Um dos maiores fenômenos literários da Europa nos últimos anos. Uma narrativa confessional e comovente sobre a ascensão e a queda do nazifascismo.Quando uma guerra ou inundação chega a um lugar, as pessoas saem. Trina não. Teimosa como a cidadezinha na fronteira onde nasceu, tem a coragem de se opor aos fascistas que a impedem de lecionar, sem medo de fugir para as montanhas com o marido desertor. E, quando as águas da represa estão para inundar os campos e as casas, ela se defende com aquilo que ninguém jamais lhe poderá tirar: as palavras. Daqui não saio é uma história social atualíssima, que cativa desde a primeira página. Marco Balzano tem a habilidade dos grandes narradores: harmoniza a escrita à respiração das personagens...
Capa comum: 210 páginas Editora: Bertrand Brasil; Edição: 1 (24 de fevereiro de 2020) Idioma: Português ISBN-10: 8528624528 ISBN-13: 978-8528624526 Dimensões do produto: 15,6 x 1 x 23 cm Peso de envio: 272 g
Leia trecho do livro
A Riccardo
Uma história so perdura nas cinzas.
MONTALE
PRIMEIRA PARTE
OS ANOS
CAPÍTULO UM
Você não sabe nada de mim, no entanto sabe muito porque é minha filha. O cheiro da pele, o calor do hálito, os nervos tensos, quem lhe deu fui eu. Por isso, vou falar com você como falaria a quem tivesse me visto por dentro.
Eu saberia descrevê-la nos mínimos detalhes. Aliás, algumas manhãs, quando a neve está alta, e a casa, envolta num silêncio que corta a respiração, voltam-me novos pormenores à memória. Algumas semanas atrás me lembrei de uma pintinha no seu ombro, que você sempre me mostrava quando eu lhe dava banho na tina. Era uma obsessão sua. Ou daquele cacho atrás da orelha, o único nos cabelos cor de mel.
As poucas fotografias que conservo eu firo com prudência da gaveta; com o tempo, as lágrimas vão ficando mais fáceis. E eu odeio chorar. Odeio chorar porque é coisa de idiotas e porque não me consola. Só me deixa exausta, sem vontade de engolir qualquer coisa ou de vestir a camisola antes de ir dormir. No entanto, é preciso cuidar de si, ter garra, mesmo quando a pele das mãos está coberta de manchas. Lutar até o fim. Isso quem me ensinou foi seu pai.
Em todos estes anos sempre me imaginei uma boa mãe. Segura, brilhante, amiga… Adjetivos que não me servem mesmo. Na cidadezinha ainda me chamam de senhora professora, mas me cumprimentam de longe. Sabem que não sou um tipo afável. Às vezes me volta à memória a brincadeira que eu fazia com as crianças do primeiro ano. “Desenhem o bicho que mais se parece com você.” Agora eu desenharia uma tartaruga com a cabeça enfiada no casco.
Gosto de pensar que não teria sido uma mãe invasiva. Não lhe perguntaria, como minha mãe sempre fez, quem era este ou aquele, se você lhe dava bola ou se queria namorá-lo. Mas talvez essa seja mais uma das histórias que conto a mim mesma, e, se você estivesse aqui, eu a teria bombardeado de perguntas, olhando-a de esguelha a cada resposta evasiva. Quanto mais se passam os anos, menos a gente sente ser melhor que os pais. Aliás, se fizer comparações agora, estarei em franca desvantagem. Sua avó era rebarbativa e severa, tinha ideias claras sobre todas as coisas, distinguia facilmente o branco do preto e não tinha dúvida em agarrar tudo pelos cabelos. Eu, ao contrário, me perdi numa escala de cinzas. Ela achava que era por culpa do estudo. Considerava que qualquer pessoa instruída era inutilmente difícil. Preguiçosa, presunçosa, alguém que fica passando pente-fino em tudo. Eu, ao contrário, achava que o maior saber, em especial para as mulheres, eram as palavras. Fatos, histórias, fantasias, o que importava era ter fome de palavras e guardá-las ciosamente para quando a vida se complicasse ou se tornasse desvalida. Eu achava que as palavras podiam me salvar.
CAPÍTULO 2
Dos homens nunca fiz caso. A ideia de que houvesse alguma relação entre eles e o amor me parecia ridícula. Para mim, eram indivíduos desajeitados demais ou peludos demais ou rústicos demais. Às vezes as três coisas juntas. Por estes lados todos tinham um pedaço de terra e alguns animais, e dessas coisas era o cheiro que carregavam no corpo. Estábulo e suor. Se precisasse me imaginar fazendo amor, melhor com uma mulher. Melhor as duras maçãs do rosto de uma moça do que a pele espinhosa de um homem. Mas o melhor mesmo era ficar sozinha, sem prestar contas a ninguém. Aliás, ser freira é algo que não teria me desagradado nem um pouco. A ideia de me alhear do mundo me entusiasmava mais do que a de formar família. Mas Deus sempre foi um pensamento difícil demais que, quando me ocorria, me deixava perdida.
Só olhei para um: Erich. Via quando ele passava de manhãzinha, com o chapéu abaixado na testa e o cigarro no canto da boca já àquela hora. Toda vez eu queria aparecer na janela para cumprimentá-lo, mas, se abrisse, Ma‘ ia sentir frio e claro que ia mandar fechar logo.
— Trina, ficou louca?! — teria gritado.
Ma‘ era uma pessoa que sempre gritava. Mas, seja como for, mesmo que eu tivesse aberto a janela, o que iria dizer a ele? Com dezessete anos, eu era tão xucra que no máximo ia conseguir balbuciar. Então eu ficava olhando enquanto ele se afastava em direção aos bosques, e Grau, aquele cachorro dele todo malhado, ia empurrando o rebanho. Quando eram vacas, Erich se arrastava tão devagar que parecia imóvel. Então eu abaixava a cabeça para os livros, com a certeza de que ia vê-lo de novo no mesmo ponto e, quando levantava a cabeça, ele tinha ficado minúsculo no fim do caminho. Debaixo de uns lariços que já não existem.
Naquela primavera aumentou o número de vezes em que me vi com os livros abertos e o lápis na boca, imaginando Erich. Quando Ma‘ não estava trastejando por perto, eu perguntava a Pa‘ se a vida dos camponeses era uma existência de sonhadores. Depois de cuidar da plantação pode-se ir para os prados com os animais, sentar-se numa pedra e ficar em silêncio, a olhar o rio descendo plácido há sabe-se lá quantos séculos, o céu frio que não se sabe onde acaba.
— Os camponeses podem fazer tudo isso, né, Pa’?
Pa‘ dava uma risadinha, com o cachimbo entre os dentes.
— Vá perguntar àquele moço que você fica espiando de manhã pela janela se o trabalho dele é de sonhador…
A primeira vez que falei com ele foi no pátio do maso *. Po‘ era marceneiro em Resia, mas mesmo em casa parecia estar na marcenaria. Era constante o entra e sai de gente que ia pedir consertos. Quando as visitas iam embora, Ma‘ resmungava que nunca nos davam paz. Então ele, incapaz de aceitar nem meia bronca, respondia que não havia motivo nenhum para reclamar, porque um comerciante está trabalhando até quando oferece uma bebida ou troca dois dedos de prosa; aliás, é assim que se ganha freguesia. Ela, para acabar com a discussão, puxava o nariz dele, aquele nariz de couve-flor que ele tinha.
— Cresceu mais ainda — dizia ela.
— Mas em você o que cresceu foi a bunda! — rebatia ele.
Nessa altura, Ma‘ se enfurecia:
— Olha só com quem fui me casar, com um bocó! — e atirava nele o pano de cozinha.
Pa‘ dava uma risada de desdém e atirava nela o lápis; ela, outro pano de cozinha; ele, outro lápis. Para eles, atirar coisas um no outro era declaração de amor.
Naquela tarde, Erich e Pa‘ estavam fumando e observando com olhos preguiçosos as nuvens descaídas sobre o monte Ortles. Pa‘ nos pediu que esperássemos um pouco porque ele ia buscar um cálice de grapa. Erich era do tipo que, em vez de falar, levantava o queixo e ensaiava meios sorrisos, com um jeito seguro que me dava a sensação de ser pequena.
— O que vai fazer depois dos estudos? Ser professora? — perguntou-me.
— Talvez. Ou talvez vá para longe — respondi só para dizer uma frase de gente grande.
Quando eu disse isso, ele logo fechou a cara. Deu uma longa tragada no cigarro, e a brasa quase lhe queimou os dedos.
— Eu não gostaria de sair nunca de Curou — disse, indicando o vale.
Então, olhei para ele como uma menina que ficou sem assunto, e Erich acariciou minha face para se despedir.
— Diga a seu pai que a grapa eu bebo outro dia.
Acenei um sim com a cabeça, sem saber o que dizer mais. Apoiei os cotovelos na mesa, e fiquei a observá-lo, indo embora. A toda hora eu dava uma olhada para a porta, com medo de que de repente Ma‘ aparecesse. O amor às vezes faz a gente se sentir ladra.
Nota
*Palavra usada na região alpina oriental para indicar a típica habitação da família camponesa da região. Trata-se de uma casa de proporções e estilos variáveis, com feneiro, horta e curral anexos, cercada de prados. Seu plural é masi. [N.T.]