Livro ‘A Potencia Feminista’ por Veronica Gago

Livro 'A Potencia Feminista' por Veronica Gago
“uma caixa de ferramentas para ser usada contra a ofensiva neoliberal e conservadora, mas também uma investigação tramada ao calor das assembleias, das mobilizações, das greves internacionais do 8 de março, que conecta as violências econômicas, financeiras, políticas, institucionais, coloniais e sociais.” assim o jornal argentino página 12 definiu o livro a potência feminista, ou o desejo de transformar tudo, de verónica gago. Um feminicídio é registrado a cada 29 horas na argentina — um a cada oito horas, no brasil. Verónica gago assume a realidade e a luta das mulheres latino-americanas como ponto de partida para as análises de a potência feminista...
Capa comum: 256 páginas
Editora: Elefante Editora (20 de março de 2020)
Idioma: Português
ISBN-10: 8593115659
ISBN-13: 978-8593115653
Dimensões do produto: 20,8 x 13,8 x 2 cm
Peso de envio: 399 g

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Leia trecho do livro

INTRODUÇÃO

A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo

Este livro é ao mesmo tempo um programa e um artifício de composição. Divide-se em oito capítulos devido à simples arbitrariedade de levar a sério o número com o qual organizamos os pontos do documento coletivo para a Primeira Greve’-Internacional de Mulheres de 8 de março de 2017.

No entanto, como ocorre às vezes magicamente (pela eternidade dos astros ou pelo destino das estrelas), o número bateu. E coincide com os temas que configuram a trama deste texto. Assim, cada capítulo possui um título-problema e, ao mesmo tempo, pode-se dizer que as questões se repetem, reaparecem, retornam e insistem, saltando de um capítulo ao outro. Apesar de serem nomeados como problemas diferentes, o método de trabalho os entrelaça. Pode-se dizer que são sempre as mesmas questões que estão em jogo, mas com um tom, uma luz e uma velocidade que diferenciam umas das outras.

O título transparece esse movimento. A potência feminista se refere a uma teoria alternativa do poder. Potência feminista significa reivindicar a indeterminação do que se pode, do que podemos—isto é, entender que não sabemos do que somos capazes até experimentar o deslocamento dos limites em que nos convenceram a acreditar e que nos fizeram obedecer. Não se trata de uma teoria ingênua do poder, mas de compreender a potência como desenvolvimento de um contrapoder (inclusive, de um duplo-poder). E, finalmente, a afirmação de um poder de outro tipo, que é invenção comum contra a expropriação, usufruto coletivo contra a privatização e ampliação do que desejamos ser possível aqui e agora.

Minha tentativa, aqui, é estabelecer um pensamento situado em uma sequência de lutas, de festas de rua, de vibrações experienciais e de ressonâncias do grito #NiUnaMenos [#NemUmaAMenos] a Esse método de trabalho e escrita tem uma premissa: o desejo possui um potencial cognitivo. Quando dizemos #NosMueveElDeseo [#NosMoveODesejo], entendo que esse movimento é intelecto coletivo e expressão multitudinária de uma investigação em marcha, com seus momentos de agitação e recuo, com seus ritmos e intensidades variáveis.

A potência, como a própria noção que vai de Spinoza a Man e mais além, nunca existe desapegada de seu lugar de enraizamento, do corpo que a contém. Por isso, potência feminista é potência do corpo como corpo sempre individual e coletivo, e em variação; isto é, singularizado. Mas, além disso, a potência feminista expande o corpo graças aos modos como é reinventado pelas lutas de mulheres, pelas lutas feministas e pelas lutas das dissidências sexuais que uma e outra vez atualizam essa noção de potência, reescrevendo Spinoza e Marx.

Não existe potência em abstrato (não se trata do potencial em termos aristotélicos). Potência feminista é capacidade desejante. Isso implica que o desejo não é o contrário do possível, mas a força que impulsiona o que é percebido coletivamente e em cada corpo como possível. O título deste livro quer ser, assim, um manifesto dessa potência indeterminada, que se expressa como desejo de transformar tudo.

Este texto foi escrito no calor dos acontecimentos que deram ao movimento feminista nos últimos anos um protagonismo de novo tipo, e a partir de uma posição particular: de dentro da dinâmica organizativa. É um registro ao vivo de nossas discussões enquanto cumpríamos as tarefas de preparar as greves, marchar, debater em assembleia, fazer dezenas de reuniões e ter centenas de conversas, coordenar e trocar com companheiras de outros lugares do mundo. É um registro aberto de um processo político que continua aberto. Minha escrita está situada aí. E o faz na chave de uma investigação militante.

É claro que o conteúdo deste livro se vincula a intercâmbios e preocupações políticas e teóricas nas quais venho trabalhando há muito tempo, em uma rede ampla de amizades e cumplicidades—e também querelas e polêmicas. Por isso, situar-se também é compor com uma máquina de conversações entre companheiras, histórias e textos de muitas partes e de muitas épocas. Como em toda escrita, nela atua e se escuta uma polifonia, e se tramam linhas de força.

Quero chamar a atenção para algumas questões de método sobre o pensar situado.

Um pensar situado é inevitavelmente um pensar feminista. Porque se algo nos ensinou a história das rebeldias, de suas conquistas e fracassos, é que a potência do pensamento sempre tem corpo. E nesse corpo se congregam experiências, expectativas, recursos, trajetórias e memórias.

Um pensar situado é inevitavelmente parcial. Parcial não significa uma pequena parte, um fragmento ou um estilhaço, mas sim um retalho em uma arte de bricolagem, uma montagem específica. Como tal, funciona como um ponto de entrada, uma perspectiva, que singulariza uma experiência.

Um pensar situado é um processo: nesse caso, no calor do processo político da greve feminista dos últimos anos, que inaugurou uma paisagem capaz de sustentar novos territórios existenciais.

Um pensar situado é inevitavelmente um pensar internacionalista. Cada situação é uma imagem do mundo, uma totalidade aberta ao sabor do conceito e à empiria infinita do detalhe. Assim se trama um transnacionalismo que é prática cartográfica e que constrói ressonância mundial a partir do Sul. Tem sua força enraizada na América Latina, em camadas múltiplas de insurgências e rebeliões. E alimenta um pensar situado que desafia escalas, alcances e invenções de um movimento que se amplia sem perder a força de estar localizado e a exigência de ser concreto.

Escrevo da Argentina, onde o próprio movimento tem singularidades importantes. Proponho como uma das hipóteses substanciais deste livro que, aqui, o movimento feminista se destaca por conjugar massividade e radicalidade.

Isso não é espontaneísmo. Teceu-se e trabalhou-se de modo paciente, enfieirando acontecimentos de ma enormes e trabalhos cotidianos igualmente enormes. Possui histórias e genealogias que não se ajustam ao calendário recente de mobilizações, porque são as que subterraneamente tornaram possível essa abertura do tempo, aqui e agora.

Ainda assim, a greve feminista será o catalisador a partir do qual lerei esse processo, que é ao mesmo tempo político, subjetivo, econômico, cultural, artístico, libidinal e epistêmico. Por “processo”, não me refiro a uma neutralidade descritiva que “fundamente” a greve, mas à própria greve como um processo de invenção, rupturas e, ao mesmo tempo, acumulação de forças.

Nesse sentido, proponho a greve como lente, como ponto de vista específico, para contornar algumas problemáticas atuais do movimento feminista. Como desenvolvo no primeiro capítulo, me inspiro na ideia de Rosa Luxemburgo de que cada greve possui seu próprio pensamento político, e de que temos a tarefa histórica de pensar a greve que protagonizamos. Portanto, a greve feminista internacional funciona como um limiar, uma “experiência”, algo que se atravessa e a partir do qual não se pode continuar tendo a mesma relação com as coisas e os outros. Multas fomos transformadas nesse e por esse processo.

Usarei a greve como lente em duplo sentido:

i) Em um sentido analítico: o que a greve nos permite ver, detectar e ressaltar em termos de como se produz um regime de invisibilidade específico sobre nossas formas de trabalho e de produzir valor em territórios diversos. Explicarei por que é com a greve que construímos um diagnóstico perfeito sobre a precariedade a partir do ponto de vista de nossas estratégias para resistir e politizar a tristeza e o sofrimento. E por que esse diagnóstico hoje é antifascista e antineoliberal.

ii) Em um sentido prático: como a greve nos permite desafiar e cruzar os limites do que somos, o que fazemos e o que desejamos, e se torna um plano que constrói um momento histórico de deslocamento com relação à posição de vítimas e excluídas. Nessa perspectiva, a prática da greve é a redefinição de uma poderosa forma de luta em um momento histórico novo. Contra o estreito modelo dos sujeitos da greve—masculinos, brancos, assalariados, sindicalizados—, expandimos sua capacidade política, suas linguagens e suas geografias. Surge assim uma pergunta que a refaz por completo: que tipo de corpos, territórios e conflitos cabem na greve quando ela se toma feminista? Com que tipo de generalidade ela se compromete?


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