu nasci no verão de 1911, no mesmo ano em que Pastora Império se casou com El Gallo, veio à luz no México Jorge Negrete, e na Europa decaía a estrela de um tempo que chamaram de Belle époque. Ao longe, começavam a se ouvir os tambores daquilo que seria a primeira grande guerra e nos cafés de Madri lia-se, na época, El Debate e El Heraldo, enquanto La Chelíto, nos palcos, enlouquecia os homens mexendo descaradamente os quadris ao ritmo do cuplé. O rei Alfonso xm, entre uma amante e outra, conseguiu engendrar naqueles meses sua quinta filha legítima. Enquanto isso, no comando de seu governo estava o liberal Canalejas, incapaz de pressagiar que apenas um ano depois um excêntrico anarquista ia acabar com sua vida dando-lhe dois tiros na cabeça enquanto observava as novidades da livraria San Martín.

Cresci em um ambiente moderadamente feliz, com mais apertos que excessos, mas sem grandes carências nem frustrações. Fui criada em uma rua estreita de um bairro típico de Madri, ao lado da praça De la Paja, a dois passos do Palácio Real; a um pulo da agitação constante do coração da cidade, em um ambiente de roupa estendida, cheiro de água de lavadeira, vozes de vizinhas e gatos ao sol. Frequentei uma rudimentar escola em um local próximo: em seus bancos, previstos para duas pessoas, acomodávamo-nos de quatro em quatro, sem ordem e aos empurrões para recitar em voz alta La canción dei pirata e a tabuada. Ali aprendi a ler e escrever, a usar as quatro réguas e o nome dos rios que cortavam o mapa amarelado pendurado na parede. Aos doze anos, concluí minha formação e entrei, na qualidade de aprendiz, no ateliê em que minha mãe trabalhava. Meu destino natural.

Do ateliê de dona Manuela Godina, a proprietária, havia décadas saíam peças primorosas, excelentemente cortadas e cosidas, famosas em Madri inteira. Roupas de dia, vestidos de coquetel, casacos e capas que depois seriam ostentados por senhoras distintas em seus passeios pela Castelhana, no Hipódromo e no polo de Puerta de Híerro, ao tomar chá no Sakuska e quando iam às igrejas de segunda categoria. Passou-se algum tempo, porém, até que comecei a adentrar os segredos da costura. Primeiro, fiz de tudo no ateliê: retirava as brasas dos fogareiros e varria do chão os restos de tecido, aquecia no fogo o ferro de passar e corria sem parar para comprar linhas e botões na praça de Pontejos. Eu também era encarregada de levar às seletas residências os modelos recém-terminados embrulhados em grandes sacolas de tecido escuro; era minha tarefa favorita, o melhor entretenimento naquela carreira incipiente. Conheci, assim, os porteiros e motoristas das melhores casas, as donzelas, criadas e mordomos das famílias mais endinheiradas. Contemplei, sem mal ser vista, as mulheres mais refinadas, suas filhas e seus maridos. E, como uma testemunha muda, adentrei suas casas burguesas, palacetes aristocráticos e apartamentos suntuosos dos edifícios tradicionais. Em algumas ocasiões não chegava a ultrapassar as áreas de serviço e alguém do corpo de empregados cuidava de receber a roupa que eu portava; em outras, porém, incitavam-me a entrar até os quartos, e para isso eu percorria os corredores e vislumbrava os salões, e comia com os olhos os tapetes, os lustres, as cortinas de veludo e os pianos de cauda que às vezes alguém tocava e às vezes não, pensando em como seria estranha a vida em um universo como aquele.

Meus dias transcorriam sem tensão nesses dois mundos, quase alheia à incongruência que existia entre ambos. Com a mesma naturalidade, transitava por aquelas largas vias com passagens de carruagens e grandes portais, e pela trama enlouquecida das ruas tortuosas de meu bairro, sempre cheias de poças, dejetos, gritaria de vendedores e latidos pungentes de cães com fome; aquelas ruas pelas quais as pessoas sempre andavam com pressa e onde, ao ouvir “lá vai água!”, mais valia se proteger em algum lugar para evitar tomar um banho de urina. Artesãos, pequenos comerciantes, empregados regulares e diaristas recém-chegados à capital enchiam as casas de aluguel e dotavam meu bairro de sua alma de povo. Muitos deles mal ultrapassavam seus limites, a não ser por motivo de força maior; minha mãe e eu, porém, saíamos cedo a cada manhã, juntas e apressadas, para ir à rua Zurbano e nos integrar sem demora a nosso cotidiano afazer no ateliê de dona Manuela.

Do ateliê de dona Manuela Godina, a proprietária, havia décadas saíam peças primorosas, excelentemente cortadas e cosidas, famosas em Madri ínteíra. Roupas de dia, vestidos de coquetel, casacos e capas que depois seriam ostentados por senhoras distintas em seus passeios pela Castelhana, no Hipódromo e no polo de Puerta de Hierro, ao tomar chá no Sakuska e quando iam às igrejas de segunda categoria. Passou-se algum tempo, porém, até que comecei a adentrar os segredos da costura. Primeiro, fiz de tudo no ateliê: retirava as brasas dos fogareiros e varria do chão os restos de tecido, aquecia no fogo o ferro de passar e corria sem parar para comprar linhas e botões na praça de Pontejos. Eu também era encarregada de levar às seletas residências os modelos recém-terminados embrulhados em grandes sacolas de tecido escuro; era minha tarefa favorita, o melhor entretenimento naquela carreira incipiente. Conheci, assim, os porteiros e motoristas das melhores casas, as donzelas, criadas e mordomos das famílias mais endinheiradas. Contemplei, sem mal ser vista, as mulheres mais refinadas, suas filhas e seus maridos. E, como uma testemunha muda, adentrei suas casas burguesas, palacetes aristocráticos e apartamentos suntuosos dos edifícios tradicionais. Em algumas ocasiões não chegava a ultrapassar as áreas de serviço e alguém do corpo de empregados cuidava de receber a roupa que eu portava; em outras, porém, incitavam-me a entrar até os quartos, e para isso eu percorria os corredores e vislumbrava os salões, e comia com os olhos os tapetes, os lustres, as cortinas de veludo e os pianos de cauda que às vezes alguém tocava e às vezes não, pensando em como seria estranha a vida em um universo como aquele.

Meus dias transcorriam sem tensão nesses dois mundos, quase alheia à incongruência que existia entre ambos. Com a mesma naturalidade, transitava por aquelas largas vias com passagens de carruagens e grandes portais, e pela trama enlouquecida das ruas tortuosas de meu bairro, sempre cheias de poças, dejetos, gritaria de vendedores e latidos pungentes de cães com fome; aquelas ruas pelas quais as pessoas sempre andavam com pressa e onde, ao ouvir “lá vai água!”, mais valia se proteger em algum lugar para evitar tomar um banho de urina. Artesãos, pequenos comerciantes, empregados regulares e diaristas recém-chegados à capital enchiam as casas de aluguel e dotavam meu bairro de sua alma de povo. Muitos deles mal ultrapassavam seus limites, a não ser por motivo de força maior; minha mãe e eu, porém, saíamos cedo a cada manhã, juntas e apressadas, para ir à rua Zurbano e nos integrar sem demora a nosso cotidiano afazer no ateliê de dona Manuela.

Depois de dois anos no ateliê, decidiram que havia chegado o momento de eu aprender a costurar. Aos catorze anos comecei com o mais simples: ganchinhos, chuleados, alinhavos. Depois vieram as casas de botão, os pespontos e as bainhas. Trabalhávamos sentadas em pequenas cadeiras de junco, encurvadas sobre tábuas apoiadas nos joelhos; nelas apoiávamos nosso trabalho. Dona Manuela atendia as clientes, cortava, provava e ajustava. Minha mãe tirava as medidas e se encarregava do resto: costurava o mais delicado e distribuía as demais tarefas, supervisionava sua execução e impunha o ritmo e a disciplina a um pequeno batalhão formado por meia dúzia de costureiras maduras, quatro ou cinco mulheres jovens e algumas aprendizes tagarelas, sempre com mais vontade de rir e fofocar que de trabalhar. Algumas se saíram boas costureiras, outras não foram capazes e ficaram para sempre com as funções menos gratas. Quando uma ia embora, outra nova a substituía naquele lugar agitado, incongruente com a serena opulência da fachada e a sobriedade da sala luminosa a que só as clientes tinham acesso. Elas, dona Manuela e minha mãe, eram as únicas que podiam usufruir de suas paredes forradas cor de açafrão; as únicas que podiam se aproximar dos móveis de mogno e pisar no chão de carvalho que nós, as mais novas, nos encarregávamos de encerar com trapos de algodão. Só elas recebiam de quando em quando os raios de sol que entravam pelas quatro altas varandas voltadas para a rua. O resto da tropa permanecia sempre na retaguarda: naquele gineceu gelado no inverno e infernal no verão que era nosso ateliê, naquele espaço de fundos e cinza que tinha apenas duas janelinhas que davam para um escuro pátio interno, e onde as horas passavam como sopros de ar em melo ao cantarolar de canções e o barulho de tesouras.

Aprendi rápido. Eu tinha dedos ágeis que logo se adaptaram ao contorno das agulhas e ao contato dos tecidos, às medidas, às peças e aos volumes. Molde díanteíro, contorno de peito, comprimento de perna. Cava, boca de calça, viés. Aos dezesseis anos aprendi a distinguir os tecidos, aos dezessete, a apreciar suas qualidades e a calibrar seu potencial. Crepe da China, musselina de seda, georgette, chantilly. Passavam-se os meses como em uma roda-gigante: nos outonos fazendo casacos de bons tecidos e ternos de meia-estação, nas primaveras costurando vestidos voláteis destinados às férias cantábricas, longas e alheias, em La Concha e El Sardinero. Completei dezoito anos, dezenove. Iniciei-me pouco a pouco no manejo do corte e na confecção das partes mais delicadas. Aprendi a montar golas e colarinhos, a prever caimentos e antecipar acabamentos. Eu gostava do meu trabalho, era feliz com ele. Dona Manuela e minha mãe me pediam opinião às vezes, começavam a confiar em mim. “A menina tem mão e olho, Dolores”, dizia dona Manuela. “É boa, e vai ser ainda melhor se não se desviar. Melhor que você, se bobear.” E minha mãe continuava trabalhando, como se não a ouvisse. Eu também não levantava a cabeça de meu tablado, fingia não ter ouvido nada. Mas, disfarçadamente, olhava para ela de soslaio e via em sua boca cheia de alfinetes aflorar um levíssimo sorriso.

Passavam-se os anos, passava a vida. Mudava também a moda e a seus ditados se acomodava o trabalho do ateliê. Depois da guerra europeia chegaram as linhas retas, abandonaram-se os corpetes e as pernas começaram a se mostrar sem sombra de rubor. Mas, quando os felizes anos 1920 chegaram ao fim, a cintura dos vestidos voltou a seu lugar natural, as saías se alongaram e o recato tornou a se impor em mangas, decotes e vontades. Pulamos, então, para uma nova década e chegaram mais mudanças. Todas juntas, imprevistas, quase aos montes. Completei vinte anos, veio a República e conheci Ignácio. Foi em um domingo de setembro em La Bombilla; em um baile tumultuado abarrotado de garotas de ateliês, maus estudantes e soldados de licença. Ele me tirou para dançar, me fez rir. Duas semanas depois, começamos a fazer planos para casar.

Quem era Ignacio e o que representou para mim? O homem da minha vida, pensava então. O garoto tranquilo que intuí destinado a ser o bom pai dos meus filhos. Já havia chegado à idade em que, para as garotas como eu, sem oficio nem beneficio, não restavam multas opções além do casamento. O exemplo de minha mãe, criando-me sozinha e trabalhando para isso de sol a sol, jamais me havia parecido um destino apetecível. E em Ignacío encontrei um candidato idôneo para não seguir os passos dela: alguém com quem passar o resto da minha vida adulta sem ter de acordar a cada manhã com a boca cheia de sabor de solidão. Não me liguei a ele por uma paixão arrasadora, mas sim por um afeto intenso e pela certeza de que meus dias a seu lado transcorreriam sem pesares nem estardalhaços, com a doce suavidade de um travesseiro.

Ignacio Montes, eu acreditei, seria o dono do braço ao qual me agarraria em mil passeios, a presença próxima que me proporcionaria segurança e abrigo para sempre. Dois anos mais velho que eu, magro, afável, tão fácil quanto doce. Tinha boa estatura e poucas carnes, maneiras educadas e um coração no qual a capacidade para me amar parecia se multiplicar com as horas. Filho de uma viúva castelhana com o dinheiro bem contado debaixo do colchão; residente com intermitências em pensões de pouca monta; aspirante iludido a profissional da burocracia e eterno candidato a todo ministério capaz de lhe prometer um salário vitalício. Guerra, Governo, Fazenda. O sonho de 3 mil pesetas ao ano, 241 ao mês: um salário fixo para todo o sempre em troca de dedicar o resto dos seus dias ao mundo manso dos departamentos e antessa-las, dos mata-borrões, do papel-carbono, dos carimbos e dos tinteiros. Em cima disso planejamos nosso futuro: na esteira da quietude de um funcionalismo que, chamada após chamada, se negava obstinadamente a incorporar meu Ignacio em sua folha de pagamento. E ele insistia sem desalento. E em fevereiro tentava na pasta da Justiça e em junho na da Agricultura, e começava tudo de novo.

E, enquanto isso, incapaz de se permitir distrações caras, mas disposto até a morte a me fazer feliz, Ignacío me agradava com as humildes possibilidades que seu paupérrimo bolso lhe permitia: uma caixa de papelão cheia de bíchos-da-seda e folhas de amoreira, pacotinhos de castanhas assadas e promessas de amor eterno sobre a relva embaixo do viaduto. Juntos ouvíamos a banda de música do parque do Oeste e remávamos nas canoas de Retiro nas manhãs de domingo em que havia sol. Não havia festa com balanço e realejo a que não fôssemos, nem xotes que não dançássemos com precisão de relógio. Quantas tardes passamos em Las Vístillas, quantos filmes vimos em cinemas de bairro. Uma horchata valenciana era, para nós, um luxo, e um táxi, unia quimera. A ternura de Ignacío não era exagerada, porém, não tinha fim. Eu era seu céu e as estrelas, a mais bonita, a melhor. Meu cabelo, meu rosto, meus olhos. Minhas mãos, minha boca, minha voz. Eu inteira configurava para ele o insuperável, a fonte de sua alegria. E eu o ouvia, chamava-o de bobo e me deixava amar.

A vida no ateliê naqueles tempos marcava, não obstante, um ritmo diferente. Tornava-se difícil, incerta. A Segunda República havia infundido um sopro de agitação na confortável prosperidade do ambiente de nossas clientes. Madri andava convulsionada e frenética, a tensão política impregnava todas as esquinas. As boas famílias prolongavam até o infinito seus veraneios no Norte, desejosas de permanecer à margem da capital inquieta e rebelde em cujas praças anunciavam o Mundo Obrero enquanto os proletários descamisados da periferia adentravam sem reservas a Porta do Sol. Os grandes carros particulares começavam a rarear pelas ruas, as festas opulentas também. As velhas damas enlutadas rezavam novenas para que Azaña caísse logo e o barulho das balas se tornava cotidiano quando se acendiam os faróis a gás. Os anarquistas queimavam igrejas, os falangistas sacavam pistolas com pose de valentões. Com frequência crescente, os aristocratas e altos burgueses cobriam com lençóis seus móveis, demitiam os empregados, trancavam as janelas e partiam com urgência para o exterior, passando tranquilamente joias, medos e dinheiro pelas fronteiras, sentindo saudade do rei exilado e de uma Espanha obediente que ainda tardaria a chegar.


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