Livro ‘O Desenho do Tempo: Memórias’ por Nora Rónai

Livro 'O Desenho do Tempo: Memórias' por Nora Rónai
O itinerário narrado neste livro tem início em Fiúme, onde Nora Tausz nasceu e onde experimentou, ainda criança, a furiosa hostilidade nazista. Fugindo da perseguição e da morte, deixa a Europa com seus pais e irmão e desembarca no Rio de Janeiro em 1941. Em terras brasileiras, precisa vencer inúmeros desafios para a construção de uma nova vida. Com determinação e muitos talentos, Nora faz a sua parte: ajuda a família, se reinventa, concilia os estudos com uma bem-sucedida experiência como atleta de saltos ornamentais. Mas a vida, como Nora mostrará, é de altos e baixos. Forma-se em arquitetura na Universidade do Brasil...
Capa comum: 240 páginas
Editora: Bazar do Tempo; Edição: 1 (1 de maio de 2020)
Idioma: Português
ISBN-10: 8569924828
ISBN-13: 978-8569924821
Dimensões do produto: 19,8 x 14 x 2,2 cm

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Trecho do livro

Livro 'O Desenho do Tempo: Memórias' por Nora Rónai
Giorgio, Iolanda, Nora e Edoardo em Fiume, 1935.

Para Cora e Laura, que justificam minha existência neste mundo — de novo e sempre — com imenso amor.

UMA VIDA BRASILEIRA

Dizem que a vida deve ser reexaminada de vez em quando. Eu não diria “reexaminada”, mas relembrada, certamente. Explico: cá estou eu com noventa anos e pico, relembrando a minha vida desde a infância e, de repente, me dou conta de que não sei direito qual destas pessoas sou eu de verdade: a Norinha neném, superfeliz porque a mamãe está brincando de comer as minhas orelhas e eu rio, sim, tapando as duas com as mãozinhas sabendo que é brincadeira, mas com um vago receio — e se for verdade? Ou serei a Nora criança apaixonada pelo professor do quarto ano primário, sem se dar conta disso? Ainda pode ser que eu seja a Nora lutando pela própria vida e pela sobrevivência de sua família durante a guerra e as perseguições nazistas. Talvez eu seja a Nora imigrante, recém-chegada à sua nova pátria, desta vez definitiva, reorganizando a sua vida para adequá-la às novas situações e considerações. Ou melhor, a Nora já bastante arraigada na nova terra, casada, cuidando do pai viúvo, do marido e das duas filhinhas. Quem sabe, na verdade, eu seja a Nora de 60 anos, viúva, sendo amparada pelas duas filhinhas, que agora já se aproxima da “melhor idade”, “feliz idade”, “terceira idade”, ou como queiram dizer as pessoas preconceituosas que têm medo da palavra velho?

Exatamente para estabelecer quem sou, estou tentando relembrar o mais completamente possível a minha vida. E fixo essas lembranças no papel, porque elas são fugidias. Apoiada só na memória, eu não teria como pensar e raciocinar calmamente sobre elas. Cheguei a escrever as lembranças da minha vida até a época, digamos, da Nora de trinta anos. Foram editadas e deram um simpático livrinho. * Este se encerrava mais ou menos na época da nossa — de papai, mamãe e do meu irmão Giorgio — chegada ao Brasil e de nossos primeiros passos no caminho da adaptação e da construção de uma vida estável e tranquila no Rio de Janeiro. Miraculosamente, havíamos encontrado e alugado um pequeno apartamento — de cobertura, imaginem — na rua Presidente Carlos de Campos, em Laranjeiras, esquina da rua Paissandu. Era pequeno, havia servido antanho como moradia de porteiro, mas era muito jeitoso e permitiu que nos acomodássemos com relativo conforto, a tal ponto que até chegamos a adotar um gatinho de nome Cicuka (nome que, em português, é pronunciado como Cissuka).

Mas por que seria milagroso o fato de termos encontrado um apartamento para alugar? É que, naquela época, os políticos eram hipócritas, desonestos e demagogos. Ao contrário dos de hoje, que são todos uns varões impolutos, patrióticos, que só visam o bem do povo… He he. Para se mostrarem amigos e defensores dos pobres, os de então inventaram um decreto que proibia os senhorios de aumentarem o preço do aluguel de seus imóveis; mas, como a inflação corria livre, lépida e solta, em pouco tempo, esses aluguéis não valiam mais nada e os senhorios, ainda por imposição do tal decreto, não podiam mandar os inquilinos embora. Maravilha para os inquilinos, falência para os senhorios. E tem mais: nem sempre o senhorio é que era rico e o inquilino pobre. Os ricos de verdade não investiam seu dinheiro em moradia.

Investiam-no na bolsa de valores e em outros bens mais rentáveis, mesmo porque, depois, poderiam descontar o valor do aluguel do imposto de renda. Enquanto isso, havia muito senhorio cuja única fonte de sustentação era um ou outro imóvel alugado. Como resultado dessa situação, ninguém mais investia em imóveis para alugar, e se, por acaso, algum apartamento vagasse, geralmente por morte ou mudança do inquilino, o dono preferia deixá-lo vago e não mais o alugava. Nessa época, contava-se que um sujeito, passando pela Lagoa Rodrigo de Freitas, ouviu gritos de socorro. Era um homem se afogando:

— Como é que você se chama? — perguntou-lhe.
— João da Silva.
— E onde é que você mora?
— Na rua tal, número tal — veio a resposta. — Socorro!

Mas o cara, em vez de salvar o infeliz, corre ao endereço indicado, toca a campainha e:

— Quero alugar este apartamento — diz à pessoa que o atende.
— Mas este apartamento já está alugado!
— Não, porque o inquilino acaba de se afogar na lagoa! Eu o vi ainda agora.
— Pois então, fui eu que o empurrei para dentro d’água!

Exatamente nessa época e situação é que chegou à cidade um monte de pelego da roda do Getúlio Vargas, do Rio Grande do Sul. Era urgente arranjar moradia para toda essa gente e, possivelmente, apartamentos perto do Palácio Guanabara, que era a residência oficial do presidente, já que o Palácio do Catete era apenas sede oficial do governo. O que os “gênios” fizeram? Promulgaram outro decreto proibindo qualquer cidadão proveniente do “eixo Roma-Berlim” de morar perto do Palácio Guanabara por “motivos de segurança”. Imaginem se cidadãos vindos de lá como refugiados representariam algum perigo para a vida e a saúde do Getúlio! Mas não havia como discutir. O nosso pequeno ninho, conseguido com tanto esforço e ajeitado com tanto amor para nos abrigar, teria que ser abandonado em 24 horas, já que estava exatamente na área prevista no tal decreto.

— Como é que vamos encontrar outro apartamento em 24 horas? — tentamos argumentar com o delegado.

— De maneira nenhuma, claro — respondeu — mudem-se para alguma pensão.

Aí, o delegado nos deu duas ou três semanas em que poderíamos conservar os móveis e o Cicuka no apartamento, mas nós teríamos que sair. Poderíamos levar, todo dia, comida e água para o bichano e limpar a caixinha de areia dele, mas rápido, rápido, para não sermos pegos em flagrante de permanência no local:

— Onde é que eu vou encontrar outro apartamento agora? — perguntou mamãe.
— A senhora tente no Rio Comprido, ouvi dizer que lá ainda há alguns imóveis disponíveis — respondeu o delegado.
— Sabem de uma coisa — disse a mamãe — eu vou procurar mesmo algo por lá, tanto mais que, lá, os aluguéis devem ser mais baratos do que por aqui.

Dito e feito, mamãe perscrutou centenas de anúncios, visitou dezenas de imóveis — um pior do que o outro — até que, enfim, encontrou uma verdadeira joia de apartamento. Numa rua nova que começava logo no início da rua do Bispo; à esquerda, partindo do largo do Rio Comprido. Chamava-se rua Citiso e era paralela à rua Dipsis, igualmente nova. Só que a nossa tinha mais uma vantagem: havia construções apenas de um lado, enquanto, do outro, vicejavam árvores e arbustos pertencentes à chácara dos padres. Nosso apartamento tinha entrada ampla e envidraçada, que se abria para uma varanda, e mais a sala, três quartos, banheiro, cozinha e área de serviço e estava no terceiro pavimento de um prédio novinho em folha. Calculo que o dono teria começado a obra antes do malfadado decreto e talvez não tivesse bastante bala na agulha para manter vazio um prédio inteiro.

Podem imaginar a nossa felicidade ao assinarmos o contrato de locação. É verdade que o aluguel era bastante salgado, uns 30% a mais do que o antigo, que já não era barato, mas, no entretempo, todos havíamos melhorado os nossos proventos, de maneira que, justificadamente, esperávamos poder enfrentar esse gasto mensal a mais.

Quando a mamãe contou isso para a minha tia Valéria — irmã da minha mãe, também refugiada no Brasil —, ela ficou escandalizada e apavorada:

— Por que você não alugou aquele apartamento da rua tal (esqueci o nome), que custaria menos do que a metade do preço?
— Porque a rua tal sobe o morro e acaba na favela. Aquele prédio é um pardieiro num ambiente suspeito, pior do que apenas proletário. A Nora tem 18 anos e, quando começar a estudar, terá de voltar a tardas horas da escola sozinha. Não dá para a gente morar num lugar assim.
— O que é que vocês chamam de “proletário”? — indagou minha tia, como sempre, morta de medo de que, eventualmente, nós fossemos precisar de alguma ajuda financeira dela.

Engraçado, relembrando a pão-durice dessa tia, me dei conta de que, em compensação, houve muita gente que nem parente era, às vezes nem nos conhecia direito e, mesmo assim, nos ajudou à beça. Por exemplo, logo depois da nossa chegada ao Rio de Janeiro, eu estava com o braço dolorido devido à luxação sofrida ainda no navio. Embora o médico de bordo tivesse recolocado o antebraço no seu devido lugar, o braço todo doía muito, a ponto de eu não conseguir movê-lo, mesmo depois de terem tirado a tipoia, ou melhor, principalmente depois de terem-na tirado. Mandaram que eu fizesse fisioterapia.

Na Cinelândia, havia um consultório de ortopedia e fisioterapia superequipado de um dr. Zander. Fomos consultá-lo. Depois de se inteirar da nossa história e de ter me examinado, ele disse que ia tornar o meu braço novinho em folha. De fato, esse homem me tratou durante um ano inteiro sem jamais me cobrar nem um tostão.

Outro exemplo: naquela época, talvez alguns meses mais tarde, tive seguidas inflamações na garganta e os médicos aconselharam-me uma operação de amídalas. Estava na moda, naquele tempo, operar as amídalas por “dá cá aquela palha”, ou seja, por motivo qualquer. Procuramos, então, o professor Ermiro de Lima. Ele era muito conhecido e cobrou um preço bastante caro. Pedi para pagar em prestações mensais, todo mês daria 300 mil réis, o que me imporia um tremendo esforço, mas tinha fé de que conseguiria honrar esse compromisso durante os dez meses combinados. Na operação, paguei a primeira prestação. No mês seguinte, compareci com a segunda. No terceiro mês, entreguei o dinheiro à enfermeira, mas ela devolveu e falou que o professor mandou dizer que eu não precisaria mais dar o resto… Quando é que a minha tia conseguiria fazer um gesto desses, hein? E o pior é que sei que ela gostava de fato da gente. Só tinha horror de gastar um tostão que fosse.

Ignorando solenemente o choque e a reprovação da minha tia e de sua família, nos mudamos em poucos dias para o novo apartamento. Tínhamos muita pressa em concluir a mudança por dois motivos. Primeiro, não queríamos continuar pagando por muito mais tempo a pensão e o aluguel do antigo apartamento. Segundo, o Cicuka estava ficando neurótico, pensando que o iríamos abandonar. Coitado do bichano, ele foi o único a fazer mau negócio com a mudança. No apartamento antigo, havia um enorme terraço de quatro metros de largura em forma de “L”, circundando todos os cômodos, enquanto, no novo, só lhe pudemos oferecer a varanda — de bom tamanho, é verdade, mas que de maneira nenhuma se comparava ao antigo espaço. E, por falar em terraço, deixem-me contar um caso estranho que aconteceu lá.

Quando não comia ou não dormia, o Cicuka divertia-se tentando caçar os passarinhos, mas não conseguia pegar nenhum deles, que, muito espertos, levantavam voo assim que o percebiam. Finalmente, uma vez, ele acabou abocanhando um filhote inexperiente e trouxe-o triunfante para mostrá-lo à mamãe. Claro que a homenageada não aprovou nem um pouco esta caçada. Além de dar um pito no gato, tirou o passarinho apavorado de sua boca e o soltou no terraço. Por sorte, o bichinho não ficou muito machucado e conseguiu dar o fora no ato.

Quando mamãe, cansada e esbaforida, voltou para a sala, encontrou Josefa, nossa empregada, toda vestida e com sua mala feita. Pediu demissão alegando que a mamãe tinha abusado da confiança do pobre gatinho ao lhe tirar a caça tão arduamente conquistada e que, numa casa assim, ela não ficaria nem um minuto a mais:

— Mas, Josefa, ele não precisa desse passarinho. Ganha bastante comida aqui em casa — tentou argumentar a mamãe, pois a Josefa era honesta e competente, não queria perdê-la.
— A senhora não come frango? Por que é que ele não pode comer passarinho? A senhora o traiu, ponto! Eu não fico aqui, para mim chega!

E, dito isso, a mulher foi-se embora, soltando fumaça pelas ventas. Foi uma pena, mas, por outro lado, provavelmente ela nos deixaria quando da mudança. Se o antigo endereço lhe convinha bastante — tinha um largo círculo de amigas na redondeza —, é de se supor que não lhe agradaria mudar tão radicalmente o local de trabalho.

Para nós, no entanto, mudar de endereço não foi tão traumático assim. Primeiro, porque já estávamos acostumados a tantas mudanças, não só de casa, mas de cidade, país e até continente. Segundo, porque mudar de um espaço exíguo para um bem maior e mais confortável não é tão difícil assim, convenhamos. Terceiro, porque conseguimos fazer a mudança em alguns dias, não houve tempo para grandes despedidas. E conseguimos isso por termos poucas coisas para empacotar. Poucas roupas, poucos calçados, poucos móveis, etc. Hoje, depois de muitas dezenas de anos vividos, acumulei enorme quantidade de cacarecos. Mesmo assim, há alguns anos, quando decidi ir morar em um apartamento no prédio onde já vivia minha filha Laura, ela conseguiu fazer a mudança em menos de três dias. E é a melhor maneira mesmo, a gente não fica olhando para trás, lamentando o que perdeu.

Naquela época, não havia nem sombra de filho no horizonte. Éramos solteiríssimos, tanto o Giorgio quanto eu. Ele continuava trabalhando na firma Paul J. Christof, onde se firmava cada vez mais, melhorando seus proventos gradativamente, e eu continuava vendendo os meus cremes de porta em porta — atividade esta que comecei já no terceiro dia depois de por os pés em solo brasileiro —, mas agora já dispunha de uma considerável freguesia fixa.

Giorgio não tardaria a mudar de emprego, pois foi cooptado pelo primo Alexandre (apelidado de Sanyi) para trabalhar na firma dele. Este último, com o dinheiro da tia Valéria, deu uma de grande empresário e comprou várias jazidas de mica, que, em tempos de guerra, era largamente consumida, principalmente nos Estados Unidos. Mas não dava para exportar a mica em seu estado bruto, pois o frete custava caro e não valia a pena pagar transporte para as impurezas que acompanhavam esse material. Assim, criaram vários laboratórios de beneficiamento especialmente em Minas Gerais, perto de Lavras. Mesmo com esse processo, a mica não ficava purinha como vocês podem ver nas resistências de seus ferros elétricos, por exemplo, mas já era meio caminho andado. O resto era processado nos Estados Unidos com grande cuidado. O Giorgio ficou incumbido de percorrer e inspecionar os laboratórios para que o trabalho ficasse o melhor possível, pois americanos eram muito exigentes. Para isso, a firma emprestou-lhe um jipe. Ficamos radiantes, até carro já tínhamos! Melhor teria sido, no entanto, se o Giorgio jamais tivesse largado o seu primeiro emprego. Mas isso eu conto mais tarde.

Por enquanto, estávamos muito contentes com a situação geral da família. Cada um de nós tinha o seu próprio quarto. Meus pais ocupavam o maiorzinho, que dava para a sala, de onde tinham acesso ao corredor e, de lá, ao banheiro. Depois, vinha o meu quarto, tão amplo que, mais tarde, coube até uma prancheta. Finalmente, vinha o do Giorgio, que era o mais charmoso, pois abria para uma varandinha legal. No entanto, como se diz em italiano, non ce perfetta letizia (não há perfeita alegria). Um dia, enquanto meu irmão estava ausente de casa, sumiu um terno dele que se encontrava no espaldar de uma cadeira. Não havia ninguém em casa a não ser a mamãe, atarefada na cozinha. Como pode sumir alguma coisa assim, sem mais nem menos? É verdade que a porta da varandinha estava aberta, mas, no terceiro andar? Pois, mais tarde, viemos a saber que havia uma turma de pivetes que usava uma longuíssima vara de bambu para invadir as moradias e roubar o que estivesse ao seu alcance. Uns seguravam a vara, pela qual o menorzinho subia e jogava o que podia para os companheiros, lá embaixo. É mole? Claro que, depois disso, não ousamos mais deixar portas nem janelas abertas quando não estivéssemos em casa.

Livro 'O Desenho do Tempo: Memórias' por Nora Rónai
Nora e Giorgio, Rio de Janeiro, início dos anos 1940.

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