Livro ‘Contos góticos russos’ por Nikolai Gógol

A literatura gótica russa oferece contos de terror, suspense e paródia, destacando-se autores como Gógol, Turguênev, Tchêkhov e Dostoiévski.

A literatura gótica, igualmente conhecida como a de suspense e terror, teve início na Inglaterra, em meados do século XVIII, e nunca deixou, desde então, de ser valorizada pelos leitores. Os textos que compõem este livro, criados pela imaginação dos grandes autores russos, ilustram as principais vertentes dessa literatura: o conto de terror (O retrato, de Nikolai Gógol), a narrativa de suspense (Os fantasmas, de Ivan Turguênev, O monge negro, de Anton Tchêkhov), o conto de fundo histórico (A família do vurdalak e O encontro trezentos anos depois, de Alexei Tolstói) e a paródia dos escritos góticos (Bobok, de Fiódor Dostoiévski). Interessantes e fáceis de ler, caracterizam-se tanto pela singularidade das histórias narradas quanto por seu estilo denso, enérgico e pitoresco. Não se desapontará quem os conhecer: vislumbrará, em meio a impressões arrepiantes, aquele lado obscuro e enigmático da Rússia que talvez ignore ainda!

Editora: Martin Claret; 1ª edição (12 novembro 2020); Páginas: 336 páginas; ISBN-10: 6586014360; ISBN-13: 978-6586014365; ASIN: B08KS71Y43

Leia trecho do livro

PREFÁCIO

DE ONDE VÊM OS ESPECTROS?
(Introdução à literatura gótica russa)

Os contos reunidos neste livro são chamados de “góticos” em alusão àquele gênero específico, não só literário como artístico em geral, cujas obras parecem, ao mesmo tempo, belas e assustadoras, simples e imponentes, reais e oníricas. Quando nos referimos à arquitetura gótica, nossa memória traz à tona as catedrais da Idade Média espalhadas por toda a Europa, e suas fachadas e torres austeras e majestosas, ornadas de gárgulas e outras figuras bizarras, criam uma verdadeira fantasmagoria em nossa mente. Quando nos propomos a falar das letras góticas, imaginamos logo um soturno castelo, uma casa de campo mal-assombrada ou um convento misterioso, onde algum personagem marcante presencia diversos acontecimentos estranhos, incompreensíveis ou então perigosos em demasia e acaba, conforme lhe ordenar a inspiração autoral, conseguindo uma brilhante vitória ou sofrendo uma trágica derrota ao defrontá-los. O efeito que produz a leitura de uma história destas assemelha-se ao gerado pela contemplação de um edifício daqueles. Quem não ficaria arrepiado em face de suas peripécias mirabolantes, por menos que se acredite nelas; quem seria capaz de esquecer seus heróis extraordinários, por mais pavor que se sinta na frente deles?

A literatura gótica nasceu na Inglaterra, em meados do século XVIII,1 e desenvolveu-se a pleno graças a Ann Radcliffe, cujos escritos (Um Romance Siciliano, O Romance da Floresta, Os Mistérios de Udolpho, entre outros) arregimentaram legiões de admiradores tanto no país de origem quanto além das suas fronteiras? Desde o aparecimento dos romances Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818), de Mary Shelley, e Melmoth ou o Homem Errante (1820), de Charles Maturin, suas primeiras obras-primas indiscutíveis, sempre foi popular, se não ovacionada pelos leitores. Atravessou o oceano para alcançar uma das suas expressões máximas nos contos fantásticos de Edgar Allan Poe; chegou ao apogeu na época da Rainha Vitória, com a publicação de O Médico e o Monstro (1886), de Robert Louis Stevenson, e O Grande Deus Pã (1894), de Arthur Machen, Pesares de Satã (1895), de Marie Corelli, e Drácula (1897), de Bram Stoker; continuou progredindo no século XX, quando toda uma plêiade de autores talentosos, de Howard Phillips Lovecraft a Stephen King, levou adiante sua tradição consolidada. Está firme e forte nos dias de hoje, e suas tiragens não cessam de aumentar no mundo inteiro. Trata-se, em suma, de uma arte idônea e longeva que foi duplamente testada, pela inconstância do gosto humano e pelo próprio tempo, e passou em ambos os testes.

Do ponto de vista acadêmico,4 as obras de ficção consideradas “góticas” dividem-se em várias categorias distintas, com especial destaque para o conto de suspense (the short story of suspense), o conto de terror (the short story of terror), o conto de fundo histórico (the historical gothic tale) e a paródia dos escritos góticos (satires on the tale of terror). Os contos russos que seguem representam, em maior ou menor grau, todas essas categorias. O Retrato, de Nikolai Gógol, protagonizado por um jovem de tipo romântico, um pobre pintor subestimado que ousa recorrer a quaisquer meios, inclusive às forças demoníacas, para melhorar de vida, é um conto de terror em seu estado puro e consagrado. A Família do Vurdalak e O Encontro Trezentos Anos Depois, de Alexei Tolstói, enfocam as feéricas aventuras de um fidalgo intrépido e de uma dama galante, que tentam rechaçar, com uma cruz milagrosa nas mãos, seus pesadelos noturnos e diurnos, e patenteiam um intenso colorido histórico, fartamente matizado por reminiscências folclóricas da antiga Europa. Os Fantasmas, de Ivan Turguênev, que narra as incríveis viagens de um fazendeiro ávido por emoções jamais encontradas em seu banal cotidiano e revela a provável familiaridade do autor com o absinto ou similares substâncias alucinógenas, possui as características originais de um conto de suspense. Dedicado à visita de um escritor malsucedido e amiúde embriagado a um dos cemitérios de São Petersburgo, Bobok, de Fiódor Dostoiévski, satiriza, sem dó nem piedade, os temas góticos como tais e provoca, com a morbidez de seu humor, risadas e calafrios simultâneos. E, afinal, O Monge Negro, de Anton Tchêkhov, ambientado no interior da Rússia, em Moscou e na Crimeia onde um professor universitário contracena com um ente sobrenatural a interferir fatalmente em sua vida, também se enquadra no esquema básico dos contos de suspense, mas, ao contrário d’Os Fantasmas, oferece uma interpretação racional dos eventos ante os quais a razão costuma bater em retirada. Assim, bastaria ler esses seis contos para adquirir uma visão bastante ampla da literatura gótica russa; entretanto, quem se interessasse por ela não se satisfaria, sem dúvida, com essa leitura introdutória e procuraria por outros textos de igual relevância que pudessem complementá-la.

Graves e numerosos são os questionamentos filosóficos que os literatos russos fazem de praxe em suas obras, por mais recreativo que seja o conteúdo delas. Para que nascemos, qual seria a finalidade de nossa passagem terrena, por que ela é tão rápida e, muitas vezes, tão custosa?… será que vivemos corretamente, de forma que nossas virtudes sobrepujem nossos pecados, e mereceremos perdão na hora da morte?… o que é a morte em si, o fim de toda e qualquer existência possível ou apenas a transição para uma existência alternativa, e como resistir ao temor, à aflição e ao desgosto a ela relacionados?… não há nenhuma realidade objetiva que não seja a nossa ou um espaço paralelo, habitado por seres que não se parecem conosco, avizinha-a sem repararmos nele?… de onde vêm os espectros que nos surpreendem cruzando, vez por outra, o nosso caminho: resultam de um fenômeno físico, ainda não explicado nem sequer explorado pela ciência, ou acompanham uma daquelas patologias mentais que precisam de atenção médica? — são essas as dúvidas que afloram, volta e meia, nas páginas dos contos góticos russos, quer os tomemos a sério quer não. Pode ser que um dos leitores, atento à problemática existencial, fique um pouco cismado com eles, partilhando a angústia do fazendeiro idealizado por Turguênev, o qual se queixa ao cabo de sua jornada vertiginosa: “Mas o que significam aqueles sons puros, agudos, intensos, aqueles sons de gaita, que ouço tão logo se diz, em minha presença, que alguém faleceu? Tornam-se cada vez mais fortes, mais penetrantes… E por que é que estremeço, tão dolorosamente, só de pensar na inexistência?”. Pode ser que outro leitor, cético no tocante às matérias esotéricas, imite o escritor conduzido pela prolífica fantasia de Dostoiévski ao reino dos mortos-vivos, dando de ombros e seguindo, com um sorriso desconfiado, seu rumo habitual. Em todo caso, nenhum dos dois permanecerá insensível ao charme das histórias lidas, propensas a cativar até mesmo “uma das imaginações mais incrédulas” que houver, nem deixará de reconhecê-las esteticamente valiosas. Pois, no dizer do velho e sábio Shakespeare, que fez os espectros atuarem, em suas peças, ao lado dos homens, “mais coisas há, nos céus e cá na terra, do que a filosofia tem sonhado”!


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