Livro ‘O romance de formação’ por Franco Moretti

Livro 'O romance de formação' por Franco Moretti
A trajetória do romance de formação no século de ouro da narrativa europeia. Neste livro extraordinário, Franco Moretti analisa o surgimento, o auge e a decadência do romance de formação, “forma simbólica” de uma modernidade fascinante e perigosa, na qual os representantes nada heroicos da nova classe média europeia buscam responder a uma questão fundamental: é possível uma vida feliz e com sentido? Sob o impacto da Revolução Francesa, Goethe e Austen buscam o difícil equilíbrio entre a liberdade individual e os constrangimentos da sociedade. As guerras napoleônicas abrem novos rumos para a prosa do mundo, e Moretti nos mostra que os heróis de Stendhal e Púchkin já não se adaptam aos ideais da “normalidade”...
Capa comum: 416 páginas
Editora: Todavia; Edição: 1 (16 de janeiro de 2020)
Idioma: Português
ISBN-10: 6580309830
ISBN-13: 978-6580309832
Dimensões do produto: 20,8 x 13,6 x 2,4 cm
Peso de envio: 522 g

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Leia trecho do livro

Prefácio de 1999

A ideia deste livro remonta ao verão de 1979; a pesquisa, a 1979‑84, e a redação, a 1981-5. Desde então, a cena cultural mudou bastante, assim como a crítica literária, e também, de maneira mais modesta, o meu modo de trabalhar. Aqui buscarei discutir algumas dessas novidades, mesclando reflexões retrospectivas, atualização bibliográfica e algumas ideias novas. São como anotações à margem; uma espécie de ponte entre o livro que escrevi então (e que reapresento sem nenhuma modificação) e aquele que talvez escreverei agora.

O romance como paixão calma

No quarto capítulo do segundo livro de Os anos de aprendi zagem de Wilhelm Meister — o grande arquétipo do Bildungs-roman , ou romance de formação europeu —, Wilhelm chega a uma cidadezinha de província e decide se deter ali por alguns dias. Entra no pátio da hospedaria, põe-se a observar uns operários que estão montando um palco quando se aproxima dele uma jovem que pretende lhe vender algumas flores. Ele as compra, e então, à janela de outra estalagem, surge uma mulher que parece fitá-lo e que, instantes depois, manda um rapazote lhe pedir as flores. Wilhelm as entrega, começa a subir a escada e de repente cruza com “uma jovem criatura, que vinha descendo os degraus aos pulos” ( Wilhelm Meister , II , 4, p. 100). Ele pergunta quem ela é, ela o olha de esguelha e foge sem responder. Um andar acima, alguém lhe oferece a espada, passam ao combate. Depois começam a conversar, mas são interrompidos pelo tumulto de um grupo de acrobatas que anunciam seu espetáculo da noite.

No pequeno livro cinza das edições Bur em que li pela primeira vez Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister , essas duas páginas ficaram em branco: nenhum grifo, nenhuma anotação, nada. Sinal de que mergulhei nelas distraído, esperando episódios célebres como a discussão sobre Hamlet ou a leitura sobre o nobre e o burguês, ou ainda a morte de Mignon. Era lá que esperava encontrar a chave de Wilhelm Meister , o resto era pano de fundo, interlúdio; algo lento e viscoso, em que os projetos de Wilhelm eram continuamente interrompidos e desviados, e o sentido do todo corria o risco de se esvair. “Prosa do mundo”, dizia Hegel: verdade. É como no grande Bildungsroman cinematográfico de Edgar Reitz ( Die zweite Heimat [A segunda pátria]): a noite é filmada em cores vivíssimas, reluzentes — mas o dia é sempre filmado em um branco e preto meio opaco.

Foi só mais tarde, trabalhando em O romance de formação, que comecei a mudar de ideia e a suspeitar de que na repetição tranquila e regular de episódios como aquele da estalagem residia, na realidade, o verdadeiro segredo do livro. Sejamos claros: o teatro, Mignon, a alma bela, a Sociedade da Torre, tudo isso é importante. Mas a contribuição decisiva de Goethe para o “meio milênio burguês” (Thomas Mann) reside noutro lugar: não nas grandes reviravoltas, mas sim em ter tornado narrativamente ativa — “interessante” — a realidade cotidiana. Como os cem encontros bem-sucedidos e malsucedidos que se desenrolam sem pressa nas 26 horas de Heimat, os desvios periféricos da estalagem de Goethe são também sempre uma chance, uma possibilidade que se abre: Wilhelm não “reconhece” Mignon, é verdade (tampouco Philine ou Laerte), mas ainda assim a encontrou. Alguma coisa aconteceu.

É pouco? Pode ser; todavia essa escolha me faz pensar na grande figura do capitalista de Weber, que prefere um lucro limitado, mas seguro, às vagas seduções da aventura. Pois bem, Wilhelm Meister compartilha o mesmo estado de espírito: seus episódios têm geralmente um interesse narrativo limitado, mas não são desprovidos de certo interesse. E assim, para parafrasear outro grande historiador da índole burguesa, a leitura do romance torna-se — pela primeira vez na história — uma “paixão calma”.

Perdi minha subjetividade, mas encontrei um mundo, disse Goethe a propósito da viagem à Itália, e são palavras que permanecem verdadeiras para o mundo “diurno” de Austen e Dickens, de Balzac e George Eliot: a vida ofereceu menos do que o esperado — porém ofereceu algo a mais, e inesperado. É o milagre, ou talvez a miragem simbólica da onda ascendente do Bildungsroman entre 1789 e 1848: um equilíbrio até demasiadamente harmonioso entre os vínculos da socialização moderna e suas vantagens; entre o sentido que se perde ao longo do caminho e aquele que é encontrado. Em seguida, depois do terremoto da metade do século, o mecanismo se enrijece, torna-se obscuro; [1] tem início a parábola descendente do romance de formação, que terminará — digamos, por volta de 1914 — nos dolorosos traumas de Törless, América ou Dedalus do Retrato do artista quando jovem. [2]

Livro 'O romance de formação' por Franco Moretti


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