Elisabeth sempre aprendeu que feiticeiros são maus por natureza, corrompidos pela magia demoníaca que dominam. Uma órfã criada em uma das Grandes Bibliotecas de Austermeer, ela cresceu rodeada pelos grimórios ― livros mágicos que sussurram nas prateleiras, estremecem sob correntes de ferro e se transformam em monstros assustadores quando são provocados. Seu maior sonho é se tornar uma Guardiã da Biblioteca e proteger seu reino contra a feitiçaria, mas uma sabotagem faz com que Elisabeth se torne a principal suspeita de um crime que não cometeu. Agora, forçada a ir para a capital enfrentar a justiça, ela só tem dois aliados: o feiticeiro Nathaniel Thorn e o misterioso criado dele, Silas. Não demora muito até que a garota perceba que está envolvida em uma conspiração muito maior do que esperava… E incrivelmente mais perigosa. À medida que sua aliança com Nathaniel se torna cada vez mais forte…
Editora: Literalize; 1ª Edição (4 setembro 2020); Páginas: 527 páginas; ISBN-13: 978-6599166105; ISBN-10: 6599166105
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Biografia do autor: Margaret Rogerson é autora dos best-sellers o New York Times An Enchantment of Ravens, Sorcery of Thorns e Vespertine. Ela é bacharel em antropologia cultural pela Universidade de Miami. Quando não está lendo ou escrevendo, ela gosta de desenhar, jogar, fazer pudim e assistir a mais documentários do que é socialmente aceitável (de acordo com alguns). Ela mora perto de Cincinnati, Ohio, ao lado de um jardim cheio de beija-flores e rosas. Visite-a em MargaretRogerson.com.
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UM
A morte chegou à Grande Biblioteca de Summershall no cair da noite. Veio de carruagem. Elisabeth esperou no pátio, de onde viu os cavalos arrancarem através do portão com olhares selvagens, espumando pela boca. Lá no alto, um resquício de sol poente ardia nas janelas da torre da Grande Biblioteca como se as salas pegassem fogo por dentro — mas a luz se recolheu rapidamente, subindo e encolhendo, puxando longos fios de sombra dos anjos e gárgulas que guardavam os parapeitos manchados pela chuva.
Um selo dourado brilhava na lateral da carruagem, que parou de repente: uma pena e uma chave cruzadas, o símbolo do Colégio. Barras de ferro transformavam o banco de trás da carruagem em uma cela de prisão. Apesar do frio da noite, as mãos de Elisabeth estavam encharcadas de suor.
— Scrivener — disse a mulher a seu lado. — Trouxe o sal? As luvas?
Elisabeth tateou as tiras de couro cruzadas em seu peito, procurando as bolsinhas amarradas, a latinha de sal pendurada no quadril.
— Trouxe, Diretora.
Só lhe faltava uma espada, mas ela só teria direito a uma quando se tornasse guardiã, depois de anos de treinamento no Colégio. Poucos bibliotecários chegavam tão longe. Em geral, desistiam ou morriam antes.
— Que bom.
A Diretora hesitou. Era uma mulher distante e elegante, com feições brancas como gelo e cabelo vermelho como fogo. Uma cicatriz descia de sua têmpora esquerda até o queixo, franzindo a bochecha e repuxando constantemente um canto da boca. Assim como Elisabeth, ela trazia tiras de couro cruzadas no peito, mas vestia um uniforme de guardiã por baixo, em vez do manto de aprendiz. A luz das lamparinas cintilava nos botões de latão da jaqueta azul-escuro e nas botas engraxadas. A espada embainhada ao seu lado era fina e pontuda, com o pomo cravado de granadas.
Aquela espada era famosa em Summershall. Se chamava Demonicida, e a Diretora a usara para lutar contra um Malefict quando só tinha dezenove anos. Foi então que levou a cicatriz, que diziam causar agonia violenta quando ela falava. Elisabeth duvidava da precisão dos rumores, mas era verdade que a Diretora escolhia palavras com cuidado, e certamente nunca sorria.
— Lembre-se — disse a Diretora, afinal. — Se ouvir uma voz na cabeça quando chegarmos ao cofre, não escute o que diz. É um Grau Oito, tem centenas de anos e não está para brincadeira. Desde que foi criado, enlouqueceu dezenas de pessoas. Está pronta?
Elisabeth engoliu em seco. O nó na garganta a impediu de responder. Ela mal podia acreditar que a Diretora falava com ela, muito menos que a convocara para ajudar a transportar uma entrega para o cofre. Normalmente uma responsabilidade dessas era muito acima do nível de uma aprendiz de bibliotecária. Esperança a sacudia por dentro como um passarinho preso em uma casa, voando, caindo e voando de novo, se exaurindo pela promessa do céu aberto e distante. Terror a seguia como sombra.
“Ela está me dando uma oportunidade de provar que vale a pena me treinar como guardiã”, pensou. “Se eu falhar, morrerei. Pelo menos assim terei serventia. Podem me enterrar no jardim para alimentar os rabanetes.”
Secando as mãos suadas no manto, ela assentiu.
A Diretora avançou pelo pátio e Elisabeth a seguiu, esmagando cascalho a cada passo. Um fedor violento azedou o ar quando se aproximaram, como o cheiro de couro encharcado apodrecendo na praia. Elisabeth tinha crescido na Grande Biblioteca, cercada pelo cheiro de tinta e pergaminho dos volumes mágicos, mas isso era muito distante do que costumava fazer. O fedor fez seus olhos arderem, os braços tremerem de calafrio. Até os cavalos estavam nervosos: forçavam o cabresto, espalhando cascalho e ignorando as tentativas do cocheiro de acalmá-los. De certa forma, ela os invejava, pois pelo menos não sabiam o que traziam desde a capital.
Duas guardiãs desceram da carruagem, mãos encostadas na bainha da espada. Elisabeth se obrigou a manter-se firme quando elas a encararam. Em vez de se esquivar, empertigou a coluna e ergueu o queixo, tentando retribuir à expressão dura. Talvez ela nunca recebesse uma espada, mas podia ao menos parecer suficientemente corajosa para empunhá-la.
Em um chacoalhar das chaves da Diretora, as portas traseiras da carruagem se abriram, soltando um gemido arrastado. A princípio, no escuro, a cela forrada de ferro parecia vazia. Até que Elisabeth enxergou um objeto no chão: uma arca quadrada e lisa de ferro, trancada com dezenas de cadeados. Para um leigo, as precauções pareceriam absurdas — por pouco tempo. No silêncio crepuscular, um baque reverberou pela arca, forte o suficiente para sacudir a carruagem e fazer as portas balançarem. Um dos cavalos gritou.
— Rápido — disse a Diretora, pegando uma das alças da arca.
Elisabeth pegou a outra alça. Elas dividiram o peso e carregaram até uma porta aberta abaixo de uma inscrição entalhada, decorada por um anjo chorando de cada lado. OFFICIUM ADUSQUE MORTEM, dizia o texto, escondido pela sombra. O lema dos guardiões. Dever até a morte.
Entraram em um corredor de pedra comprido, iluminado pelo fogo bruxuleante das tochas. O peso inerte da arca já estava machucando o braço de Elisabeth. Não tinha mexido de novo, mas isso não a tranquilizava, pois ela suspeitava o que significava: o livro ali dentro estava ouvindo. Esperando.
Outro guardião cuidava da entrada do cofre. Quando viu Elisabeth ao lado da Diretora, seus olhinhos faiscaram de ódio. Era o guardião Finch, um homem envelhecido com cabelo grisalho curto e um rosto inchado no qual os traços pareciam se enfiar, como passas no pudim. Entre os aprendizes, ele era infame por ter a mão direita muito maior do que a esquerda, de tanto músculo exercitado ao chibatá-los.
Ela apertou a alça da arca até os dedos ficarem brancos, instintivamente se preparando para um golpe, mas Finch não faria nada na frente da Diretora. Resmungando baixinho, ele puxou uma corrente. Pouco a pouco, a grade subiu, erguendo os dentes pretos e pontudos acima delas. Elisabeth deu um passo à frente.
A arca sacudiu.
— Cuidado — ralhou a Diretora quando as duas foram jogadas na parede de pedra, quase perdendo o equilíbrio.
Elisabeth sentiu frio na barriga. A bota pendia na beira de uma escadaria espiral que se enroscava vertiginosamente ao fundo da escuridão.
Ela foi tomada pela verdade horrível: o grimório queria que elas caíssem. Ela imaginou a arca quicando pela escada, atingindo as lajes lá embaixo, arrebentando… e teria sido culpa dela…
A Diretora segurou seu ombro.
— Tudo bem, Scrivener. Não aconteceu nada. Segure o corrimão, continue.
Com esforço, Elisabeth se afastou do olhar de reprovação de Finch. Desceram, as duas. O frio subterrâneo emanava do fundo, cheirando a pedra gelada, mofo e um odor menos natural. Da pedra em si escorria a maldade das coisas antigas que definhavam há séculos na escuridão — consciências que não dormiam, mentes que não sonhavam. Abafado pelos milhares de quilos de terra, o silêncio era tanto que ela ouvia o próprio sangue bombeando no ouvido.
Tinha passado a infância explorando os muitos cantinhos e esconderijos das Grande Biblioteca, se metendo nos seus inúmeros mistérios, mas nunca tinha entrado no cofre. A presença dele estivera à espreita debaixo da biblioteca sua vida inteira, como um ser indizível escondido sob a cama.
“É minha oportunidade”, se lembrou. Não podia sentir medo.
Emergiram em uma câmara que lembrava a cripta de uma catedral. As paredes, o teto e o chão eram todos entalhados da mesma pedra cinza. Os pilares riscados e os arcos da abóbada tinham sido trabalhados com arte, até reverência. Estátuas de anjos se erguiam em nichos ao longo das paredes, com velas gotejando a seus pés. Os olhos tristes na sombra vigiavam as fileiras de prateleiras de ferro distribuídas em corredores no centro do cofre. Diferente das estantes nas partes superiores da biblioteca, estas tinham sido soldadas no lugar. Correntes prendiam as arcas trancadas, encaixadas entre as prateleiras como gavetas.
Elisabeth disse a si mesma que era só sua imaginação que conjurava sussurros das arcas pelas quais passavam. Uma camada espessa de poeira cobria as correntes. A maioria das arcas não tinha sido perturbada há décadas, seus habitantes profundamente adormecidos. Mesmo assim, sentia calafrios como se estivesse sendo observada.
A Diretora a guiou para além das prateleiras, na direção de uma cela no centro da qual se encontrava uma mesa aparafusada ao chão. Uma lamparina a óleo iluminava a superfície manchada de tinta com um brilho doente. A arca continuou assustadoramente cooperativa quando a apoiaram ao lado de quatro sulcos enormes, como marcas de garras gigantes, na madeira da mesa. Elisabeth não conseguia parar de olhar para os sulcos. Ela sabia o que os fizera. O que acontecia quando um grimório perdia o controle.
Malefict.
— Qual é a primeira precaução? — perguntou a Diretora, arrancando Elisabeth do devaneio.
A prova começara.
— Sal — respondeu, pegando a lata presa ao quadril. — Assim como o ferro, sal enfraquece energias demoníacas.
A mão tremeu um pouco quando salpicou a mesa, formando um círculo irregular. Vergonha queimou seu rosto ao ver o formato torto. E se não estivesse pronta, afinal?
O rosto severo da Diretora se suavizou de leve, com um toque de carinho.
— Sabe por que escolhi te manter, Elisabeth?
Elisabeth congelou, prendendo a respiração. A Diretora nunca se dirigira a ela pelo primeiro nome — só pelo sobrenome, Scrivener, ou às vezes “aprendiz”, dependendo do grau da enrascada em que se metera, que costumava ser extraordinário.
— Não, Diretora — respondeu.
— Hmm. Lembro que era noite de tempestade. Os grimórios estavam inquietos, fazendo tanto barulho que mal ouvi a batida na porta.
Elisabeth imaginou a cena com facilidade. Chuva fustigando as janelas, os exemplares uivando, soluçando e se sacudindo contra as correntes.
— Quando te encontrei na escada — continuou a Diretora —, te peguei e te levei para dentro, tive certeza de que você choraria. Em vez disso, olhou ao redor e começou a rir. Não teve medo nenhum. Ali mesmo, soube que não podia te mandar a um orfanato. Você pertence à biblioteca, assim como qualquer outro livro.
Elisabeth já ouvira essa história, mas só da boca do tutor, nunca da Diretora. Duas palavras ecoaram por sua mente, vivas como um batimento cardíaco: você pertence. Tinha esperado dezesseis anos para ouvi-las e esperava desesperadamente que fossem verdade.
Em silêncio, sem respirar, viu a Diretora pegar as chaves e selecionar a maior de todas, tão antiga e enferrujada que se tornara irreconhecível. Era óbvio que o momento sentimental passara para a Diretora. Elisabeth se contentou com repetir o voto silencioso que guardara para si desde o início da memória. Um dia, também seria guardiã. Daria orgulho à Diretora.
Sal se espalhou pela mesa quando a tampa da arca se abriu rangendo. O fedor de couro podre preencheu o cofre, tão forte que ela quase vomitou.
Ali dentro estava um grimório. Era um exemplar grosso, com páginas amareladas e bagunçadas contidas por chapas de couro preto gorduroso. A aparência era bastante comum, exceto pelos bulbos salientes irrompendo da capa. Pareciam verrugas gigantescas, ou bolhas na superfície de uma poça de alcatrão. Tinham o tamanho de bolas de gude grandes e eram dezenas no total, deformando quase o couro inteiro.
A Diretora vestiu um par grosso de luvas forradas de ferro. Elisabeth se apressou a seguir o exemplo. Mordeu a bochecha por dentro quando a Diretora tirou o livro da arca e o posicionou dentro do círculo de sal.
No instante em que a Diretora o encostou na mesa, as protuberâncias se abriram. Não eram verrugas — eram olhos. Olhos de todas as cores, manchados de sangue, se revirando, pupilas dilatadas e contraídas enquanto o grimório se debatia nas mãos da Diretora. Rangendo os dentes, ela o abriu à força. Automaticamente, Elisabeth enfiou a mão no círculo e segurou o outro lado, sentindo o couro estremecer e se esticar sob as luvas. Furioso. Vivo.
Aqueles olhos não tinham sido conjurados por magia. Eram verdadeiros, arrancados de crânios humanos há muito tempo, sacrificados para criar um exemplar poderoso o suficiente para conter os feitiços riscados em suas páginas. De acordo com a história, a maioria dos sacrifícios fora involuntária.
— O Livro dos Olhos — disse a Diretora, perfeitamente calma. — Contém feitiços para entrar na mente alheia, ler pensamentos, controlar ações. Felizmente, só uns poucos feiticeiros no reino inteiro já tiveram permissão para lê-lo.
— Por que quiseram fazer isso? — soltou Elisabeth, antes de conseguir se conter.
A resposta era óbvia. Feiticeiros eram maus por natureza, corrompidos pela magia demoníaca que dominavam. Se não fosse pela Reforma, que tornara ilegal encapar livros com partes humanas, grimórios como o Livro dos Olhos não seriam tão raros e excepcionais. Sem dúvida, feiticeiros tinham tentado replicá-lo ao longo dos anos, mas os feitiços não podiam ser escritos por meio de materiais comuns. O poder da feitiçaria instantaneamente fazia cinzas da tinta e do pergaminho.
Para sua surpresa, a Diretora levou a pergunta a sério, apesar de não olhar para Elisabeth. Em vez disso, se concentrou em virar as páginas, inspecionando qualquer dano que poderia ter sofrido na viagem.
— Talvez chegue o dia em que feitiços como esse sejam necessários, por mais horrendos que sejam. Temos uma enorme responsabilidade para com o reino, Scrivener. Se este grimório for destruído, seus feitiços se perderão para sempre. É o único que existe.
— Sim, Diretora.
Isso ela entendia. Guardiões protegiam grimórios do mundo, mas também o mundo dos grimórios.
Ela se preparou quando a Diretora fez uma pausa e se inclinou para examinar uma mancha na página. Transportar grimórios de alto nível era arriscado, pois qualquer dano acidental poderia provocar a transformação em Malefict. Precisavam ser inspecionados cuidadosamente antes da internação no cofre. Elisabeth teve certeza de que vários dos olhos, espiando debaixo da capa, estavam virados diretamente para ela — e que brilhavam de tanta esperteza.
Por algum motivo, soube que não deveria encontrar o olhar. Esperando distração, deu uma lida nas páginas. Algumas das frases estavam escritas em austermeeriano ou na Velha Língua, mas outras estavam rabiscadas em enoquiano, a língua dos feiticeiros, composta de runas estranhas e pontudas que ardiam no pergaminho como brasa. Só se aprendia essa língua no convívio com demônios. Só de olhar para as runas, ela sentiu dor de cabeça.
— Aprendiz…
O sussurro se infiltrou em sua mente, tão esquisito e inesperado quanto o toque frio e gosmento de um peixe debaixo da água do lago. Elisabeth se sobressaltou e olhou para cima. Se a Diretora tinha ouvido a voz, não o demonstrou.
— Aprendiz, eu te vejo…
Elisabeth engasgou. Ela fez o que a Diretora instruíra e tentou ignorar a voz, mas era impossível se concentrar em qualquer outra coisa com tantos olhos a observando, acesos, sinistros e inteligentes.
— Olhe para mim… olhe…
Lentamente e com firmeza, como se atraída por uma força invisível, Elisabeth começou a abaixar o rosto.
— Pronto — disse a Diretora, a voz soando fraca e distorcida, como se falasse debaixo d’água. — Acabamos. Scrivener?
Como Elisabeth não a respondeu, a Diretora fechou o grimório com um estrondo, cortando a voz no meio de uma frase. Elisabeth recobrou os sentidos de repente. Ela ofegou, o rosto queimando de humilhação. Os olhos estavam furiosos e esbugalhados, se dirigindo a ela e à Diretora.
— Muito bem — disse a Diretora. — Você aguentou muito mais do que o esperado.
— Quase me pegou — cochichou Elisabeth.
Como a Diretora podia parabenizá-la? O suor frio grudado em sua pele a fez tremer no ar gelado do cofre.
— Sim. Era o que eu queria te mostrar hoje. Você leva jeito com os grimórios, tem uma afinidade que nunca vi numa aprendiz. Mesmo assim, ainda tem muito a aprender. Quer se tornar guardiã, não quer?
Falando na frente da Diretora, sob o testemunho das estátuas angelicais enfileiradas na parede, a resposta suspirada de Elisabeth tomou ar de confissão.
— É tudo que sempre quis.
— Lembre-se de que há muitos caminhos abertos para você — disse a Diretora, a cicatriz distorcendo sua boca em uma expressão quase triste. — Antes de escolher, tenha certeza de que o que realmente deseja é a vida de guardiã.
Elisabeth assentiu, sem conseguir falar. Se tinha passado na prova, não entendia por que a Diretora aconselharia que ela considerasse abandonar o sonho. Talvez tivesse se mostrado despreparada e imatura de outra forma. Se fosse o caso, ela simplesmente se esforçaria mais. Ainda tinha um ano até fazer dezessete e poder treinar no Colégio, e neste tempo poderia se provar sem dúvida alguma, ganhar a aprovação da Diretora. Esperava que fosse bastar.
Juntas, forçaram o grimório a voltar à arca. Assim que tocou o sal, parou de se debater. Os olhos viraram para cima, mostrando meias-luas de um branco leitoso antes das pálpebras caírem. O estrondo da tampa arrebentou o silêncio sepulcral do cofre. A arca passaria anos, talvez décadas, sem ser aberta. Estava segura. Não era mais ameaça alguma.
No entanto, não conseguiu banir o som da voz de seus pensamentos, nem a sensação de que ainda veria o Livro dos Olhos de novo — e que ele a veria também.
DOIS
Elisabeth se recostou e admirou a vista da mesa. Tinha sido delegada ao departamento de transferência no terceiro andar, de onde via o átrio inteiro da biblioteca. A luz do sol entrava pela rosácea acima do portão, cobrindo o parapeito de bronze das varandas circulares de prismas rubi, safira e esmeralda. Estantes se erguiam na direção do teto abobadado seis andares acima, se esticando ao redor do átrio como camadas de bolo de casamento ou arquibancadas de coliseu. Murmúrios preenchiam o espaço, ecoando e pontuados pela eventual tosse ou ronco. A maior parte dos sons não vinha dos bibliotecários, andando de um lado para o outro de robes azuis. Vinha dos grimórios, resmungando nas prateleiras.
Ao inspirar, o cheiro doce de pergaminho e couro enchia seu peito. A poeira suspensa nos feixes de luz era imperturbada, como folha de ouro presa na resina. Pilhas instáveis de papel sempre ameaçavam tombar da mesa e soterrá-la em pedidos de transferência esquecidos.
Relutante, concentrou-se nas pilhas imponentes. A Grande Biblioteca de Summershall era uma das seis Grandes Bibliotecas do reino. Ficava a três dias de viagem dos vizinhos mais próximos, distribuídos em distâncias regulares ao redor de Austermeer, conectadas à capital pelas Estradas de Tinta, como aros de uma roda. Transferir grimórios entre bibliotecas era uma tarefa delicada. Alguns exemplares se odiavam tanto que se começassem a se aproximar, mesmo com quilômetros de distância entre si, berravam ou pegavam fogo. No sertão de Wildmarch havia uma cratera do tamanho de uma casa, causada pela briga entre dois livros a respeito da doutrina taumaturga.
Como aprendiz, Elizabeth era responsável pela aprovação de transferências do Grau Um ao Três. Grimórios eram classificados numa escala de um a dez de acordo com o nível de risco, sendo que do Grau Quatro em diante era necessário confinamento especial. Summershall não guardava nada acima do Grau Oito.
Fechando os olhos, ela puxou o papel do alto da pilha. “Knockfeld”, chutou, pensando na biblioteca vizinha ao nordeste de Summershall.
No entanto, quando virou o papel, era um pedido da Biblioteca Real. Não a surpreendeu: era aonde iam mais de dois terços das transferências. Talvez um dia ela pudesse fazer as malas e viajar para lá também. A Biblioteca Real ficava no mesmo terreno do Colégio, no coração da capital, e quando não estivesse ocupada no treinamento de guardiã poderia passear por lá. Na sua imaginação, os corredores se estendiam por quilômetros, repletos de livros, passagens e salas secretas contendo todos os segredos do universo.
Porém, só se fosse aprovada pela Diretora. Passara-se uma semana desde aquela noite no cofre, mas não estava nem perto de decifrar o conselho que recebera da mulher.
Ela ainda se lembrava do momento preciso em que prometera se tornar guardiã. Aos oito anos, tinha fugido de uma aula do mestre Hargrove por uma das passagens secretas da biblioteca. Não aguentaria uma hora a mais de se contorcer num banquinho no ar abafado daquela sala de aula improvisada no estoque, recitando declinações da Velha Língua. Especialmente numa tarde em que o verão socava os muros da biblioteca com força, o ar tão denso quanto mel.
Ela lembrava que suor escorria pelas costas enquanto engatinhava através das teias de aranha. Pelo menos aquela passagem era escura, protegida do sol. O brilho dourado que entrava por entre as tábuas do chão era luz o suficiente para enxergar e evitar traças que corriam em pânico devido à intromissão nos ninhos. Algumas traças se enchiam de tanto pergaminho encantado que chegavam ao tamanho de ratazanas.
Se pelo menos o mestre Hargrove tivesse aceitado levá-la à cidade… Era só descer a colina por cinco minutos na direção do pomar. O mercado estaria cheio de gente vendendo fitas, maçãs e tortas, além dos viajantes que às vezes vinham a Summershall para vender o que tinham. Ela já tinha ouvido música do acordeão, visto um urso dançar e até assistido a um homem demonstrar um lampião que queimava sem óleo. Os livros da sala de aula não explicavam como o lampião funcionava, então ela supunha que era por magia e, portanto, do mal.
Talvez fosse por isso que o mestre Hargrove não gostasse de levá-la à cidade. Se desse de cara com um feiticeiro longe da proteção da biblioteca, talvez ele a sequestrasse. Uma jovem como ela sem dúvida seria prática como sacrifício em rituais demoníacos.
Vozes chamaram a atenção de Elisabeth, vindo bem debaixo dela. Uma voz era do mestre Hargrove e a outra…
Da Diretora.
O coração deu um pulo. Ela se esmagou contra as tábuas para espiar por uma fresta, e a luz que ali entrava acendeu seu cabelo embaraçado. Ela não enxergou muito: um pedaço da mesa coberta de papel, o canto de um escritório desconhecido. Só de pensar que podia ser da Diretora, seu coração bateu mais rápido.
— Já é a terceira vez só este mês — disse Hargrove. — Não aguento mais. A garota é uma selvagem. Some para sei lá onde, se mete em todo tipo de confusão… semana passada mesmo ela soltou uma família inteira de traças vivas no meu quarto!
Elisabeth quase gritou para se defender. Ela tinha juntado as traças com a intenção de estudá-las, não de soltá-las. Perdê-las tinha sido uma decepção enorme.
No entanto, o que Hargrove disse em seguida a fez esquecer completamente as traças.
— Devo questionar se é mesmo uma boa decisão, isso de criar uma menina na Grande Biblioteca. Sei que quem a deixou na nossa porta sabia que temos o hábito de adotar órfãos como aprendizes, mas só os aceitamos depois dos treze anos. Hesito em concordar com o guardião Finch em qualquer assunto que seja, mas acredito que devemos considerar o que ele tem dito desde o começo: talvez a jovem Elisabeth se dê melhor num orfanato.
Apesar de perturbá-la, nada disso era novidade para Elisabeth. Ela aguentou os comentários porque sabia que a Diretora garantia seu lugar na biblioteca. O porquê ela não sabia. A Diretora raramente falava com ela. Era remota e intocável, como a lua, e igualmente misteriosa. Para Elisabeth, a decisão da Diretora de acolhê-la tinha uma qualidade quase mística, como um conto de fadas. Não podia ser questionada ou revertida.
Ela prendeu a respiração e esperou que a Diretora contradissesse a sugestão de Hargrove. Sentiu arrepios de antecipação por ouvi-la falar.
No entanto, a Diretora disse:
— Já pensei na mesma coisa, mestre Hargrove. Penso nisso quase todo dia há oito anos.
Não… não podia ser. O sangue de Elisabeth quase parou de percorrer as veias. A pressão no ouvido abafou os outros sons.
— Anos e anos atrás, não considerei o efeito que crescer isolada de outras crianças da mesma idade poderia causar. Os aprendizes mais jovens ainda são cinco anos mais velhos do que ela. Já a viu demonstrar interesse em formar amizade?
— Temo que ela tenha tentado, sem sucesso — disse Hargrove. — Mas talvez ela nem o saiba. Recentemente ouvi um aprendiz explicar que crianças normais têm mães e pais. A coitada da Elisabeth não fazia ideia do que se tratava. Respondeu bem feliz que tinha a companhia de muitos livros.
A Diretora suspirou.
— O apego dela aos grimórios é…
— Preocupante? Sim, concordo. Temo que ela não sofra de solidão por ver os grimórios como seus amigos, em vez das pessoas.
— É perigoso pensar assim. Mas bibliotecas são perigosas. Não há como evitar.
— Perigoso demais para Elisabeth?
“Não”, implorou Elisabeth. Ela sabia que a Grande Biblioteca não cuidava de livros comuns. Eles sussurravam nas prateleiras e estremeciam sob correntes de ferro. Alguns cuspiam tinta e davam pitis; outros cantavam em tons agudos e límpidos nas noites sem vento, quando a luz das estrelas atravessava as grades da biblioteca como feixes de mercúrio. Alguns outros eram tão perigosos que precisavam ser armazenados no cofre subterrâneo, cobertos de sal. Nem todos eram amigos. Ela entendia bem.
No entanto, mandá-la embora seria equivalente a instalar um grimório entre livros inanimados, que não se mexiam nem falavam. A primeira vez que viu um livro desses, achou que estava morto. Ela não pertencia ao orfanato, o que quer que fosse isso. Na sua imaginação, o lugar parecia uma cadeia, cinzento e coberto por névoa úmida, cercado de grades como as da entrada do cofre. Um nó de pavor bloqueou sua garganta só de pensar.
— Sabe por que as Grandes Bibliotecas acolhem órfãos, mestre Hargrove? — perguntou a Diretora, finalmente. — É porque eles não têm lar nem família. Ninguém sentiria falta se morressem. Eu me pergunto… se Scrivener durou tanto, talvez seja porque a biblioteca quis que assim fosse. Talvez seja melhor deixar estar o vínculo dela com este lugar, para o bem ou para o mal.
— Espero que não esteja cometendo um erro, Diretora — disse mestre Hargrove, gentilmente.
— Também espero — respondeu a Diretora, preocupada. — Pelo bem de Scrivener, mas pelo nosso também.
Elisabeth esperou, forçando o ouvido, mas a discussão a seu respeito parecia estar concluída. Passos soaram e a porta do escritório foi trancada.
Ela fora poupada… por enquanto. Duraria muito? A instabilidade nos pilares de seu mundo dava-lhe a impressão de que a vida inteira poderia desmoronar a qualquer instante. Uma simples decisão da Diretora poderia expulsá-la de vez. Ela nunca se sentira tão incerta, tão impotente, tão pequena.
Foi então que jurou, agachada na poeira e nas teias de aranha, se agarrando à única firmeza que alcançava. Se a Diretora não tinha certeza do lugar de Elisabeth na Grande Biblioteca, ela precisaria prová-lo. Ela se tornaria uma guardiã poderosa e forte, como a Diretora. Mostraria a todo mundo que merecia estar ali, até o próprio guardião Finch ser obrigado a aceitá-la.
Acima de tudo…
Acima de tudo, os convenceria de que não era um erro.
— Elisabeth — sibilou uma voz, no presente. — Elisabeth! Pegou no sono?
Assustada, ela deu um pulo, sentindo a memória se esvair como água pelo ralo. Olhou ao redor até encontrar a origem da voz. O rosto de uma garota surgira entre duas estantes próximas, balançando a trança sobre o ombro enquanto conferia se ninguém mais estava por perto. Óculos aumentavam seus olhos escuros e espertos e anotações rabiscadas com pressa marcavam a pele castanha dos braços, tinta visível sob as mangas. Como Elisabeth, carregava uma chave na corrente do pescoço, brilhando contra o manto azul-claro de aprendiz.
Para sua sorte, Elisabeth não continuou solitária. Tinha conhecido Katrien Quillworthy no dia em que se tornaram aprendizes, aos treze anos. Nenhum dos outros aprendizes queria dividir o quarto com Elisabeth, devido à fofoca de que guardava uma caixa de traças debaixo da cama. Katrien, por outro lado, falara com ela exatamente por isso.
— Tomara que seja verdade — dissera. — Quero experimentar com traças desde que ouvi falar delas. Aparentemente são imunes à feitiçaria… imagine só as implicações científicas!
Desde então, eram inseparáveis.
Elisabeth afastou os papéis, discretamente.
— Aconteceu alguma coisa? — cochichou.
— Acho que só você não sabe o que aconteceu em Summershall. Até Hargrove, que passou a manhã toda no banheiro, está sabendo.
— O guardião Finch não foi demitido, né? — perguntou, esperançosa.
Katrien sorriu.
— Ainda não, mas estou me esforçando. Sei que um dia encontrarei alguma prova incriminadora. Pode deixar que você será a primeira a saber.
Orquestrar a destruição do guardião Finch era o projeto pessoal de Katrien há anos.
— Não — continuou —, é um catedrático. Acabou de chegar para visitar o cofre.
Elisabeth quase caiu da cadeira. Olhou ao redor antes de correr até Katrien, se abaixando atrás da estante. Katrien era tão baixa que, se não se abaixasse, Elisabeth só veria o alto da cabeça.
— Um catedrático? Tem certeza?
Refletindo, Elisabeth notou que os sinais daquela manhã eram óbvios. Guardiões marchando de cara fechada, agarrados às espadas. Aprendizes amontoados nos corredores, cochichando o tempo todo. Até os grimórios pareciam mais inquietos.
“Um catedrático.” Medo a percorreu como uma nota vibrando na corda da harpa.
— O que a gente tem a ver com isso? — perguntou.
Nenhuma delas vira um feiticeiro antes, nem mesmo um comum. Nas raras ocasiões em que visitavam Summershall, eram recebidos pelos guardiões através de uma porta especial, levados imediatamente a um salão de leitura. Ela tinha certeza de que um catedrático seria tratado com ainda mais cuidado.
Os olhos de Katrien brilhavam.
— Stefan apostou comigo que o catedrático tem orelhas pontudas e cascos nos pés. Óbvio que ele está errado, mas preciso dar um jeito de provar. Vou espiar o catedrático. Preciso que você seja minha testemunha.
Elisabeth inspirou fundo e olhou para a mesa abandonada.
— Para isso, vamos precisar sair dos limites.
— Finch nos esfolaria se soubesse — completou Katrien. — Mas não tem como saber. Ele não conhece as passagens.
Pela primeira vez, o maior medo de Elisabeth não era Finch. O olhar arregalado e sangrento do Livro dos Olhos lhe veio à mente. Aqueles olhos podiam ter pertencido a alguém como ela ou Katrien.
— Se o catedrático nos pegar, vai fazer pior do que nos esfolar — argumentou Elisabeth.
— Duvido. Desde a Reforma, feiticeiros estão proibidos de matar, exceto em legítima defesa. Ele só vai nos deixar carecas, ou cheias de verrugas — insistiu Katrien, mexendo as sobrancelhas em um gesto convidativo. — Vamos lá. É uma oportunidade única. Pelo menos para mim. Quando verei um catedrático de novo? Quantas chances eu terei de sentir verrugas mágicas?
Katrien queria ser arquivista, não guardiã. O trabalho dela não envolveria feiticeiros. Já o de Elisabeth…
Uma faísca se acendeu em seu peito. Katrien estava certa: era mesmo uma oportunidade. Estava decidida a impressionar a Diretora. Guardiões não tinham medo de feiticeiros; quanto mais aprendesse sobre eles, mais preparada estaria.
— Tá bom — concordou, se levantando. — Provavelmente vão levá-lo ao salão de leitura leste. Por aqui.
Esgueirando-se pelas estantes com Katrien, Elisabeth largou o medo que ainda sentia. Tentava obedecer às regras, mas seu esforço curiosamente nunca dava resultado. No mês anterior tinha acontecido aquele desastre com o lustre do refeitório… pelo menos o nariz da Mestre Bellwether já estava quase normal. Aquela outra vez em que derrubara geleia de morango no… é, melhor não lembrar.
Quando chegaram ao busto de Cornelius, o Sábio, que Elisabeth usava como referência, procuraram uma lombada vermelha conhecida. Ela a encontrou no meio da prateleira, o título dourado gasto e desbotado demais para ler. As páginas do grimório a cumprimentaram, se remexendo sonolentas, quando Elisabeth coçou a lombada com jeitinho. Veio um clique da estante, como se de um cadeado. Em seguida, todas as prateleiras afundaram na parede, revelando a abertura poeirenta de um túnel.
— Não acredito que só funciona com você — disse Katrien, entrando na passagem. — Já tentei coçar a lombada várias vezes. O Stefan também tentou.
Elisabeth deu de ombros. Também não entendia. Ela se concentrou para não espirrar enquanto guiava Katrien pelos corredores estreitos e sinuosos, arrancando as teias de aranha penduradas das vigas como decorações fantasmagóricas. A ponta oposta levava à saída atrás de uma tapeçaria no salão. Elas pararam para escutar se a sala estava mesmo vazia antes de empurrarem o tecido pesado com força para sair, tossindo com vontade.
Aprendizes eram proibidos de entrar no salão de leitura, então Elisabeth ficou ao mesmo tempo aliviada e decepcionada ao descobrir que parecia um cômodo bem comum. Era um espaço meio masculino, cheio de madeira polida e couro escuro. Uma mesa grande de mogno estava instalada em frente à janela e várias poltronas de couro cercavam uma lareira acesa, cuja madeira crepitou e jorrou faíscas, assustando-as.
Katrien não perdeu tempo. Enquanto Elisabeth olhava ao redor, ela foi diretamente à mesa e começou a remexer as gavetas.
— Pela ciência — explicou, o argumento que usava frequentemente logo antes de explodir alguma coisa.
Elisabeth andou até a lareira.
— Que cheiro é esse? Não é do fogo, né?
Katrien parou para se concentrar no cheiro.
— Talvez seja fumaça de cachimbo? — chutou.
Não… era outra coisa. Fungando com força, Elisabeth seguiu o odor até uma das poltronas. Ela inspirou a almofada e se retraiu imediatamente, tonta.
— Elisabeth! Tudo bem?
Ela respirou rápido, ofegante, piscando para afastar as lágrimas. O cheiro cáustico se agarrara ao fundo da garganta, tão espesso que dava para sentir o gosto: um cheiro queimado e anormal, lembrando metal queimado, se metal queimasse.
— Acho que sim — arquejou.
Katrien abriu a boca para falar, mas olhou para a porta de repente.
— Ouça. Estão vindo.
Correndo, se apinharam atrás das estantes enfileiradas na parede. Katrien coube tranquilamente, mas o espaço era apertado demais para Elisabeth. Aos quatorze anos, já era a garota mais alta de Summershall. Dois anos depois, era maior do que a maioria dos garotos também. Manteve os braços rígidos ao longo do corpo e respirou calmamente, tentando tranquilizar os grimórios, que resmungavam por desaprovar a intrusão.
Vozes vieram do corredor antes da maçaneta girar.
— Pronto, catedrático Thorn — disse uma guardiã. — A Diretora chegará logo para escoltá-lo ao cofre.
Elisabeth sentiu o estômago embrulhar quando uma silhueta alta e encapuzada entrou no salão, a capa esmeralda esvoaçando ao redor dos pés. Ele andou até a janela, abriu as cortinas e ficou ali, observando as torres da biblioteca.
— O que houve? — cochichou Katrien. — Não enxergo nada daqui.
A perspectiva de Elisabeth era um recorte horizontal acima dos livros. Não dava para ver muita coisa. Devagar e com cuidado, foi um pouquinho para o lado, em busca de um ângulo melhor. A ponta do nariz pálido do catedrático entrou no seu campo de visão. Ele tinha abaixado o capuz. O cabelo era preto e ondulado, mais comprido do que o dos homens de Summershall, com uma mecha marcante grisalha na têmpora esquerda. Mais um pouquinho para o lado…
“Ele nem deve ser mais velho que a gente”, pensou, surpresa. O cabelo grisalho e o título a prepararam para alguém muito mais velho. Talvez a aparência enganasse. Ele poderia manter o semblante jovem se tomasse banho com sangue de virgens — ela já tinha lido uma história parecida num romance.
Para Katrien, ela sacudiu a cabeça devagar. O cabelo dele era grosso demais para revelar se tinha orelhas pontudas. Se tivesse cascos, estavam escondidos pela capa.
Ela seguiu com outro sinal, sacudindo a cabeça com mais urgência. O catedrático se virara na direção delas, encarando as prateleiras. Os olhos cinzentos eram extraordinariamente claros, como cristal, e a emoção neles ao examinar os grimórios fez seu sangue congelar. Nunca vira um olhar tão cruel.
Ela não tinha a mesma convicção de Katrien de que, se ele as descobrisse, não as feriria. Tinha crescido ouvindo histórias de feitiçaria: exércitos erguidos de túmulos para lutar por reis, inocentes sacrificados em rituais sangrentos, crianças queimadas como oferenda a demônios. Além disso, agora tinha ido ao cofre e visto por si mesma o trabalho de um feiticeiro.
Quando o catedrático se aproximou, Elisabeth se horrorizou ao notar que não podia se mexer. Um grimório tinha se agarrado ao manto. Rosnava com o tecido na boca, puxando-o como um cachorrinho raivoso. O feiticeiro estreitou os olhos, procurando a origem do barulho. Desesperada, segurou firme o manto e puxou, mas o grimório soltou na mesma hora, jogando-a contra as prateleiras…
E a estante desmoronou, carregando-a junto.