Livro ‘Nova York 2140’ por Kim Stanley Robinson

Livro 'Nova York 2140' de Kim Stanley Robinson
A mais terrível previsão de cientistas de todo o mundo se concretiza: o aquecimento global eleva o nível dos oceanos, submergindo a cidade de Nova York. Os habitantes da metrópole, no entanto, conseguem se adaptar, e a Grande Maçã segue tão viva e fervilhante como sempre, ainda que de formas inteiramente distintas das de antes. Cada rua é agora um canal; cada arranha-céu, uma ilha. Por meio dos olhos – e dos destinos – de diversos moradores de um prédio da antiga Madison Square, Kim Stanley Robinson nos mostra como uma das maiores cidades do mundo se transformaria após uma catástrofe climática dessa magnitude...
Capa comum: 496 páginas  Editora: Planeta Minotauro; Edição: 1 (29 de outubro de 2019)  ISBN-10: 8542217888  ISBN-13: 978-8542217889  Dimensões do produto: 22,8 x 15,6 x 2,6 cm

Leia trecho do Livro

Sumário

PARTE UM — A tirania dos custos irrecuperáveis
PARTE DOIS — Excesso de confiança do especialista
PARTE TRÊS — A armadilha da liquidez
PARTE QUATRO — Caro ou impagável?
PARTE CINCO — A escalada do compromisso
PARTE SEIS — Migração assistida
PARTE SETE — Quanto mais, melhor
PARTE OITO — A comédia dos comuns

PARTE UM

A tirania dos
custos irrecuperáveis

a) Mutt e jeff

— Quem escreve o código cria o valor.
— Isso não está nem perto da verdade.
— Está sim. O valor reside na vida, e a vida é codificada, como no DNA.
— Então bactérias têm valores?
— Claro. Toda vida quer alguma coisa e vai atrás dela. Vírus, bactérias, até chegar em nós.
— A propósito, é sua vez de limpar o banheiro.
— Eu sei. A vida significa morte.
— Então, vai limpar hoje?
— Em algum momento, hoje. De volta ao meu ponto. Nós escrevemos o código. E, sem nosso código, não há computadores, sistema financeiro, bancos, dinheiro, câmbio, nenhum valor.
— Exceto pela última parte, entendo o que quer dizer. Mas e daí?
— Você leu as notícias hoje?
— Claro que não.
— Pois devia. A coisa está feia. Estamos sendo comidos.
— Isso é sempre verdade. Como você disse, a vida significa morte.
— Porém mais do que nunca. Está ficando demais. Estão nos devorando até o osso.
— Isso eu sei. É por isso que vivemos em uma barraca em um telhado.
— Certo, e agora as pessoas estão preocupadas até com comida.
— E deviam. Esse é o valor real, comida na barriga. Porque não dá para comer dinheiro.
— É o que estou dizendo!
— Achei que tivesse dito que o valor real era o código. Algo que um programador diria, devo destacar.
— Mutt, preste atenção. Acompanhe o que estou dizendo. Vivemos em um mundo no qual as pessoas fingem que o dinheiro pode comprar qualquer coisa, então dinheiro é o objetivo, todos trabalhamos por dinheiro. O dinheiro é pensado como um valor.
— Ok, entendo isso. Estamos falidos, e eu entendo isso.
— Ótimo, continue seguindo meu raciocínio. Vivemos comprando coisas com dinheiro, em um mercado que estabelece todos os preços.
— A mão invisível.
— Certo. Os vendedores oferecem coisas, os compradores compram, e no fluxo de oferta e demanda o preço é determinado. É uma colaboração coletiva, é democrático, é capitalismo, é o mercado.
— É como o mundo funciona.
— Certo. E sempre, sempre foi errado.
— O que quer dizer com errado? — Os preços são sempre muito baixos, então o mundo está ferrado. Estamos no meio de um acontecimento de extinção em massa, aumento do nível do mar, mudanças climáticas, pânico alimentar, tudo o que você não lê nas notícias.
— Tudo por causa do mercado.
— Exatamente! Não é só que existem falhas de mercado. É que o mercado é um fracasso.
— Como assim?
— As coisas são vendidas por menos do que custa fazê-las.
— Isso soa como um caminho para a falência.
— Sim, e muitos negócios realmente vão à falência. Mas os que não faliram não vendem de fato suas coisas por mais do que custa fazê-las. Apenas ignoram alguns de seus custos. Estão sob uma pressão imensa para vender o mais barato que podem, porque todo consumidor compra a versão mais barata do que quer que seja. Então eles tiram alguns dos custos de produção de seus livros-caixa.
— Não podem simplesmente pagar menos pelo trabalho?
— Já fizeram! Isso foi fácil. É por isso que estamos todos quebrados, exceto os plutocratas.
— Eu sempre imagino o cachorro da Disney quando você diz isso.
— Eles nos espremeram até começarmos a sangrar pelos olhos. Eu não aguento mais isso.
— Tiraram sangue de pedra. Senhor Plutocrata, roendo até os ossos.
— Roendo minha cabeça! Mas agora fomos devorados. Fomos sugados. Estamos pagando uma fração do que as coisas realmente custam para serem feitas, e, enquanto isso, o planeta – e os trabalhadores que produziram essas coisas – se apodera dos custos não pagos com os dentes.
— Pelo menos conseguiram uma TV barata com tudo isso.
— Certo, para que possam assistir a algo interessante enquanto ficam sentados, falidos.
— Só que não há nada de interessante.
— Bem, mas esse é o menor dos problemas deles! Quero dizer, na verdade você pode encontrar algo interessante.
— Por favor, imploro para divergir. Nós já vimos tudo um milhão de vezes.
— Todo mundo viu. Só estou dizendo que o tédio causado pela TV ruim não é a maior das nossas preocupações. Extinção em massa, fome, vidas de crianças destruídas, essas são as maiores preocupações. E só continua piorando. As pessoas estão sofrendo mais e mais. Minha cabeça vai explodir do jeito que as coisas estão, juro por Deus.
— Você só está chateado porque fomos expulsos e estamos vivendo em uma barraca em um telhado.
— Isso é só uma parte de tudo! Uma pequena parte de uma coisa grande.
— Ok, de acordo. E então?
— Então, veja, o problema é o capitalismo. Temos tecnologia, temos um belo planeta, e estamos fodendo tudo com leis estúpidas. É isso que o capitalismo é, um conjunto de leis estúpidas.
— Vamos dizer que eu concorde com isso também, o que talvez seja verdade. 0 que podemos fazer?
— É um conjunto de leis! E é global! Estende-se por toda a Terra, não há como escapar, estamos no meio disso e, não importa o que você faça, o sistema manda!
— Não estou vendo a parte do que podemos fazer.
— Pense nisso! As leis são códigos! E elas existem em computadores e na nuvem. Há dezesseis leis governando o mundo todo!
— Para mim isso parece muito pouco. Muito pouco ou demasiado.
— Não. Elas são articuladas, é claro, mas nascem de dezesseis leis básicas. Eu analisei.
— Como sempre. Mas ainda é demasiado. Você nunca ouve falar sobre dezesseis de nada. Há oito verdades nobres, as duas irmãs malvadas. Doze, no máximo, como os passos para a recuperação, ou os apóstolos, mas em geral são números de um dígito.
— Deixe disso. São dezesseis leis, distribuídas entre a Organização Mundial do Comércio e o G20. Transações financeiras, câmbio, direito comercial, direito societário, direito tributário. Em todos os lugares é a mesma coisa.
— Ainda acho que dezesseis ou é pouco ou é muito.
— Dezesseis, estou dizendo, e estão codificadas, e cada uma delas pode ser mudada se mudarmos os códigos. Veja o que estou dizendo: você muda essas dezesseis, e é como virar uma chave em um imenso cadeado. A chave vira, e o sistema muda de ruim para bom. Ajuda as pessoas, exige as tecnologias mais limpas, restaura as paisagens, as extinções param. É global, então os desertores não podem sair. O dinheiro ruim se transforma em pó, assim como as más ações. Ninguém poderia trapacear. Isso faria as pessoas serem boas.
— Por favor, Jeff. Você está me assustando.
— Estou só dizendo! Além disso, o que é mais assustador do que este exato momento?
— Mudança? Não sei.
— Por que a mudança seria assustadora? Você não consegue nem ler as notícias, certo? Por serem assustadoras demais?
— Bem, eu não tenho tempo. Jeff gargalha curvando o corpo até encostar a testa na mesa. Mutt gargalha também, por ver seu amigo se divertir tanto.

Mas a alegria é muito limitada. São companheiros, divertem um ao outro, trabalham longas horas escrevendo códigos de negociação de alta frequência para computadores na cidade alta. Algumas reviravoltas os colocam nesta noite vivendo em um hotello no andar da fazenda aberta da antiga torre Met Life, de onde é possível ver a baixa Manhattan fluindo sob eles como uma Super-Veneza, majestosa, aquosa, soberba. A cidade deles.

Jeff diz:

— Então veja, nós sabemos como entrar nesses sistemas, sabemos como escrever códigos, somos os melhores programadores do mundo.
— Ou pelo menos deste prédio.
— Nada disso, do mundo! E eu já nos coloquei onde precisamos ir.
— Como é que é?
— Olhe só. Criei alguns canais secretos para nós durante aquele trabalho que fizemos para meu primo. Estamos lá, e eu tenho os códigos substitutos prontos. Dezesseis revisões para aquelas leis financeiras, além de um pé na bunda do meu primo. Deixe a Comissão de Títulos e Câmbio descobrir o que ele está aprontando, e deixe a Comissão investigar essa merda. Tenho um shunt subliminar pronto para acionar algum alfa e movê-lo direto para a conta da Comissão.
— Agora você está me assustando de verdade.
— Bem, claro, mas olhe, veja bem. Veja o que acha.

Mutt move os lábios quando lê. Não está dizendo as palavras silenciosamente para si mesmo, está fazendo uma estimulação tipo Nero Wolfe em seu cérebro. É seu exercício neural favorito, e ele tem muitos desses. Agora ele começa a massagear os lábios com os dedos enquanto lê, indicando profunda preocupação.

— Bem, sim — diz ele após cerca de dez minutos de leitura. — Vejo que você tem tudo aqui. Gosto disso, acho. A maior parte. Esse velho cavalo de troia Ken Thompson sempre funciona, não é? Como uma lei da lógica. Então, poderia ser divertido. Quase certeza de que seria divertido.

Jeff assente. Aperta a tecla “Enter”. Seu novo conjunto de códigos vai para o mundo.

Eles saem do hotello e vão para o parapeito da fazenda do edifício, olhando para o sul, para a cidade afogada, assombrando-se com tudo aquilo, como no poema de Walt Whitman. Mannahatta! As luzes refletem nas águas escuras que estão por toda parte embaixo deles. No centro, alguns arranha-céus iluminados delineiam torres escuras, dando-lhes um resplendor geológico. É estranho, lindo, assustador.

Há um ruído de sineta dentro do hotello, e eles entram pela porta de tecido na grande barraca quadrada. Jeff lê a tela do computador.

— Ah, merda — diz ele.
— Nos localizaram. Eles observam a tela atentamente.
— Merda mesmo — concorda Mutt. — Como conseguiram?
— Não sei, mas isso significa que eu estava certo!
— E isso é bom?
— Pode ser que tenha funcionado!
— Você acha? — Não. — Jeff franze o cenho. — Não sei.
— A coisa é que eles sempre podem recodificar o que você fez. Depois que descobrem o que foi feito.
— Então você acha que devíamos fugir?
— Para onde?
— Não sei.
— É como você disse antes — destaca Mutt. — É um sistema global.
— Sim, mas esta é uma cidade grande! Muitos cantos e recantos, muitos becos escuros, a economia subaquática e tudo mais. Podíamos mergulhar e desaparecer.
— Sério?
— Não sei. Podíamos tentar.

Então a porta do grande elevador de serviço do andar da fazenda se abre. Mutt e Jeff olham um para o outro. Jeff aponta com o polegar na direção das escadas. Mutt concorda com a cabeça. Eles saem de fininho por baixo da parede da barraca.

Seja breve a esse respeito…

propôs Henry James


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