“Chelsea Girls” é um romance cultuado de Eileen Myles, que retrata sua vida entre álcool, drogas, sexo e arte, oferecendo um olhar íntimo e caloroso sobre sua formação como uma das grandes vozes da poesia contemporânea americana. Dividido em episódios curtos, o livro mistura humor, confissão e drama, capturando a energia vibrante da Nova York dos anos 1970, onde festas, bares, festivais, música e poesia se entrelaçam. Myles se apresenta como poeta, performer, romancista e jornalista, e seu trabalho é descrito como essencial para quem só conheceu escritores homens da geração beat. A narrativa é um testemunho do caldo cultural da época, destacando a busca de uma jovem escritora para quebrar as amarras de uma identidade cultural opressora. “Chelsea Girls” é um retrato poderoso, comovente e divertido, que reflete a efervescência e liberdade de um tempo que transformou as letras americanas.
Páginas: 256 páginas; Editora: Todavia; Edição: 1 (6 de fevereiro de 2019); ISBN-10: 8588808331; ISBN-13: 978-8588808331; ASIN: B0DK81WCFG
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Biografia do autor: Eileen Myles, nascida em 1949 nos Estados Unidos, é uma autora multifacetada, reconhecida por suas obras de poesia, jornalismo literário e ficção. Ela foi bolsista Guggenheim e recebeu o prêmio Shelley da Poetry Society of America, além do Lambda Literary Award na categoria de ficção lésbica. Myles também foi indicada à Slate/Whiting Second Novel List. Instagram @eileen.myles
Resumo: “Chelsea Girls” de Eileen Myles é um retrato íntimo da vida da autora, cheio de álcool, drogas e arte. Com humor e drama, o livro explora a cultura de Nova York nos anos 1970, desafiando identidades rígidas.
Leia trecho do livro
Bath, Maine
Eu não tinha porra nenhuma para fazer lá. Quer dizer, por que será que moro com a minha ex-namorada e sua nova namorada, e a ex-namorada dela. Como é que alguém pode se sentir bem assim. Eu poderia estar escrevendo esta história de uma cela de cadeia. Engraçado, né? Ted e Alice, antes da minha partida, disseram: “Nada é tão ruim que não possa piorar, Eileen”. Eu não sabia mais o que fazer. Peguei um voo, sim, eu fiz isso, para Portland, e a Judy e a Chris me buscaram no aeroporto. Eu estava muito doidona no avião. A Elinor me deu uma dessas metanfetaminas, de boa qualidade, e eu tinha também um punhado das pílulas que o Tom costuma tomar. Ele tinha dormido na minha casa na noite anterior. Eu estava escrevendo poemas de avião, esses poemas estúpidos em guardanapos de drinques que eles oferecem no voo. Meu Deus, eram horríveis. Sobre vitaminas e essas coisas. Estava sem cigarro, coisa que sempre me deixou especialmente louca, e usava um colar desses de miçanga vermelha, que não sei quando arrebentou, mas me lembro de ter sido no Maine — bem, as duas me buscaram e fomos direto para um bar —, acho que me lembro de comer um sanduíche de camarão com cerveja quando a Chris já estava tomando margaritas geladas. O lugar tinha todo tipo de lagosta no cardápio e aquelas armadilhas de pesca e por aí vai. Voltamos no carro da Judy. Naquela noite, fomos todas para um bar gay na capital, Augusta. Ah, meu Deus, que noite. Muito drogadas, bêbadas, foi delicioso. Todos os homens tiravam a camisa e dançavam. Ficamos putas. Queríamos tirar a camisa também. Então tiramos. Todo mundo achou que era uma ótima ideia. Exceto o gerente e uma dupla de barmen viados. Vistam suas camisas. Os homens não precisam botar camisa. Saiam daqui. Vocês não podem ficar aqui sem camisa. Vistam-se e caiam fora daqui. Foi o que fizemos. Mas primeiro tiramos a calça e fomos caminhando em direção à saída. A Chris também atirou uma garrafa de cerveja neles. Ela sempre teve muito estilo. Isso aconteceu faz três anos.
Depois disso, tudo voltou ao normal. De noite eu já estava cheia de amor no banco de trás do carro da Judy com a Darragh, sua ex-namorada, mas na verdade estávamos procurando pela Chris, que já havia se separado de nós pois estava à procura de outra pessoa, um homem. É claro que estávamos bêbadas. A Chris havia sido enquadrada pelos policiais em sabe-se lá qual rubrica das leis do Maine, que era por dirigir doidona. Veja, esse era um jeito comum de ser preso. Trabalhávamos nessa fábrica e todas as manhãs, ou quase isso, alguém ia preso por excesso de velocidade, por dirigir bêbado, acontecia um acidente, começava a briga. Esse é o estado do boné de beisebol e dos caminhões. Eu adorava. Todos os homens eram muito homens, e todas nós éramos muito lésbicas, e todo mundo gostava de ficar bêbado. Depois do trabalho sentávamos nesse imenso e verde gramado e o Casey, o patrão, descia caixas e mais caixas de cerveja e a gente ficava muito doidão. A Sheila era um problema. Ela era uma loirona e tanto, e era a namorada do Casey e estava muito interessada no fato de eu e a Christine sermos lésbicas. Veja, eu sou uma presa fácil do paternalismo, adoro ter um chefe que é um rapaz bom e jovem, e quando sua namorada parece querer algo a mais, acho fascinante, e eu quero ser a pessoa que ela deseja, mas faço um esforço e saio pela tangente.
A Chris parou de beber depois daquela noite de rebuliço. Eu adorava quando ela estava sóbria, ela só ficava mais e mais bonita, radiante, e sem aquele inchaço provocado pela cerveja. Eu nunca vi isso fazer tanta diferença para alguém quanto para ela. E também foi um alívio. Certa noite eu estava na cama com a Judy e ela chegou com um pé de cabra. Eu vou reformar sua cabeça, sua cuzona. Que momento assustador. Eu podia ver a sombra de sua cabeça, mãos e pé de cabra contra uma luz intensa. Sabe, eu já vinha me preparando para isso durante uma semana no mês anterior e pensei que seria como estar em Valhala. Sabe, era como o paraíso. Judy tem essa casa no meio do nada no Maine, com ovelhas baaah-lindo no campo, e ela tinha cachorros, um deles um labrador preto chamado Myles, e também três gatinhos, e galinhas, e um galo, ovos frescos e belos cafés da manhã na cama com batata frita e licor à base de café jamaicano. Na primeira noite eu estava acordada naquele momento em que eu e a Chris ficávamos instantaneamente apaixonadas de novo assim que ficávamos bêbadas, e já no corredor, nos beijando, e dizendo: mas e a Judy. Então nós três já estávamos em sua grande cama — eu logo parti pra cima da Judy. A Christine não gostou disso — eu não deveria gostar tanto. Era só uma foda bem dada, disputas, desde o começo — e só uma grande eclosão naquela semana — a Chris tinha saído pra correr e eu e a Judy ficamos na cama e quando ela voltou a coisa descambou para outro lado — “Como assim comigo essa porra nunca acontece?!”. E a Judy já lhe dava o que queria. A Christine era uma tirana emocional. Nós vivemos juntas durante alguns anos em Nova York, antes de ela se mudar pro Maine, e foi necessário observar os movimentos do relacionamento dela com a Judy para perceber como ela era complicada e insuportável. Eu era uma nuvem bondosa, que pairava e se movia lentamente, e esperava ser reconhecida. Nunca entendia por que a vida não podia ser satisfatória. Eu estava sentada em seu sofá, ou bebíamos seu uísque no meu apartamento. Então vamos sair, eu dizia. Por acaso você tem grana. Eu tô dura. Desculpa mesmo.
Teve uma noite, depois do trabalho, que nós fomos beber em Bath, Maine. “Nós” significa eu e a Chris que estava dando uma escapada naquela noite, achei que tudo bem, a Sheila queria sair com a gente, e tínhamos que passar em casa pra buscar a Judy. Eu acho que todo mundo estava indo pra tocar naquela noite, elas tocavam com um cara de Bath, sr. Michael, um desses arquitetos que têm um loft. Todos os amigos da Judy tinham suas profissões, mas fingiam ser artistas. Eram um nojo, no entanto tinham tudo: lofts, carros, casas etc. Papaizinhos e mamãezinhas. Costumam ser desinteressantes e não têm nada para dizer, mas, por um tempinho, parecem fantásticos. Pra mim, são todos uma farsa.
Não acho que a Judy estava morrendo de amores por mim. Acho que eu estava presente para neutralizar a situação. A Christine ficava bêbada e me ligava. Ou então ela falava de mim o tempo inteiro. Beleza, fiquemos com essa imagem para analisá-la. O que rolou foi que de uma noite para outra a Judy viu desaparecer toda a sua coleção de homens sarnentos: Ron, o faz-tudo, que ela sempre deixava pra “beliscar” depois, ou o zé-fuinha que sempre sabia tudo, sobre eletricidade ou sei lá o quê. Eles faziam o tipo anti-intelectual que fazia de tudo pra trepar com a Judy, e ela os mantinha por perto para, sei lá, diversão, e certamente ajudas pontuais, e acho que ela os via como pessoas exuberantes e até valiosas. Davam a ela a ilusão de que tinha se ruralizado. Ela era consultora de uma associação ambiental, ia visitar fábricas de peixe e voltava bêbada. Antes disso, era corretora em San Francisco. Agora é uma espécie de cineasta em Boston. A Judy só parece normal. E nunca vai deixar de contar sobre a escola de boas meninas que ela largou. A mãe dela é uma bêbada. A Judy é esse tipo de mulher que despreza a própria mãe, mas é igualzinha a ela.
Então uma vez a Judy disse para a Chris, enquanto passeavam de carro, eu não entendo o que leva a Eileen a pensar que ela sempre tem a chave da verdade absoluta. Foi o que ela disse. O engraçado é que eu imagino o carro dela dizendo essa frase. Uma dessas cenas na qual um Datsun branco está cambaleando pelas estreitas estradas vazias da região do Mid Coast e o carro diz: “… a pensar que ela sempre tem a chave da verdade absoluta”. Não fode, Judy.
Lembro de estar em pé atrás do caminhão naquela noite fatídica tomando uma cerveja e pensando: não vai dar certo — naquela noite parecia que sim — isso de ir com as garotas para Bath. A Judy e a Chris tocaram com o Michael, Judy no baixo, Christine na percussão, Michael no vocal. Eu e a Sheila fazendo degustação alcoólica pelos bares locais, parece tranquilo, mas — o quê?
O que eu estava tentando dizer sobre a Judy e seus brutamontes era que esses gambás tarados iam chegar — naquela noite fizemos um balde de daiquiri de morango com rum Mount Gay que eu não parava de beber, e assim que a Chris ficou bêbada, ela passou um pedaço de papel para a Judy que, eu só soube mais tarde, dizia “Quero te comer” — não sei como a Christine engoliu essa, e as duas saíram tropeçando e morrendo de rir, me deixando de fiscal de jogo com seus encantadores amigos. Foi para isso que me convidaram para o Maine. Os caras falavam muito devagar — parando a cada frase para esperar minha reação de moça. O máximo que eu conseguia fazer era soltar uns heh ocasionais. Depois de um tempo me concentrei nos meus próprios pés.
No trabalho a gente afundava essas pequenas — ou às vezes razoavelmente grandes — armações de madeira em barris de corante. O destino delas era os parques de diversão baratos e as cidades praianas dos Estados Unidos. Esses troços com inscrições como Grateful Dead, ou NY Yankees. Depois de mergulhar essas armações em barris de corante e organizá-las em fileiras de vinte varetas suspensas, empacotando tudo e passando fita adesiva em cada pacote e empilhando tudo num caminhão para Chicago ou sabe-se lá onde, ao final do dia eu virava uma grande mancha marrom da cabeça aos pés, como um personagem de Dickens, eu imaginava. Não me dava ao trabalho de tirar isso de mim antes de me embebedar. Quando eu estava mais relaxada era melhor, ficava mais sexy.
Então essa noite estávamos todos com esse “gozo” no corpo — era tipo um bronzeado, como gordura de bacon, e parecia vir em pote de maionese, mas as pessoas que eu conhecia compravam em grande quantidade. Tava na hora de ir embora, então tínhamos que tirar todas as manchas. O que eu parecia sempre: um dálmata. Eu acho que os cachorros são os seres mais bonitos, e os mais perfeitos. Sheila parecia estar doidona de vodca com suco de cranberry, uma bebida chamada Cape Codder. Lembro que tomei umas chuveiradas, e que fui embora com um drinque e uma cerveja, e de ficar bem alta brisando se naquela noite eu precisaria sair do meu estado loucão.
A luz parecia translúcida, quase perolada, e pegamos o carro, lotado de cerveja, em direção a Bath. Senti falta das drogas. A única coisa garantida era aquela maconha local de merda. O David ia chegar no final do mês e eu estava implorando para ele trazer heroína. Estava começando a achar que era preferível ficar bêbada. Quer dizer, se fosse pra ficar bêbada de verdade, com muito menos era possível atingir o mesmo estado de brisa louca dando uma cafungada. Eu gostava. Mas na última vez que consegui fomos roubados.
Estacionamos em frente à casa do Michael, e Sheila percebeu que precisava deitar um pouco no loft. Veja, nós trabalhávamos muito duro, entrávamos às seis horas, então algumas noites eram mais puxadas. Então eu entrei rapidamente, tempo suficiente para lembrar de um grande banheiro amarelo, e um agradabilíssimo loft para o qual o Michael “tinha dado muito de si”, que mala. Então fiquei feliz de ter que sair sozinha.
Os bares de Bath eram como os bares de todos os lugares, salvo a desconfiança da Nova Inglaterra, ninguém fala com você. Saquei meu caderno, mas não conseguia nem me comunicar comigo mesma. Eu estava bebendo vodca com grape-fruit. Estava vestindo uma camiseta branca com a inscrição FATS WALLER. Comi uma porrada de amendoim. No bar seguinte, eu troquei pra tequila. O que poderia acontecer comigo. Sentei numa mesona de centro, meio gótica, meio rococó de fazenda, com uma grande vela. Não queria ninguém perto de mim. Parecia um lugar meio “de pegação”, anexo a um restaurante. A clientela era queimada de sol, tinha um frescor, como veranistas. Estava me sentindo melhor? No último lugar onde eu já não tinha nada para dizer no meu caderno, comecei a anotar as palavras que saíam da jukebox.
And only love
can break
your heart
So try to make sure
right from
the start…